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A imagem mais cristã do século XXI

Um exercício literário

por Ivan Mizanzuk

Se você notou a imagem da vitrine deste texto, você já sabe qual é minha conclusão. Não há plot twist aqui. A conclusão é bem óbvia, pode confiar em mim. Entrego ela de cara pra você, para que, caso já esteja ofendido, não precise perder seu tempo comigo. Só vai piorar, pois falarei de religião e usarei palavrões. Em suma, o textão abaixo é pura vaidade compartilhada.

Um outro aviso: não sou teólogo. Tenho só um mestrado em Ciências da Religião (que é uma outra área, bem diferente) e meu campo de pesquisa era outro. Portanto, se nem teólogos conseguem se entender, não sou eu que farei uma análise perfeita. Qualquer erro que eu cometa já peço desculpas e convido o leitor e leitora a comentar em suas complementações. Minha intenção neste texto é apenas a de analisar o personagem “Jesus Cristo” como conceito moral numa narrativa literária que serve de base para grande parte da população.

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Se em algum momento da minha vida eu tive algum preconceito com o cristianismo, foi no máximo de achar que ele era brega

Antes que se perguntem, vamos às obviedades: não sou religioso, tampouco ateu. Quem me acompanha no AntiCast já deve ter ouvido eu falar algo do tipo “quando a pergunta é ‘Deus existe?’, o ateu tem uma resposta. Eu não tenho, sou medroso.”

Mesmo tendo estudado em colégio católico a vida inteira, fazendo parte de uma típica família brasileira (tradução: católica-não-praticante-que-vai-em-centro-espírita-e-faz-oferenda-pra-Iemanjá-no-reveillon) e ter feito um mestrado em Ciências da Religião na PUC-SP, não ouso responder a questão que acompanha a humanidade desde sempre.

Isso não me impediu de ser fascinado pelo fenômeno da religiosidade, em suas várias manifestações ao redor do mundo, especialmente nas suas diversas representações artísticas. Refiro-me especificamente a duas modalidades: as imagens e os textos. Mas eu já chego lá.

Sobre o poder das palavras

Se em algum momento da minha vida eu tive algum preconceito com o cristianismo, foi no máximo de achar que ele era brega. Talvez porque a maioria das pessoas que conheci eram cristãs. Mas eu mal conhecia o pensamento, a ponto de achar que “cristão é tudo igual”, não entendendo as diversas diferenças entre católicos romanos, ortodoxos, luteranos, presbiterianos, metodistas, batistas, pentecostais, neopentecostais – e, principalmente, não entendia que, mesmo entre esses grupos, há divergências de opiniões.

Nesta fase da minha vida, um querido amigo, pesquisador da poesia marginal paulista, e católico descendente de portugueses, disse-me algo que nunca vou esquecer:

a Bíblia é um puta livro foda”

Puta. Livro. Foda.

Foi o que eu precisava ouvir para dar uma segunda chance ao compêndio bíblico, especialmente aos Evangelhos. Desta vez, não foi porque uma professora de Religião me dizia para fazê-lo – tal como aquela freira que me deu aula na 4ª série, dizendo que “Buda estava morrendo e disse que ia deixar todo mundo sozinho; por isso Jesus era melhor, pois disse que sempre estaria conosco”. Como se uma criança de 10 anos fosse capaz entender a profundidade desse tipo de comparação. Como se eu fosse capaz de entender hoje.

Não, meu interesse pela Bíblia se deu pelo seu conteúdo literário. E, desta maneira, eu vi Beleza. De toda minha biblioteca, tenho o Livro do Apocalipse como um dos meus prediletos. Tenho uma versão mental do Livro de Jó, na qual os palavrões não foram censurados, ao passo em que o Evangelho de João é uma das obras mais lindas que já li.

(Caso esteja se perguntando, não li a Bíblia inteira.)

