Transcrição Mamilos 92 - Consciência Negra parte 1 • B9
Mamilos (Transcrição)

Transcrição Mamilos 92 - Consciência Negra parte 1

Capa - Transcrição Mamilos 92 - Consciência Negra parte 1

Jornalismo de peito aberto

Esse programa foi transcrito pela Mamilândia, grupo de transcrição no Mamilos

Início da transcrição:
(Bloco 1) 0’ – 10’59”
[Trilha de Introdução]
Cris: Mamileiros e Mamiletes, seu exercício semanal de ginástica cerebral está de volta. Eu sou a Cris Bartis e a moça serelepe ao meu lado é…
Ju: Diva Laura
Cris: Adotou mesmo? [risos]
Ju: Adotei, vou fazer um cartão de visita, inclusive.
Cris:Teremos um Mamilos excepcional essa semana, uma coisa nunca dantes vista por aqui. Vamos separar o programa em dois. Isso mesmo, o tema Consciência Negra rende para mais de metro, e você vai ouvir a primeira parte essa semana e a segunda chega na semana que vêm. Vêm que o assunto está reflexivo e está delicioso.
Ju: Caio, acho que hoje pede música dele. Do homem da voz de mel, Jorge Benjor, no seu maravilhoso álbum de 1971, Preto é Lindo. Coloca na Vitrola?
[sobe trilha]
[Quem não pode sai da frente,
Quem é forte se aguenta,
Mas que ama se dá bem.
Eu quero ela (3x)]
Cris: E o beijo para Santo André, em especial para o professor Gilberto Lopes e o seu filho gentil que nos apresentou para ele e para todos os seus alunos de História, que serão futuros professores.
Ju: Para Brasília.
Cris: Caruaru.
Ju: Para o Professor Tiago.
Cris: E para Mamilândia!
E fale com Mamilos!
Fale com Mamilos pelo Facebook, no Twitter, na página do B9 ou pelo nosso e-mail cheiroso: mamilos@[email protected]
Ju: O Mamilos acontece graças ao um grupo de voluntários que se dedicam com muito amor para colocar esse programa no ar.
Na edição e no som do Mamilos: Caio Corraini
Redes sociais com a maravilhosa Luanda Gurgel, Guilherme Yano e Luiza Soares.
O apoio a pauta, com muito apoio: Taty Araujo e Jaqueline Costa
E a transcrição do Mamilos com a equipe maravilhosa da Lu Machado, que vocês já conhecem.

Cris: Vamos então para o Fala que Eu Te Escuto:
[sobe trilha]
[desce trilha]
Cris: O primeiro e-mail é do Gilberto Lopes:
“Sou um professor de quase cinquenta anos, e claramente não pertenço ao grupo que está ligado às novidades como podcasts. Mas, por sorte, tenho um filho jovem, que, sim, pertence a essa geração e colocou em minhas mãos as ferramentas necessárias para descobrir essa mídia fantástica com tanta coisa interessante.
Desde então tenho frequentado e visitado vários deles; alguns me conquistaram outros não, até que cheguei até vocês e então parei. Já fiz minha maratona e ela foi importantíssima para que eu entendesse a essência daquilo que vocês estão fazendo.
Sou professor em universitário no curso de graduação em História, em Santo André, e há vinte anos venho preparando professores do ensino médio, de História. E foi uma agradável surpresa descobrir, quando postei minha admiração pelo trabalho de vocês em meu Facebook, que muitos dos meus alunos escutam e amam o Mamilos e ficaram admirados que eu também tivesse me tornado um Mamileiro.
Vocês fazem as pessoas largarem as suas certezas em face de uma certeza ainda maior, que é de que, quando conversamos nessas condições, alguma coisa mágica acontece. Acontece comigo e com muita gente, tenho a certeza que ninguém ouve o Mamilos quieto, não faz sentido. Eu converso com vocês o tempo todo, apresento meus argumentos falando ao mesmo tempo, que os convidados, e muitas vezes alguma de vocês duas assume o meu argumento e me fazem vibrar com isso. Quando isso acontece não parece que o podcast foi gravado há alguns dias e eu só estou ouvindo agora, parece que ele está sendo feito diante de mim e estou tendo uma participação direta nele.
Essa é a magia, e é isso que ninguém mais que está fazendo podcast, consegue além de vocês.”
Ju: Foi muito fofo né? [risos]
Cris: Nossa…
Ju: O Marcelo Nem sobre o assunto do papo do aborto disse:
“Acho que quando se discute aborto, sempre se tem uma tendência a tachar a polêmica como religiosa, invasora, conservadora e machista. Como se fosse uma decisão errada. Acho que é um dos pontos que mais temos dificuldades em escutar o outro. Do meu ponto de vista a vida humana começa na hora da concepção e por isso sou contra o aborto. Sei que essa característica biológica causa consequências sociais que facilitam o machismo. Mas não acho que liberar o aborto seja uma condição válida. Precisamos como sociedade, criar meios de dar condições, independentes de sexo, mas relativizar o início da vida não é uma alternativa.
Consequentemente, se a razão para minha posição é essa, não é possível relativizar a regra. Pois se já trato uma vida humana, em diferentes condições físicas, se a criança tiver uma doença, como a Microcefalia ou da origem de estupro.”
Enfim…
A gente selecionou esse comentário, porque a gente estava falando num Trending Topics que não é um programa que tem a meta de trazer diferentes visões, e sim mais de opinião. Acho que para quem ficou tocado por essa discussão de aborto, pelo jeito que a gente falou e tal, vale muito a pena escutar o Mamilos #02, que a gente aborda o aborto como teta e aí sim tem pluralidade de informação, ponto de vista, de argumentos. Vocês vão ouvir uma discussão muito mais aprofundada sobre esse assunto e vale muito a pena, até porque tivemos essa semana desenvolvimentos nesse assunto. Quem tiver interesse nesse debate nós já gravamos sobre isso.
Cris: O Felipe Borteleto disse:
“De início já digo que sou a favor da legalização do aborto. Mas, pensando, me vem um problema a mais com esse fato de aborto, que é a mulher não querer, mas o homem querer o filho.
Nesse caso a mulher tem o direito de retirar o feto ou não?
Ok, meu corpo minhas regras, mas o homem tem uma parcela dele ali também. Então, até que ponto um mulher teria direito de decidir que não, que ela não quer ter o bebê e vai tirar, independente se o pai quer ou não. Aí ela não estaria passando sobre os direitos daquele homem?
Sei que na maior parte dos casos que se pretende abortar, o homem não está nem aí para a criança, até mesmo nem sabe da existência dela.
Um exemplo que se dá, num episódio de Grey’s Anatomy (que é uma série). A doutora Yang decidi abortar, mesmo seu marido (ainda na época), querendo mais que tudo em ser pai.
Até que ponto a máxima ‘Meu corpo, Minhas regras’ pode passar por cima do direito de alguém de ser pai e ver o filho nascer? ”
Ju: Uma boa discussão, para um próximo episódio.
Cris: Exato.
Ju: Sobre a Argentina, o Gandolf.
De novo, ele sempre comenta, muito obrigado por você não desistir da gente, por você estar sempre aqui, apreciamos muito a preferência. [risos]
Disse assim:
“Em 2010, participei de um projeto que fez análise dos processos de negócios de filiais de uma empresa de diversos países, sendo a Argentina um deles. Uma das coisas que mais me chamou a atenção é que a área de planejamento sempre busca índices independentes para se orientar, pois ninguém confiava nos índices divulgados pelo governo. Repito, o governo mentia repetidamente, ano após ano, na cara dura.
E sobre o suposto ataque do FMI ao Neoliberalismo, ele recomenda o episódio #57 do podcast Vinte Centavos.”
E vamos para o merchand. Eu queria falar que, nesse final de semana, eu o Oga estivemos na conferência do grupo de planejamento. E foi um evento muito, muito legal, foi muito bem organizado, o conteúdo estava muito bom. O tema do encontro esse ano era: “E agora?”, falando justamente do momento de encruzilhada que nós estamos, de incertezas e que ninguém tem certeza de que ninguém tem as respostas.
E estava bem plural no sentido de buscar as respostas de economia, sociedade trazendo filósofos; ter planejadores, que saíram da profissão de planejamento e já estavam fazendo outros coisas; teve planejamentos que viraram CEO de agência, outra postura, outros desafios, outros olhares; teve sessão de “Pet a Cutia” com vários planejamentos, falando: “E agora, Planejamento, para onde a gente vai, para onde esse mercado vai?”…
E teve o nosso painel, sobre Diversidade que foi coisa linda, né, Oga?
Oga: …eu já estou aparecendo, já dei spoiler.
Ju: [risos]
Oga: Foi demais, foi incrível participar, e principalmente foi legal ver a presença de negros por lá também. Poucos, mas muito importante, se apoiando, se ajudando. E ver muitos não negros, realmente preocupados. Logo depois que teve, vieram me abordar e perguntar: “Putz, realmente eu quero gerar uma diversidade honesta na minha agência, no meu trabalho.” E então eu acho legal de conseguir levar essa discussão além do mundo acadêmico, além da internet, fazer essa discussão fora da bolha ou criar uma bolha de contato mais real.