Eu ainda me incomodo em escrever Deus com “D” maiúsculo, mas não tenho coragem de escrevê-lo com “d” minúsculo. É um ato político que exige uma consciência que não possuo. “Não acredito em ‘Deus’, logo, só escreverei essa palavra em minúsculas”. Nada contra se você faz isso (sério, eu nem conheço tua vida, então relaxa). Mas, no meu caso, acaba me soando como aquele casal que se separou e uma das partes se refere à outra como “o/a viúvo/a”. Prefiro escrever todas as divindades com “D” maiúsculo – judaicas, cristãs, pagãs, hinduístas, que seja. Deus, Deuses e Deusas. Todos vivos e bem. Ou mal. Ou más. É engraçado como palavras demonstram ser tão políticas nessas horas. Tipo a galera que se recusa a chamar a Dilma de “presidenta”. E o contrário.

"Satã joga as pragas sobre Jó",  William Blake

“Satã joga as pragas sobre Jó”, William Blake

Parâmetros Conceituais: Deus Severo x Deus do Amor

Agora que falei bastante sobre como eu me relaciono com religiões, especialmente os Cristianismos, é necessário eu explicar como encaro a figura de Cristo conceitualmente.

Dostoiévski

Já devo deixar claro também minhas bases teóricas para isso: o psicólogo suíço Carl Jung (1875-1961) e o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Do primeiro eu já foi mais amigo (hoje, em termos de psicanálise e suas variantes, gosto mais do Freud e do James Hillman). Já o segundo é praticamente capital simbólico obrigatório para soar mais inteligente – especialmente quando o assunto é a figura de Cristo. Se você tiver a manha de pronunciar o nome dele com ênfase na última sílaba então (algo como “DostoiÉvsKÍ), você é tido como inteligente pra caralho. Ou seja: eu sei que estou sendo um canalha usando esses caras. Mas permita-se ser enganado por alguns minutos. Eu juro que vou tentar fazer valer a pena.

Se há um livro de Jung pelo qual possuo enorme carinho e admiração até hoje é o “Resposta a Jó”. O objetivo do autor lá é bastante ambicioso: tentar entender a Bíblia toda como a narrativa de uma vida. Analisar psicologicamente o livro (ou melhor, o conjunto de livros) como um todo. Entender sua “evolução”. Em termos de psicologia junguiana, seu “processo de individuação”.

Jung entendia que, caso fôssemos analisar a Bíblia como o relato de uma vida, haveria um ponto central na narrativa de Jó, uma espécie de mudança de eventos. Caso você seja daqueles que não aguentam ler trechos bíblicos, eu recomendo que leia as partes seguintes da mesma maneira que eu aprendi a fazer, ou seja, como uma peça literária. Relato aqui parte do início de Jó:

Certa vez, foram os filhos de Deus apresentar-se ao Senhor; entre eles veio também Satanás. O Senhor, então, disse a Satanás: ‘Donde vens?’ – ‘Dei umas voltas pela terra, andando a esmo’, respondeu ele. O Senhor lhe disse: ‘Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há outro igual: é um homem íntegro e reto, teme a Deus e se afasta do mal’.

Satanás respondeu ao Senhor: ‘Mas será por nada que Jó teme a Deus? Por ventura não levantaste um muro de proteção ao redor dele, de sua casa e de todos os seus bens? Abençoaste seus empreendimentos e seus rebanhos cobrem toda região. Mas estende a mão e toca em todos os seus bens; eu te garanto que te lançará maldições em seu rosto!’ Então o Senhor disse a Satanás: ‘Pois bem, tudo o que ele possui, eu o deixo em teu poder, mas não estendas a mão ele!’ E Satanás saiu da presença do Senhor.” – (Jó 1, 6-12)

Essa passagem de abertura já demonstra o poder do livro. Deus e Satanás debatem sobre a vida deste homem, Jó, que seria o servo mais fiel de Deus. Satanás provoca, argumentando que Jó apenas é leal pelo fato de Deus lhe dar uma boa vida. Uma aposta se desenha: Deus permite Satanás a tirar tudo de Jó apenas para provar que ele lhe é realmente temente.

Jó, outrora rico, com família, animais e propriedade, experimenta a morte de seus filhos, doente e pobre. Mesmo humilhado, Jó entendia que tudo o que lhe aconteceu fazia parte dos planos de Deus.

Então, Jó se levantou, rasgou o manto, rapou a cabeça, caiu por terra e, prostrado, disse: ‘Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei para lá. O Senhor deu, o Senhor tirou, bendito seja o nome do Senhor’. Apesar de tudo isso, Jó não cometeu pecado nem protestou contra Deus”. – (Jó 1, 20-22)

Mas as torturas continuam e Jó, finalmente, não se aguenta, passando a questionar e debater com seus amigos acerca das vontades divinas.

Enfim, Jó abriu a boca e amaldiçoou seu dia. Jó tomou a palavra e disse: Pereça o dia em que nasci, a noite que disse ‘Um menino foi concebido!’. Esse dia – que se torne trevas, que Deus do alto não se ocupe dele, que sobre ele não brilhe a luz! Que o reclamem as trevas e sombras espessas, e que uma nuvem pouse sobre ele, que um eclipse o aterrorize!

Essa noite – que se apodere dela a escuridão, que não se some aos dias do ano, que não entre na conta dos meses! Essa noite – sim, que fique estéril, que nela não soem os gritos de júbilo! Que a amaldiçoem os que amaldiçoam o dia, os entendidos em conjurar Leviatã! Que se escureçam as estrelas da alvorada, que espere por uma luz que não vem, que não veja as pálpebras da autora! Por que não me fechou as portas do ventre e não escondeu de minha vista tanta miséria?” – (Jó 3, 1-10)

E isso é apenas o início do livro. Jó deseja nunca ter existido, condena sua própria existência. Não blasfema contra Deus, mas os amigos lhe advertem acerca do perigo de falar tais palavras. Avisam-no que, talvez, ele mereça tudo o que esteja acontecendo com ele. Talvez, ele seja um pecador. É essa relação de causa-efeito que é questionada por Jó.

Mas, acima de tudo, Jó incomoda-se com o silêncio de Deus, ponderando se Ele teria abandonado-o. Jó não sabe o que fez para merecer tantas coisas ruins, e é isso o que lhe atormenta. Ao final do livro, Deus intervém e comunica-se diretamente com Jó. Adverte-o do risco que Jó corre ao questionar suas vontades. Em resposta, Jó aceita sua condição mortal e, como bom servo, é retribuído por Deus. Conclui que tudo vem de Deus: até o sofrimento.

“Crucificação de Cristo ao lado dos ladrões”, Rembrandt

“Crucificação de Cristo ao lado dos ladrões”, Rembrandt

As interpretações mais comuns diferem entre grupos religiosos. Simplificando muito, a teologia cristã tende a entender mais o lado de Jó, vendo sua “revolta” como um confronto às Antigas Leis, representado na figura do Deus do Velho Testamento cuja soberania não deveria ser questionada (vide Adão e Eva, Abraão, Noé etc.). Mas, desta vez, é. Tal leitura se daria por conta de um fator: a vinda do Messias, Cristo, está logo ali, algumas páginas adiante. Difere-se assim bastante da interpretação judaica, que geralmente aproxima-se mais das advertências dos amigos de Jó: se ele estava questionando as decisões e atitudes de Deus, ele estava errado e seu sofrimento era merecido.

Eu consigo imaginar teólogos arrancando seus cabelos agora. Calma, eu sei que essa interpretação não é comum.

O Deus que prega o Amor ao Próximo nos Evangelhos do Novo Testamento difere muito do Deus do Antigo Testamento. É este conflito que interessava a Jung em seu livro “Resposta a Jó”. “Se a Bíblia for lida como um mapa da história da consciência judaica-cristã”, ele se perguntava, “por que haveria esta mudança de atitudes?”.