Ju: É, então fica aqui, meu super parabéns para o Ken Fujioka, que organizou esse evento e para toda equipe de conteúdo do grupo de planejamento, o João, o Troster e o Nilton Nangun, parabéns galera, arrasaram!
[sobe trilha]
[Negro é lindo,
Negro é amor,
Negro é amigo,
Negro também é filho de Deus.
…]
[desce trilha]

Cris: Já com spoilers, vamos fingir que não ouvimos e vamos perguntar: Quem está na mesa essa semana?
Tem ele, a voz de veludo do Mamilos, o homem mais amado e mais pedido, Oga se apresente por favor.
Oga: Olá, eu sou Oga Mendonça, mais uma vez aqui. Eu sou design multimídia e atualmente…
Cris: [sugere] …podcaster.
Oga: [riso] Podcaster.
Ju: “Meu passe foi comprado pela família B9.”
[risos]
Oga: Vocês vão ver eu por aí, flertando em outros podcasts. E atualmente eu tenho trabalhado muito com vídeo, com edição, direção, motion… enfim, pau para toda obra.
Cris: E tem gente nova na mesa, gente linda que já chegou toda bafônica, arrasando aqui. Xênia, muito obrigada, por favor se apresente para os nossos ouvintes.
Xênia: Olá, eu sou Xênia França, sou cantora, compositora. Estou aqui muito satisfeita, muito feliz pelo convite do Mamilos, em especial ao convite do Oga, que me acionou ontem, uma pessoa que eu admiro muito, um homem que eu admiro muito, a caminhada dele é fantástica eu sou muito fã dele.
Cris: [interrompe] Nós também! Olha só!
Ju: Olha como a gente tem tanto em comum.
[risos]
Xênia: É muito legal! Isso é muito legal a gente poder falar de boca cheia de um homem admirável assim, porque isso é muito importante, que os homens estejam atentos com toda essa discussão. E é isso, eu estou bem alegre com toda essa discussão, com o contexto de estar com vocês hoje debatendo tudo isso nessa mesa.

(Bloco 2) 11’ – 20’59”
Cris: [interrompe] Que delícia!
Oga: Eu estou colado no teto agora, elas estão me puxando…
[Risos]
Oga: Obrigado!
Cris: Aumentou a sua responsabilidade, hein, Oga!
Oga: Ai, meu Deus! Olha a dificuldade…
[Risos]
Cris: O Mamilos dessa semana é o especial “Teta do mês”. A gente vai falar sobre Consciência Negra. Qual é o fato? Por meio da Lei 12519 de 2003 instituiu-se 20 de novembro o Dia da Consciência Negra no Brasil. Nessa data é feriado em 1047 das 5570 cidades brasileiras. Muitos municípios alegam questões econômicas para não declarar o feriado, como Porto Alegre fez esse ano. De qualquer maneira, todos os anos vem à tona a discussão sobre a necessidade e importância dessa data. De um lado pessoas que reivindicam o dia como um momento em que a sociedade brasileira deveria refletir sobre o que é ser negro no Brasil e reverenciar Zumbi dos Palmares. Do outro, pessoas que acreditam que a data é segregacionista e desnecessária. Entender porque há um dia para se refletir sobre a luta e resistência negra passa necessariamente por entender um pouco de história. O Brasil tem 516 anos dos quais 350 foram vividos com a prática da escravidão. Há 128 anos a abolição aconteceu. Fomos o país que mais recebeu negros escravizados, mais de cinco milhões de pessoas, e também o último país a abolir a escravidão no mundo. Estima-se que mais de 150 milhões de pessoas viveram e morreram como escravas no país, pessoas negras que perderam suas famílias, patrimônio, nome, dignidade, história e vida. Compreender o que aconteceu desde então nos mostra a nossa realidade atual. Esse é o objetivo do Mamilos de hoje: ouvir e aprender com pessoas negras sobre a sua história e debater sobre os caminhos por onde esse aprendizado pode nos levar. Vem, sem medo, entender para evoluir. E para começar a gente vai chamar o quote rápido do Túlio, que vocês já conhecem porque ele já participou aqui com a gente, e ele vai falar um pouquinho sobre como surgiu e para que serve o Dia da Consciência Negra.
Túlio: Olá, meu nome é Túlio Custódio, eu sou sociólogo, também sou curador de conhecimento pela “Inexplorato”, atuo no coletivo Sistema Negro e também sou criador de um site de referências chamado “Pitacodemia”. Bom, se for a gente falar um pouco sobre o Dia da Consciência Negra, dia 20 de novembro, eu acho que a gente precisa falar um pouco sobre como ele surgiu mas, em especial, para que ele serve, né, qual a importância dele. Bom, ele surgiu legalmente em 2003 como uma demanda histórica dos movimentos negros no Brasil para criação de uma data que tivesse um vínculo com a memória negra, com a memória protagonista negra, na história do país. Vinte de novembro foi escolhida por conta da data que seria atribuída a morte de Zumbi dos Palmares, né, um dos líderes dos maiores quilombos da história do Brasil que teria sido morto no dia vinte de novembro de 1695, né, quase trezentos anos aí depois, uma devida homenagem legal dentro do nosso calendário nacional. A essa data… a origem da data entra também numa esteira de algumas políticas públicas que foram construídas historicamente, de vinte anos para cá, na nova era democrática, que inclui, por exemplo, a Lei 10639 que torna obrigatório o ensino da história da África e cultura africana nas escolas de ensino básico, né, fundamental, enfim em umas outras séries de coisas como as políticas de ações afirmativas e tudo mais. Agora, o que é importante da gente trazer, lembrar, em relação ao porquê de vinte de novembro ser importante. Primeiro porque ele é fruto de uma pauta histórica dos movimentos negros. Essa pauta histórica diz muito sobre a importância da gente reconhecer: um, o olhar para a história do Brasil e todo o legado, todo o pertencimento e colaboração que o povo negro de origem africana trouxe e que não devia ser colocada apenas nesse lugar passivo que a historiografia branca clássica coloca do negro como um escravo, né, desde a sua colaboração da língua, desde a sua colaboração nos costumes, a culinária, a cultura, enfim, a própria memória de resistência, então era importante trazer o negro, lembrar do negro como protagonista e não como uma vítima somente da história; em segundo lugar, é um protagonismo vinculado ao negro e não ao branco, que é muito costumeiro dentro da historiografia, né. Quando se fala da questão da escravidão e, consequentemente, do seu fim, se fala da importância de uma mulher branca, que no caso seria a Princesa Isabel, no protagonismo do final da escravidão. Na verdade, você lembrar de Zumbi dos Palmares, de várias outras revoltas como a dos malês e por aí vai, é você lembrar que os negros lutaram, sim, arduamente contra essa situação, contra a situação de escravismo ao qual eles se encontraram por quase quatrocentos anos. Outra questão importante é que a questão da Consciência Negra traz a memória essa importância, acho que meio que já falei isso, mas vale retomar: a importância desse contingente negro para a população brasileira. A gente chama… Culturalmente o Brasil é o país das misturas, é um país que nasceu misturado, e aí há todo um imaginário historiográfico e sociológico que foi construído em torno disso, mas é importante lembrar que muito do contingente dessa mistura vem dessa herança africana, dessas matrizes de cultura africana, e aí é importante, né, uma data que traga essa memória à tona e valide e dê importância, valorize, né, o que é esse contingente, até porque uma das consequências que o racismo nos coloca, o racismo estrutural que ainda acontece no Brasil, é a negação, é o apagamento, é o que alguns pesquisadores chamam de “epistemicídio”, que é a morte de uma episteme africana, ou africanas porque você tem várias origens, que nós temos dentro da nossa sociedade, né, o negro é completamente apagado, enfim. Em suma, a importância do seu dia é o entender a valorização de uma memória de resistência e protagonismo negros na nossa sociedade e que a gente precisa ter isso sempre claro, sempre vivo porque, infelizmente, o racismo estrutural ele continua a matar, a dizimar e a destruir a dignidade do negro brasileiro.

Cris: Tem muitas coisas interessantes na fala do Túlio, mas a primeira que eu queria puxar, muito rápido aqui mas eu acho que não pode faltar, é falar um pouco do Zumbi dos Palmares. Eu não sei você, Ju, mas eu passei muito rápido por esse pedaço da história nas aulas de história, como se fosse um período pequeno e na verdade ele corresponde a bem mais que a metade da nossa idade, né, enquanto sociedade. Então, quando a gente fala “Ah, porque é Zumbi, foi líder de um grande quilombo”… Cara, Palmares chegou a ter mais de trinta mil pessoas. Então essas pessoas que fugiam de fazendas variadas iam para essa região e elas se sentiam seguras nesse lugar e elas começaram a construir uma sociedade, que também tinha seus problemas, que era uma sociedade fruto de pessoas fugidas. Então o clima de tensão já estava posto nesse lugar. E esse quilombo tinha um governante máximo que era o Ganga Zumba que, em determinado momento depois de muitos anos de briga com a cidade, foi proposto a Ganga Zumba uma pausa, mas desde… Os negros ali seriam alforriados, mas desde que eles reverenciassem a coroa e é nesse momento que Zumbi fala “Uêpá! Vai ter nada aqui não…” e aí ele assume, com o apoio de outros negros do quilombo, ele assume a liderança ali e eles começam todo um ato de resistência ainda mais forte contra a coroa, contra a sociedade ali colocada. Zumbi foi amplamente perseguido durante muitos anos até que ele… Finalmente eles conseguem fazer todo um arsenal ali, quinze anos depois dessa negativa. Então, assim, demorou muito, mas conseguiram invadir o quilombo, ele ainda conseguiu fugir e passou três anos foragido quando enfim ele foi capturado e aí foi um massacre, né, porque ele foi morto, degolado, a cabeça dele foi salgada e foi apresentada porque tinha toda uma lenda que ele era imortal então era necessário realmente expor aquele corpo. Então quando a gente vai falar de herois, e aí não estou falando só do Brasil, estou falando do mundo inteiro, quando vai se colocar herois, eu acho que a gente perde muito quando a gente não fala de Zumbi porque ele é realmente o que se tem de referência de resistência negra no Brasil, é a resistência máxima. Então nada mais justo do que atrelar a data da Consciência Negra à data desse grande revolucionário.

Oga: Tem vários casos aí, né? Uma coisa que eu acho bem complexa, quando você fala que você passou muito rápido, você teve sorte de passar, né?