A interpretação de Jung, ao meu ver, é belíssima. Dizia o psicólogo que essa mudança se daria por conta de uma espécie de “consciência acerca da necessidade de existir” adquirida por Deus. Dito de outra forma: Deus, ao criar o Homem e a Mulher, não entenderia exatamente o que era sua própria criação. A partir de um certo ponto, Ele teria se visto na necessidade de encarnar, como forma de entender melhor o que havia criado. Ao passar pela experiência de “ser humano”, passaria a pregar o Amor. E qual teria sido o ponto de mudança, que fez Deus questionar sobre sua própria necessidade de encarnação? Jó.

Eu consigo imaginar teólogos arrancando seus cabelos agora. Calma, eu sei que essa interpretação não é comum. Afinal, coloca em cheque a própria noção de infalibilidade dos planos de Deus. Se Ele tudo sabe e tudo vê, como é possível não entender a própria criação? Mas quem disse isso foi o Jung. Se não gosta, reclama lá com ele: [email protected].

Neste ponto, é necessário apontar que Jung era muito influenciado pelas noções gnósticas de que o Deus do Velho Testamento é um outro Deus, uma espécie de adversário. Ou, pelo menos, um Deus capaz de cometer erros. O verdadeiro Deus seria aquele do Novo Testamento, cuja mensagem é trazida por Cristo. O Amor Cristão é, em sua essência, algo libertador e impossível de ser realizado pelo homem.

É justamente da impossibilidade de concretização do Amor Cristão que Dostoiévski se destaca em sua famosa lenda do “Grande Inquisidor”, presente na sua obra-prima “Os Irmãos Karamazov”. Nesta narrativa, em meio à Inquisição Espanhola do século XVI, enquanto hereges, bruxas e qualquer outro inimigo da Igreja Católica era queimado publicamente, Cristo teria decido visitar a Terra. Diz a narrativa que essa não era sua segunda vinda, mas sim, apenas um passeio.

Em suas novas peregrinações, Cristo realiza seus feitos. Ajuda os pobres, cura os doentes. O trecho a seguir é longo, mas maravilhoso em mostrar o efeito que causava nas pessoas:

Apareceu suavemente, sem se fazer notar, e, coisa estranha, todos O reconhecem; a explicação do motivo seria um dos mais belos passos do meu poema; atraído por uma força irresistível, o povo comprime-se à Sua passagem e segue-Lhe os passos. Silencioso, passa pelo meio da multidão com um sorriso de compaixão infinita. Tem o coração abrasado de amor, dos olhos se Lhe desprendem a Luz, a Ciência, a Força que irradiam e nas almas despertam o amor.

Estende-lhes os braços, abençoa-os, e uma virtude salutar emana do Seu contacto e até dos Seus vestidos. Um velho, cego de criança, grita dentre o povo: ‘Senhor, cura-me e ver-Te-ei’; cai-lhe uma escama dos olhos e o cego vê. O povo derrama lágrimas de alegria e beija o chão que Ele pisa. As crianças deitam-Lhe flores no caminho; todos cantam, todos gritam: Hossana! É Ele, deve ser Ele, não pode ser senão Ele! Pára no adro da Catedral de Sevilha, no momento em que trazem um caixãozinho branco, com uma menina de sete anos, filha única de um homem importante. A morta está coberta de flores.

– Vai ressuscitar a tua filha – gritam da multidão para a mãe cheia de lágrimas.

O padre que viera ao encontro do caixão olha com ar perplexo e franze o sobrolho. De repente, ouve-se um grito e a mãe lança-se-Lhe aos pés: ‘Se és Tu, ressuscita-me a filha!’ – e estende-Lhe os braços. O préstito pára, pousam o caixão nas lajes. Ele contempla-o com piedade e a Sua boca profere suavemente, uma vez mais: Talitha kum, e a rapariga levantou-se. Soergue-se a morta, senta-se e olha em torno, sorridente, com um ar de espanto; segura nas mãos o ramo de rosas brancas que lhe tinham posto no caixão.”

Ao ver os feitios de Cristo, aparece o Grande Inquisidor. Ele, representante da Igreja, visando a preservação moral da sua instituição, manda prender Jesus Cristo. Após um longo diálogo (ou melhor, monólogo), o Inquisidor declara sua intenção: irá mandar Cristo para a fogueira. O motivo? Ele está atrapalhando o trabalho da Igreja.

Não disseste Tu muitas vezes: ‘Quero tornar-vos livres’? Pois bem: lá os viste, aos homens ‘livres’ – acrescenta o velho, com um ar sarcástico. Sim, custou-nos caro – prossegue, olhando-O, com severidade, mas, enfim, sempre completamos em Teu nome esta obra.

Foram necessários quinze séculos de rude trabalho para instaurar a liberdade; mas está pronto, e bem pronto. Não crês? Olhas-me com brandura, sem mesmo dares a honra de Te indignares? Mas é bom saberes que nunca os homens se julgaram tão livres como hoje, e, contudo, depuseram a nossos pés, humildemente, a sua liberdade. É esta a nossa obra, na verdade; é a liberdade que Tu sonhavas?”

Resumindo a moral da história, o Grande Inquisidor alerta a Cristo que ele promete algo impossível aos homens: Liberdade. Mas o povo não quer Liberdade. O povo quer “pão”. E isto a Igreja promete.

A crítica de Dostoiévski é poderosa. Adverte-nos que Cristo, como modelo, é algo impossível para os seres humanos. Ele explora também esse tema no seu livro “O Idiota”, em que um personagem muito semelhante à figura de Cristo é considerado um imbecil por conta da sua bondade exacerbada. Sempre vamos preferir “pão” à liberdade incondicional. Conceitualmente, esta é, para mim, a maior mensagem que o personagem Cristo nos ensina.

Vale lembrar: não sou Cristão. Mesmo assim, tenho a liberdade de admirar a mensagem. Ao menos nesta interpretação.

(Neste ponto, acho também importante frisar que não sou daqueles que acha que a Igreja Católica foi esse monstro todo. Sem dúvida, como toda instituições de grandes poderes, abusos imperdoáveis foram cometidos, especialmente no período inquisitório. Contudo, não é dever do historiador – se é que posso me considerar isso – corrigir o passado. A Igreja Católica desempenhou, durante todo o período medieval, uma importante função de organização social cujas bases são sentidas até hoje. Reduzir seu fenômeno de existência a critérios de “bom” ou “ruim” são avaliações morais que apenas limitam sua compreensão. Ainda assim, não acredito que a intenção de Dostoiévski tenha sido fazer uma crítica à Igreja neste sentido tão restrito. Seus escritos apontam para uma dimensão mais conceitual, buscando evidenciar a a falibilidade humana, do que necessariamente uma propaganda anti-cristã-católica-romana)

O problema da representação de Cristo – Iconoclastia vs Didatismo

Representação Medieval de Cristo Negro, Arte Bizantina

Como toda figura religiosa, o debate acerca da representação de Cristo sempre foi polêmico. Não à toa, as Grandes Religiões sempre se questionaram sobre se deviam ou não representar suas divindades. O Judaísmo e o Islamismo, por exemplo, diferem muito nas formas de iconografia, evitando a produção de imagens ao máximo.

No Cristianismo, o século VIII presenciou todo um debate acerca disso, especialmente no Império Bizantino, onde se deu a chamada Crise Iconoclasta. Por um curto período de tempo, representações sagradas foram proibidas na região, dado o medo das distorções que a produção de imagens poderia trazer.