[Condordância da Ju]

Oga: Porque, na escola pública, eu não passei nem rápido. Então assim, você teve umas citações muito levianas, ainda mais que sou um pouquinho mais velho que a média da galera, eu tenho 37 anos. Então assim, nos anos 80, era uma passagem muito leviana, a imagem que eu tinha de Zumbi era sempre assim: era um escravo que se rebelou, mas era uma coisa muito… Assim, outras revoltas, Malês, mesmo Ganga Zumba que tem uma história incrível… Também não, nem é tocado. E por quê? Porque a história é contada por brancos, né? Porque, geralmente, o acesso da maioria… Isso é que história… Você vai numa internet da vida tem muito negros…

Ju: [interrompe] A história é contada por vencedores…

Oga: Mas é sempre assim. Então assim, agora a gente está tendo um momento e mesmo hoje em dia eu vejo muito. Você procurando Zumbi, você também procura uma referência de um livro, de um jornalista polêmico, do [Leandro] Narlock, falando, tipo, contrariando tudo e aí você começa a ver várias blogs falando “Não, mas Zumbi tinha escravo… Mas Zumbi não sei o que…” e você vê que é a mesma fonte. Então isso eu acho muito estranho porque você vê várias pessoas pesquisando a vida de Zumbi, de fontes diferentes, tem uma parte da história que é oral, por exemplo, o Rosto de Dandara, ninguém sabe o que é, como é… Porque realmente não tinha como…

Cris: [interrompe] Dandara! Se falam pouco de Zumbi, Dandara então…

(Bloco 3) 21’ – 30’59”
Oga: Que é absurdo você ter o apagamento dessa mulher, então assim, a gente está no começo dessa discussão, ainda tem que aprofundar muito. Então por isso que eu acho que até quem levanta a polêmica de Zumbi – porque tem essa discussão até dentro do movimento negro, tem muita gente que fala “ah, é o Dia de Zumbi, mas é o Dia da Consciência Negra” -, mesmo quem levanta, se fala assim: “a gente está no começo da discussão”. Então, assim, amigos que tão ouvindo e que querem sempre, porque ouvem o Mamilo e querem ter sempre os dois lados, tal, aí fala “ah, mas vocês não estão falando disso”: tenham empatia, entendam que tem um lado dessa história que não tá – vamos discutir meritocracia, né? – tem um lado que não saiu da mesma base, tem um lado que não foi contado. Então, assim, a história negra brasileira não foi contada com um olhar negro, né? Não teve essa perspectiva, a gente sempre teve esse olhar da história do vencedor, por mais que a gente vê na história muita gente defendendo a monarquia e aí tem esse endeusamento da Princesa Isabel, porque contando a história do Brasil pela monarquia é incrível, eu queria morar nesse país até hoje (rindo)…

Cris: É, eu acho muito interessante porque tem um outro ponto na fala do Túlio que eu queria destacar, que são “negros escravizados”. Muitas vezes, o que a gente ouve quando se fala de história, fala assim: “ah, porque os escravos, os escravos”… As pessoas não nascem escravas, elas são escravizadas! Então o que a gente tá falando são de pessoas livres, pessoas negras que se tornaram escravas, eles não são, ninguém naturalmente é um escravo. E quando a gente vai falar um pouco dessa história, que é a nossa relação brasileira com a história, né? Eu acho isso muito interessante, porque até parece que a gente é a Grécia, né, que tem milhares de anos, então na sua aula de história tem que passar rapidinho mesmo, porque tem muita história (rindo). Não, são 500 anos, dos quais 350 praticamente ficam ignorados. Mas quando você para pra olhar a nossa relação com a história, você vê também que a gente não tem biografia, tem uma biografia de um homem que foi escravo no Brasil e depois fugiu pra Nova York…

Oga: [interrompe] Que é fantástica, né?

Cris: Ela foi traduzida tem 2 anos, só, então é tudo muito recente. E tem algumas outras passagens muito interessantes na nossa história – interessantes pra dizer o mínimo -, como, por exemplo, em 1889, o Rui Barbosa, que era o Ministro da Fazenda, então logo nas portas do que aconteceu a Abolição, os senhores de escravos, eles não tinham direito à indenização. Afinal, “opa, como assim, você escravizou pessoas, sejamos ponderados”. “Opa, não, é escravo”… E aí…

Ju: [interrompe] “Não, o Estado me tirou os meus bens a partir do momento que ele fez uma lei que mudava a regra do jogo.”

Cris: Tirou seu privilégio, né? Então você vai ter que me pagar…

Ju: Exatamente…

Oga: É, porque com a lógica dele é como se o estado pegasse o trator dele…

Ju: [interrompe] Exatamente…

Oga: E falasse assim: “então, seu trator, agora, tá na rua, tá livre, roubamos o seu trator”. Eles tratavam assim, como uma questão econômica, né.

Cris: [interrompe] Exatamente…

Oga: Por isso que para o movimento negro é muito difícil entender essa visão como se fosse, assim, um “banho de humanismo”, né, Xênia? “Um banho de humanismo dessas pessoas que falaram: não, vamos libertar…”, era uma questão econômica muito forte! Já tinham muitos arranjos, já tinham muitos escravos e donos de fazenda que perceberam que tava difícil manter esses caras ali, que tinha que pensar de uma outra forma…

Xênia: [interrompe] Já tava rolando uma crise econômica forte nesse período do Brasil e era necessário tomar uma medida.

Cris: E aí, no meio desse confronto todo de senhores querendo pedir indenização, Rui Barbosa tomou uma medida extrema: ele mandou queimar todos os livros que existiam de registro de negociação de escravos pra que não tivesse como pedir nenhum tipo de indenização. É tipo: “vamos acabar essa conversa agora, queima tudo”. E o que que era, eram livros de matrícula, desses controles de recolhimento de tributo onde tinham todas as partes ali de comprovação de natureza fiscal, que era desses senhores de escravos. Com isso, destruindo esses documentos, os caras não conseguiam pedir indenização, mas também a gente perdeu tudo de história em termos numéricos, de negociação, de lucro, de morte, de nascimento…

Oga: E tem muita gente que questiona até os nomes, né…

Cris: [interrompe] Exato…

Oga: Então, assim, ninguém sabia, mas é isso. Eu não sei o meu nome africano.

Cris: [interrompe] Sim, sim…

Oga: O meu nome da parte espanhola da minha família eu sei, sei até que foi alterado, até trocaram o “z” por “ç”.

Xênia: Sim, mas geralmente os nomes já eram apagados na chegada, né… Descia do navio e essa pessoa era rebatizada no momento que ela tocava o solo brasileiro, então é praticamente impossível.

Oga: É, eles dizem que até tinham alguns que sabiam ler, porque também é isso, né, as pessoas acham que todo mundo era…

Xênia: [interrompe] Era analfabeto, nesse sentido.

Oga: …era uma tribo indígena. Tinham vários que sabiam ler e até falar mais línguas, né? Principalmente os muçulmanos que vieram. E aí tinham alguns que conseguiram ter documento e falar “meu nome é esse”. E assim, nem esses tiveram a chance…

Cris: [interrompe] Quando a gente fala que perdeu o nome não é à toa, né, a pessoa perdeu a identidade, porque, principalmente como vieram negros de muitas etnias diferentes, de alguns lugares bem distantes até na África, ao chegar no Brasil, a galera não é boba, nada, “vamos separar esse pessoal aqui, misturar todo mundo, para que eles percam essa identidade de continente”.

Xênia: Eu gostaria de, inclusive, abrir um parênteses aqui importante, porque já que a gente tá falando sobre a Consciência Negra e tal, e falando para pessoas que provavelmente não sabem, não fazem a menor ideia desse assunto, que a África, minha gente, é um continente, viu? Um continente e tem muitos países diferentes, a África não é um país. Então quando a gente fala “os africanos”, “os negros”, naturalmente quem conhece o assunto vai fazer a relação devida, mas muita gente que não sabe pode achar que a África ainda é um país. Então vamos começar dizendo que a África é um continente com diferentes…

Cris: [interrompe] E muitos, né?

Xênia: E muitos países. Inclusive, em um único país, em uma única cidade pode se falar 16, 17 dialetos onde as próprias pessoas próprias não se entendem, então…

Cris: Imagine, chegando aqui misturaram todas essas pessoas, então elas também perderam a identidade familiar, né, porque as famílias foram separadas. E quando a gente fala de pessoas capturadas, a gente está falando inclusive de pessoas com alto poder aquisitivo na época, na África. Então aquelas pessoas, imagina só, a pessoa que era Rei lá de repente vira escrava aqui. Então a gente tem toda essa perda da dignidade, do cabelo, que é uma marca muito registrada da chegada dos negros da África no Brasil, que tiraram o cabelo principalmente para as pessoas que têm todas as religiões de matriz africana, o cabelo tem todo um significado da entrega, da dignidade e da identidade da pessoa negra. Então essas pessoas perderam tudo isso. Então quando a gente faz aqui uma parada para falar de história é porque geralmente a gente não se prende a isso, é muito difícil discutir atualidade sem perceber o quanto aconteceu de tudo isso.

Ju: Acho que é importante a gente conceituar o tamanho do que foi esse problema e do quanto a gente tá falando, né? O quanto a gente representou no cenário global: quase metade dos escravos que vieram pra América, 45% veio só pro Brasil. Então esse é o tamanho do contingente, o que a gente representou no todo do problema. Quase 50% das pessoas que foram retiradas das suas casas para virem fazer trabalhos forçados nas Américas, quase metade do problema no Brasil, né. E aí é nisso que a gente traz uma discussão que é o quanto a gente vê, proporcionalmente, essa discussão nos Estados Unidos e no Brasil. Então, assim, são jeitos diferentes de se discutir a questão racial. Então, ok, a gente não chegou a ter leis segregacionistas como os Estados Unidos tiveram, então a discussão não chega no âmbito da Lei, então não chega, o assunto não vai para mesa com a mesma…

Cris: [interrompe] Clareza.

Ju: …clareza que aqui, mas você tem também, sei lá, na época, justamente por conta dessas leis, os movimentos que se formaram e a consciência que se juntou ali é diferente do que a gente tem aqui. Faz a gente acreditar que são os mesmos números, quando não é. Lá a gente tá falando de uma minoria, aqui a gente não tá falando de uma minoria, né? Na composição da população brasileira, a gente não tá falando de uma minoria, né?

Cris: E é interessante você falar sobre minoria porque muita gente fala “ah, mas não é minoria”. Então quando a gente tá falando, tanto mulheres, quando a gente fala que mulheres são minorias ou negros são minorias, não é numericamente menor. O que quer dizer é…

Ju: [interrompe] Espaços de poder são menores.

Xênia: E em ocupação mesmo, em participação na sociedade, oportunidade, representatividade, grau de equidade, né?

Cris: [interrompe] Exato.

Xênia: Em várias esferas você vai avaliar números, como vocês fizeram na pauta, e avaliar quantos médicos se formam e quantos deles são negros, é muito discrepante. Então não existe, não dá nem fazer uma comparação, não dá nem pra…

Cris: [interrompe] É, quando a gente tá falando de exatamente falar sobre ser minoria, quer dizer que ele é o maior grupo vulnerável. Então é minoria na hora de apitar e não necessariamente na hora de fazer. E como se já não bastasse, a gente ainda tem um outro capítulo complexo na nossa história que vem na sequência desse e a gente começou a discutir ele com um pouquinho mais de assertividade muito recentemente. Em 1995, os arquivos do Itamaraty foram abertos e aí uma parte da documentação ali revelou que a instituição acabou participando juntamente com outras instituições governamentais de políticas públicas ali implementadas no século XIX e início do século XX pra fazer um “embranquecimento” da população. Então, ali, a ideia era transformar um país com 70% da população constituída de pessoas negras e mestiças em uma raça mais “desenvolvida”. E aí é bizarro, tem todo um plano… O Brasil participou em 1911 de um congresso de raça…

Oga: [interrompe] É, o estudo da eugenia tá junto disso.

Cris: Tem todo um estudo com números apresentados incentivando a mistura de raças no Brasil, incentivando a imigração de povos da Europa em quatro gerações. Ou seja, em 100 anos, a gente teria uma população branca. Então ainda tem todo esse plano que hoje tá, esses documentos estão abertos pra acesso, fica abafada essa discussão, né?