A Reforma Luterana do século XV reacendeu em alguma medida o debate, apesar de que Lutero via certa importância na Arte Sacra – atitude bastante diferente de outras reformas protestantes, tais como a Calvinista e a Anabatista, em que as imagens foram sendo cada vez mais proibidas. E mesmo nos lugares em que as imagens ainda eram permitidas, havia diferenças – vide as diferenças de cultura pictóricas entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Católica Ortodoxa após o Cisma do Oriente (século XI).

A Igreja Católica, formada e desenvolvida durante todo o período medieval, via a produção de imagens sacras não apenas como algo benéfico, como também necessário. A grande maioria da população europeia era analfabeta, além da prática dos textos sagrados serem redigidos e lidos em latim. Sobre isso, a própria missa era conduzida em Latim, tradição essa que se manteve até o Concílio Vaticano II, realizado na década de 1960 (!), quando permitiu-se a celebração de missas em línguas nacionais. Essa proteção ao texto era vista como algo necessário: apenas aqueles preparados (o clero) teria capacidade de interpretação das escrituras (algo parecido com aquela galera que volta e meia defende que só poderia concorrer às eleições pessoas com ensino superior completo). Ainda assim, o povo necessitava receber os ensinamentos. As imagens foram essa solução.

De um lado, protestantes questionam sua utilização. Do outro lado, católicos romanos investem nas imagens como espécie de máquina de propaganda

Neste sentido, no século XV, quando Lutero propôs uma Bíblia escrita na língua do povo (alemão) como uma das bases de sua reforma, ele estava “democratizando” as escrituras, permitindo inclusive que cada homem e mulher interpretasse o texto das suas maneiras. Contudo, Lutero encontrava-se num momento muito diferente daquele período de mais de mil anos que marcou o desenvolvimento da Igreja Católica. Não à toa, a imprensa já existia, sendo a Bíblia de Gutenberg, um dos primeiros livros impressos no Ocidente, um dos marcos desse debate.

Com a alfabetização cada vez mais crescente, juntamente com as traduções das escrituras, o uso de imagens passa a ser revisado. De um lado, protestantes questionam sua utilização. Do outro lado, católicos romanos investem nas imagens como espécie de máquina de propaganda, permitindo assim a criação de obras de valor inestimáveis, que marcam todo o período Maneirista italiano das obras de Michelangelo e do Barroco de Caravaggio e Bernini.

Volta-me agora uma lembrança infantil: década de 1990, Globo mostrando imagens de pastores chutando uma estátua de Nossa Senhora Aparecida. Polêmica. Sensacionalismo puro. Como criança, eu não tinha noção do debate teológico e histórico por trás daquele ato. Desrespeito ou não, o buraco é muito mais embaixo. E eu desconfio que mesmo os adultos não tinham muita noção. E acho que é assim até hoje.

“A Invocação de São Mateus”, Caravaggio

“A Invocação de São Mateus”, Caravaggio

A Parada Gay

São Paulo. 2015. Uma transexual numa cruz. Polêmicas por toda a parte de novo.

Como mostrei há pouco, não sendo cristão, minha visão de Cristo é puramente conceitual. Analiso-o como um personagem e aceito que muitas pessoas o tenham como modelo de vida. Vejamos então um pouco sobre sua narrativa:

1. Era pobre. Alguns poderiam até dizer que era da periferia. Marginal, no sentido de que vive “na margem”.

2. Era Judeu, povo que sempre teve problemas.

3. Criou uma revolução contra a ordem vigente. Se fosse hoje, teria gente chamando ele de “terrorista”.

4. Deixou muito poderoso puto da cara.

5. Falava coisas do tipo: “é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus” (MATEUS 19, 24).

Não há atitude mais anticristã do que, do alto de um palanque político, na capital de um país, quando se é maioria em um Congresso, se fazer de “vítima oprimida”

Resumindo tudo isso em uma frase: um cara da periferia, pertencente a um grupo social segregado, dando de dedo na cara de muita gente poderosa. A mensagem de Cristo nunca foi direcionada para o poder vigente. Sempre foi para os excluídos. Os poderosos, caso sensibilizados com suas mensagens, deveriam ser mais receptivos àqueles necessitados.