Oga: É, só uma curiosidade: por exemplo, em São Paulo essa política foi levada tão a sério que o bairro da Liberdade era um bairro negro. E assim, hoje só tem uma igreja lá que representa isso, então assim, eles puseram imigrantes japoneses ali, “fiquem ali”, e empurraram os negros, então rolou uma gentrificação, os negros foram empurradas cada vez mais pra zona norte, pra zona sul, foi criando-se periferias em São Paulo, né, então bairros como o Bixiga, né, que teve o samba lá, ele teve essa mistura porque tinha os italianos que chegaram, mas antes moravam os negros lá. Então isso é muito maluco, assim…

(Bloco 4) 31’ – 42’07”
Xênia: Higienópolis né, esse, o nome: HI GI E NO PO LIS
Oga: exatamente
Xênia: procure saber (juntas)
Cris: não ajuda (juntas)
[Risos Xênia]
Cris: não ajuda
Oga: então assim, essa higienização, essa, essa forma de você limpar a cidade, branquear a população entendendo como o branco ser uma coisa melhor e o negro ser uma coisa pior, é um pensamento antigo, né.
Cris: é, quando você via uma pessoa que te servia que não ganhava nada por isso, que limpava sua casa, que fazia todo o seu trabalho, que te vestia e de repente você ter que conviver com essa mesma pessoa na sociedade, agora ela não sendo… Qualquer semelhança com o presente é mera… [risos Oga] mas, essa pessoa agora sendo seu igual, simplesmente houve uma mudança econômica, mas não houve uma mudança de mentalidade. [Oga concorda] as pessoas continuavam e infelizmente alguns até hoje, enxergando esse negro como uma raça inferior e é aí que também se embranqueceu muitas personalidades da nossa história né, [Xênia: padrão, padrão] quando a gente vem contando essa história, é quando a gente fala de Aleijadinho, [Xênia: sim] de Machado de Assis, de Ruy Barbosa, de lima Barreto, que todos são negros e nos livros fica assim tipo, não, eles não são negros, o que faz parecer que o negro não participou da construção da história do Brasil que ele era somente um serviçal, sendo que na verdade a gente teve sim, grandes pensadores, juristas, jornalistas, pessoas negras que fizeram parte da construção da sociedade.
Ju: é uma discussão que é interessante, quando a gente fala sobre isso, de que aboliu a escravidão, mas não o pensamento que permitiu a escravidão, quando você fala do quanto a escravidão custou prum povo e de quanto ela ainda hoje é presente e responsável pela desigualdade racial no Brasil, principalmente a parte econômica. A gente tava discutindo aqui antes de começar a gravar, sobre como em São Paulo você consegue fazer uma discriminação econômica, pra não precisar falar da questão racial, então, a gente não tem conflito racial porque você não precisa conviver, porque você já separou por renda, então o negro já tá segregado nas periferias, você já não vai conviver nos circulos com pessoas negras, porque você já conseguiu resolver esse problema de não ter que conviver com a questão econômica. O quanto a gente volta pra questão econômica quando você olha pra pirâmide econômica do Brasil e você vê a distribuição racial dentro da pirâmide econômica, fica, eu acho que, independente da sua vertente do que que você acredita, sua visão de mundo [Oga: se é liberal, de esquerda] isso de verdade eu acho que quando você vê essa pirâmide, fica muito claro entender que talento e força de vontade são razoavelmente, igualmente distribuídos em qualquer raça, acho que isso ai ninguém discorda disso, quando você vê a pirâmide, você fala: cara essa pirâmide não reflete, porque, se você tem pessoas de todas as raças com a mesma capacidade e com o mesmo grau de interesse, por que que tá tão desbalanceada essa pirâmide?, então aí você volta pra questão da escravidão de como a gente tem diferentes oportunidades, de como foi… A gente ainda não se recuperou desse gap. E aí tem muita gente, Oga, que questiona esse olhar e essa explicação falando assim: pô, mas olha os imigrantes, também chegaram com uma mão na frente e outra atrás, então faz o seguinte… isso que a Cris tava falando dessa tentativa de embranquecer e de trazer um monte de imigrantes.
Oga: [interrompendo]É, é, e mesmo isso é muito questionável né…
Ju: [interrompendo] O que que as pessoas perguntam assim, cara, a partir do momento que você teve abolição, no mesmo momento chega o imigrante com uma mão na frente outra atrás, como que ele chega? Ele chega devendo, porque ele chega já devendo a passagem, ele chega devendo a casa onde ele vai morar, a comida que ele vai comer, foi muito difícil pros imigrantes que vieram porque também foi uma armadilha vir pro Brasil, porque eles vinham achando que iam receber terra, aí não recebiam terras e ficavam nesse sistema que não conseguiam pagar as dívidas. Com tudo isso, esses imigrantes conseguiram ascender socialmente. Essa é a pergunta que geralmente eu, assim, me esforçando pra tentar buscar pessoas que têm questionamentos sobre isso, essa for a pergunta central, que é: qual é a diferença de que: por que a gente não conseguiu mobilidade econômica e mobilidade social pros egressos da escravidão, então, pros alforriados, por que eles não conseguiram ascender, quando os imigrantes chegaram em situações, de maneira nenhuma igual, mas em situações também difíceis de partir do zero e conseguiram construir?
Oga: tem vários pontos pra esclarecer nisso. Primeiro que, não são todos os imigrantes: tem documentado, vários imigrantes que tiveram uma ajuda, sim, que tiveram tipo um apoio do governo , uma cota imigrante, então assim, isso já tá documentado enfim, se alguém tiver interesse pode procurar melhor, eu não tenho esse dado aqui. Outra questão: a gente ignora a questão da ancestralidade, então, assim, o imigrante judeu que veio pra cá, ele se ajudava, o italiano ajudava, muitos já tinham conhecimento da Europa. A gente tem que lembrar daquele ponto que a Xênia lembrou aqui, que é isso, é que você misturou, você quebrou a ancestralidade, você misturou tribos, você botou povos que eram inimigos na África juntos. Então só de você quebrar esse ciclo de ancestralidade de um avô ensinar um ofício para o neto, então assim, o que os italianos tinham?, o que os japoneses tinham em São Paulo?, todos já traziam uma bagagem que era um ensinamento vindo do avô, então, o cara não tinha escolaridade, mas ele já tinha uma função. Os negros não tiveram essa oportunidade. E aí a gente vai cair também no racismo estrutural, então assim, os italianos vieram pra cá, o padrão de beleza em São Paulo era italiano, os caras tinham um bairro que tinham uma relação muito diferente né, a Mooca, eu estudei na Mooca, as pessoas falam com sotaque italiano até hoje lá, o poder que isso tem na representatividade, isso é de muito tempo, sabe… a gente não tem essa mesma exaltação da cultura negra, a gente não teve, então assim, o negro sempre foi visto como a escala menor, depois a Xênia fala, eu nem quero falar da questão da mulher negra, então, dessa imagem e já o imigrante já não, ele chegou aqui, mesmo com esses golpes, e eu entendo o que a Ju fala, mesmo muitos vindo em situação complicada e que eram golpes mesmo, né, que deixavam esses caras presos em algum sistema tinham condição, eles conseguiam se organizar como comunidade pra lutar contra isso, né, eles tinham festas que exaltavam a cultura deles, então é isso. Quando você vai pro sul você vê aqueles centros de festas , aqui somente em São Paulo os cordões eles foram considerados organizações políticas, então os cordões eram as escolas de samba de São Paulo, tanto que o governo interferiu nisso pra desmontar esses cordões, porque tinham discussões políticas ali, então assim o negro sempre foi visto como “não deixa ele se organizar, não deixam eles se entenderem como negro, como grupo” e por isso que muitos pardos como eu, gente miscigenada que não entendeu esse branqueamento – nem gosto de falar que eu sou pardo também, né, gente [risos ] vamos tomar cuidado com isso, depois a gente discute o colorismo, mas tá lá na minha certidão, escreveram pardo [risos] – enfim, você entende que teve toda uma desconstrução então assim, não deixa eles se juntarem, não deixa eles se entenderem como grupo, já os italianos, os japoneses, tinham o dia deles, a festa deles, vamos lá e…
Ju: [interrompendo] sabe porque que é importante isso, porque assim, a escravidão, ela tem pouco a ver com a questão racial, ela é uma questão econômica. Você pega um escravo desde o mundo é mundo, desde que a humanidade existe, o povo consegue dominar, que consegue conquistar faz escravos, isso é uma forma de dominação econômica tem pouco a ver com raça…
Xênia: [interrompendo] o escravo é… o escravo é uma mercadoria né, nesse aspecto começar de algum lugar, fazendo essa avaliação do europeu que vem pra cá, você parar num lugar na condição de escravo é muito diferente de você ser convidado a vir para um lugar ajudar no desenvolvimento do país, isso é…
Cris: [interrompendo] o ponto de partida diferente…
Xênia: [interrompendo] completamente diferente…
Ju: [interrompendo] é e…
Xênia: [interrompendo] você já assimila, eu sou convidado, você veio pra cá…
Cris: [interrompendo] amarrado…
Xênia: [interrompendo] você é uma coisa…
Ju: [interrompendo] você é uma coisa…
Xênia: [interrompendo] pra começar, você não é nem uma pessoa…
Ju: [interrompendo] você é uma coisa…
Xênia: [interrompendo] você não tem nem alma isso gera, um impacto, e o que eu consigo enxergar como herança da escravidão que se estende até o dia de hoje é muito extremo, que bate na questão que você mencionou da gente estar em São Paulo e não conseguir se relacionar, né, com pessoas negras no bairro onde nós estamos, onde não ser uma coisa tão plural como a gente gostaria que fosse…
Oga: [interrompendo] – tem uma questão, eu não sei se é esse ponto que você quer chegar Ju, tem uma questão também que as pessoas falam já me falaram isso, falaram assim: ah, mas tem povo que escravizou os outros os próprios negros se escravizavam na África – mas assim, o que eu acho mais complicado é que, a igreja, no caso a igreja católica, ajudou isso, o cara que é da África ele é filho de Cam, quer dizer, na igreja eles conseguiram achar um jeito de demonizar esse povo, então assim, mesmo que um mongol escravizou um chinês, tipo ele não é demonizado, ele não é considerado um ser sem alma, sabe alguém que tem que sofrer ou servir… [ Xênia concordando com toda a frase de Oga]
Xênia: [interrompendo] inclusive uma…
Oga: [interrompendo] desumanizado…
Xênia: [interrompendo] inclusive uma resposta…
Oga: [interrompendo] inclusive acho uma coisa mais complicada, assim…
Xênia: [interrompendo] inclusive uma resposta pra isso, não vou me lembrar o nome do livro agora, mas eu li numa passagem que diz que as relações de escravidão né, por exemplo na Nigéria, que é um país que exportou né muitos escravos pro Brasil é muito diferente de como se deu a escravidão no Brasil, o escravo dentro de uma família, por exemplo, nigeriana ele era visto como membro da família, ele servia, ele tinha funções mas ele não era mal tratado, ele não era espancado, ele…
Oga: [interrompendo] ele era visto como humano…
Xênia [interrompendo] ele era um ser humano que sei lá, vamos, vamos relacionar com os sistemas de castas na Índia, né, que é aquela pessoa, ela nasceu, não estou justificando e nem acho que isso seja uma coisa certa em pleno 2016, eu acho que…
Oga: [interrompendo] Não existe pari ainda e existe sistema de castas…
Xênia: [interrompendo] não, não, isso não deve acontecer em nenhum lugar do mundo, mas as relações de escravidão em muitos lugares na África, principalmente os países que exportaram escravos pro Brasil, eram essas, eram de extrema dignidade, a partir do momento que esses escravos entravam nesses navios e partiam pra aquela viagem sem volta, o que aconteciam com eles era da sorte deles, porque aqui no Brasil a gente tem relatos monstruosos das coisas mais absurdas que aconteceram nesse país, principalmente em São Paulo, em Campinas, por exemplo, que eu ouvi falar que Campinas era um celeiro de martírio, onde as pessoas castigavam os escravos, qualquer lugar do Brasil que eles estivessem, era um lugar, uma Cidade, um Município que era considerado um lugar para castigo, o negro tava dando trabalho, ele tava sendo revolto demais ele era levado para Campinas e lá era destinado às piores barbaridades que podem acontecer a uma pessoa. Então o Brasil, São Paulo, e Campinas, que é o último Município do Brasil a abolir, a abolir a escravatura, então a gente tem uma configuração de saber que essas pessoas elas não estavam na mesma situação que elas se encontraram aqui, entende, quando elas chegaram aqui, elas ficam a lei daqui não é a lei de lá, você não é um membro da minha família, sabe, você não é um membro da minha família.
(Bloco 5) 42’08” – 51’19”
Ju: É… Aí que eu ia chegar, porque assim: embora a questão seja econômica, você precisa de um sistema de valores que suporte um ser humano violentar outro ser humano sistematicamente. Então, o “12 Anos de Escravidão” mostra isso lindamente, que é assim: como que você pode ser um bom homem, temente a deus, bom pai, bom marido, um bom ser social, e ao mesmo tempo praticar violências cotidianas contra o seu semelhante? Então você tem que ter um sistema de crença, de valor, que permita isso. E o sistema de crença que permite isso – e a gente já falou bastante no Mamilos sobre isso, quem nos acompanha sabe – você parte da desumanização. Então, pouco importa se você é o Japonês que vai invadir a Coreia, pra matar, estuprar e sei lá mais o quê, você vai ter que desumanizar o coreano. Pouco importa se você é o macho alfa que vai abusar das mulheres, você tem que desumanizar as mulheres. E no sistema escravocrata, você precisa criar um sistema de valores – e é isso que o Oga estava falando – que entra religião, sociedade, cultura, estética… Entra o aparato todo para que isso justifique essa violência institucionalizada. E o que a gente está falando aqui – acho que pra responder esta minha pergunta, um arco meio longo – mas é que assim: qual é a diferença então entre o imigrante e o escravo alforriado? Quando você fez a alforria, você acabou, institucionalmente, em termos de lei, com a diferença econômica, mas você não aboliu a cultura, o sistema de valores e de representação que permitiu que aquele sistema econômico existisse. Então você cessou um modelo econômico, mas você não propôs um outro modelo de sociedade, de cultura, de visão, à partir daí. Então estas pessoas tinham que, não só, sair de um ponto econômico talvez semelhante ou um pouco pior do que o imigrante…