Não há atitude mais anticristã do que, do alto de um palanque político, na capital de um país, quando se é maioria em um Congresso, se fazer de “vítima oprimida”. Especialmente se seus bolsos estão bem cheios. Especialmente se você é um líder religioso com milhares de fieis e, por coincidência, teve muitos votos na última eleição.

Uma das pinturas mais magníficas da história da arte é “A Invocação de São Mateus”, de Caravaggio. Nela, como aponta o historiador da arte Simon Schama, vemos Cristo, trajando roupas típicas do século XVI, entrando em um boteco, apontando o dedo pra um vagabundo mercenário e dizendo “Mateus! Ei, você! Seu lixo de ser humano! Sim, você, que representa o que há de mais podre nos homens, que recolhe impostos, retira os bens dos pobres, que trabalha pra esse governo podre que é o Estado Romano. Sim, você. Eu quero você do meu lado, numa missão para salvar a humanidade”.

Tive liberdade poética aqui, desculpe. O trecho retirado do Evangelho de Lucas diz:

Os fariseus e e seus escribas murmuravam falando com os discípulos: ‘Por que comeis e bebeis com cobradores de impostos e pecadores?’ Respondendo, Jesus lhes disse: ‘Não tem necessidade de médico os sãos mas, sim, os enfermos. Não vim chamar para a conversão os justos mas os pecadores’”. – (LUCAS 5, 29)

Mateus não acredita no que está acontecendo. Seu olhar é de espanto. Não vê digno.

A moral da história é: ninguém é. E essa é a beleza do conceito de Cristo, independente de acreditarmos nele ou não. Se acreditamos realmente que histórias possuem poder, essa narrativa é muito poderosa. Pois somos todos “pecadores”, ou seja, impotentes, errados. A beleza está no erro. Apenas o personagem Cristo é perfeito. Apontar o dedo a outros, julgá-los, aí está o problema. A história de Cristo é uma narrativa de humildade, renúncia, que abale o ponto mais íntimo do seu ser.

O conceito básico de Jesus é o de uma rebeldia que se estabelece através de uma mensagem de amor impossível de ser realizado por homens e mulheres comuns

Eu reforço: não é necessário ser cristão para entendermos isso. Sem dúvida, o Cristão verá isso de outra forma. Para os que não são, eu recomendo um exercício artístico: é comum nos emocionarmos lendo livros ou vendo filmes com heróis (sei lá, pensa aí em “Coração Valente”). Que tal uma narrativa em que um personagem usa como principal arma o amor incondicional ao próximo? Assim como o Super Homem pode voar, esse personagem também tem um super poder: o de perdoar e aguentar a dor que o outro causa. Pior: ele aceita isso, pois recusa-se a levantar a mão.

O conceito básico de Jesus é o de uma rebeldia que se estabelece através de uma mensagem de amor impossível de ser realizado por homens e mulheres comuns. Aí está sua complexidade. É um dos motivos de ser ainda uma narrativa tão potente. Ama os fracos, os oprimidos. Vê beleza e acredita na salvação daquele que é considerado “perdido”.

Mas veja: ele não estabelece o padrão do que é “ser perdido”. Esse é um conceito dado pela sociedade. A todo momento, Cristo é aquele que vem quebrar as estruturas de julgamento social da própria sociedade romana. E faz isso através do amor. Quando critica, critica o opressor.

“Job Confessing His Presumption to God Who Answers from the Whirlwind”, William Blake

“Job Confessing His Presumption to God Who Answers from the Whirlwind”, William Blake

Nada do que eu falo é novo. E há um debate bem quente na teologia contemporânea, relacionado à questão da Teologia da Libertação – basicamente, uma leitura marxista do conceito de Jesus. Particularmente, acho que ela tem grandes méritos, mas concordo com boa parte das críticas conservadoras à ela, que é a de que ao se ler a narrativa de Cristo nesta chave, o conceito de “pecado” perde seu valor, transformando Cristo em uma figura que te liberta da sua condição social. Não é meu desejo propor isso aqui.

Jesus Cristo não luta pela redução da maioridade penal. Ele acolhe o marginal.

Meu ponto é entender o “pecado” como “falha”. Somos todos errados. Somos todos julgados. Contudo, a mensagem que vemos hoje na mídia é outra: “Não se arrependa de nada, viva intensamente, o culpado são os outros”. Se bato o carro, a culpa é daquele que me fechou. Se tiro notas ruins, o professor é muito exigente. Se meu emprego é uma merda, meu chefe é um escroto. Não temos mais responsabilidade por nada.

Ao invés de “Carpe Diem”, sou mais fã da noção de “Memento Mori”, latim para “a hora da morte” – ou ainda “lembre-se de que você vai morrer”. Arrependa-se, aceite que tem falhas. Trabalhe elas. Você nunca será perfeito, não deve buscar ser exemplo para ninguém. “O Mal está no olho daquele que vê”. E o seu olhar está sempre julgando.

E o que a transexual crucificada tem a ver com tudo isso? Tudo. Lembremos o momento da crucificação:

Quando chegaram ao lugar chamado A Caveira, ali crucificaram a Jesus e aos dois criminosos, um à direita e o outro à esquerda.

Um dos criminosos insultava-o, dizendo: ‘Não és tu o Messias? Salva-te, pois, a ti mesmo e a nós’. O outro, porém, tomando a palavra, repreendia-o, dizendo: ‘Nem tu, que estás sofrendo o mesmo suplício, temes a Deus? Nós padecemos com justiça porque recebemos o castigo digno de nossas obras, enquanto este nada fez de mal’.

E falou: ‘Jesus, lembra-te de mim quando chegares ao teu Reino’. E Jesus lhe respondeu: ‘Em verdade te digo: ainda hoje estarás comigo no paraíso” – (LUCAS 23, 33; 39-43)

Note: Cristo não julga. Ele recebe.

Ele não luta pela redução da maioridade penal. Ele acolhe o marginal.

A Transexual, que sofre tantas violências diárias, sejam de ordem física ou psicológica, especialmente por parte de ditos “cristãos”, é crucificada diariamente.

Jesus também seria. Como no Grande Inquisidor.

Se Cristo voltasse hoje, sem dúvida incomodaria muita gente. Incomodaria a mim e a você que está lendo – e especialmente os cristãos. E ele muito provavelmente seria crucificado de N jeitos. E aceitaria de forma honrada e piedosa uma transexual ao seu lado. Seria dela o reino dos céus. Mas a “galera do bem” parece que esquece que Cristo nunca quis dar lição de moral sobre o marginal. Ele criticava os poderosos. Cristo era Punk de verdade. E a galera do terno e gravata, lá do meio do país, parece que se esforça muito em querer transformar ele num almofadinha que vai dormir às 8 da noite e fica fazendo dando lição de moral no Facebook, xingando novela e marca de perfume no Reclame Aqui.

Assim como a Bíblia, Dostoiévski é foda.



IVAN ALEXANDER MIZANZUK é host do AntiCast, podcast publicado aqui no B9 às quintas. Ele é designer, professor da História da Arte, mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP e doutorando em Tecnologia na UTFPR. É autor do livro “Até o Fim da Queda” e um dos autores do livro “Existe Design?”. Ele também oferece um monte de cursos malucos sobre arte, literatura e história do esoterismo (seu campo de pesquisa do mestrado) aqui: anticast.com.br/cursos

Agradecimentos especiais a Alexander Stahlhoefer, do Bibotalk, que me esclareceu algumas dúvidas pontuais sobre o Livro de Jó, e Cristiano Machado, do Crentassos, que leu uma primeira versão deste texto, me dando alguns toques. O resto é tudo culpa minha.

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