Oga: [interrompe] Nem isso eu concordo que era semelhante…

Ju: É, nem isso, né. É que isso você já desconstruiu, mas nem é só isso. É toda esta questão de cultura e de pensamento que também interferem nas oportunidades que você vai ter, nos empregos que vão ser oferecidos, nas possibilidades de estudo que você vai ter, enfim… As possibilidades não são iguais, é isso que precisa ficar muito claro.

Xênia: A exemplo da situação pós-escravatura, onde os negros foram deixados ao léu, não é? Não recebeu nenhum apoio do Estado, que foi um Estado escravagista, não recebeu nenhum tipo de apoio. Muitos escravos, para não morrer de fome, passaram a trabalhar voluntariamente nas mesmas casas que eles trabalharam. Para não morrer de fome, pagavam com seu próprio trabalho. Então continuavam sendo escravos. Aqueles ex-escravos que não permitiram isso, foram embora para cidades mais desenvolvidas. Sobraram… O que a gente vê até hoje na cidade de São Paulo: mendigos, prostitutas, então…

Ju: [Interrompe] Marginalizados, né?

Xênia: Marginalizados!

Ju: A gente entende marginalizado como bandido e criminoso…

Xênia: [Interrompe] Mas até isso…

Ju: Mas é marginalizado no sentido de à margem. À margem da sociedade.

Xênia: Sim, mas até isso. As periferias, por exemplo. Que a gente vai conseguir enxergar na maioria das cidades grandes ou pequenas. Na minha cidade, Camaçari [BA], já é uma cidade que tem periferia. A cidade, já é uma grande periferia, inclusive. Você vê pessoas, de maioria negra, encurraladas num canto da cidade, sem o menor acesso a absolutamente nada! Toda essa perseguição, tudo que a gente vive hoje e que a gente vive há 128 anos, pós-abolição da escravatura, toda essa herança que a escravidão deixou para o Brasil, ela é patrocinada. Ela tem uma estrutura, sólida, com conceitos, com leis, com um deus, que separa quem é pecador e quem não é, quem tem alma e quem não tem alma. Então, isso é muito importante que a gente deixar bem claro: essa atrocidade que existe no mundo, a diáspora africana, ela não foi e não se deu por uma curiosidade de pessoas que entraram no navio e foram viajar… Não. Elas foram raptadas. Elas foram roubadas de seus lares e de suas terras. Patrocinadas por uma igreja que pegou essas pessoas e disse: “Não, vocês não valem nada. A partir de agora vocês nos pertencem, vocês são um produto”.

Cris: É muito importante a gente falar que foram 350 anos fazendo isso.

Xênia: Exatamente. 5 milhões de pessoas que vieram só para o Brasil.

Cris: É muito tempo. E aí, quando se fala em 350 anos, viram mais de 150 milhões de pessoas. Então a distância, entre quem veio e quem passou pelo processo de abolição, é de muitas gerações. Muitas gerações. Uma conta muito superficial, mundial, conta que nós estamos entrando na quinta geração de negros abolidos. É muito pouco.

Oga: Pensando em geração e desconstrução, é muito recente.

Cris: O “New York Times” fez uma pesquisa recente sobre a árvore genealógica da Michele Obama. E a bisavó dela, era escrava, foi estuprada por um homem branco muito mais velho, [a criança fruto deste estupro] que vem a ser a avó da Michele Obama. Então assim, é muito pouco tempo, entre ter a sua tataravó [bisavó] estuprada, e estar ela [Michele Obama], hoje, na Casa Branca, sendo a primeira dama. Então foram quatro gerações. É pouco tempo. Se você pensar que o Brasil teve 350 anos, então esta identidade teve muito tempo para ser perdida.

Xênia: 350 anos de escravidão.

Cris: Isso. Pelos 350 anos de escravidão, teve muito tempo para esta identidade ser destruída.

Xênia: Oficiais, né. Porque pós-oficialização da abolição da escravatura, é de conhecimento de muitas pessoas, que a escravidão continuou sendo exercida por debaixo do pano…

Ju: [Interrompe] Com conivência do Estado…

Xênia: Inclusive tem um nome muito importante. Chama-se Chachá da Silva, um dos maiores traficantes de pessoas no mundo. Existe um dado, no Google as pessoas podem pesquisar. Esse homem, que é um homem africano, acho que mais especificamente de Angola, existe uma dinastia inteira dentro da família dele, existiam outras pessoas… É praticamente um reinado. Onde esse homem, ele conseguiu, pós-abolição da escravatura, comercializar, por debaixo dos panos, com governos que ainda estavam coniventes com esta situação, milhões de pessoas ainda. Então tipo, depois da abolição a gente viveu ainda um período muito longo. E uma coisa interessante, que às vezes me ocorre, assim, é falar de tempo, né. A gente está falando aqui sobre coisas que aconteceram há, no mínimo, 128 anos. Então as pessoas têm um distanciamento mental, psicológico e tal…

Cris: [Interrompe] Já passou…

Xênia: Quando as pessoas não querem falar sobre isso. Ou quando elas não estão interessadas, por uma série de motivos, elas já falam “ah, gente, vamos acabar com isso aí, porque isso aí já passou e tal”. Não passou. Não passou. Eu não posso falar pelas outras pessoas, nem nada, mas eu vou falar por uma experiência própria, dentro da minha casa, na minha família, pessoas mais próximas, que não estão dispostas a abaixar mesmo as armas. A tirar de si esta roupa. São muitas camadas de roupa, que foram colocadas nas pessoas. Não são só as pessoas, mas a estrutura social, o que a sociedade representa. E não quererem admitir que existe uma doença na nossa sociedade brasileira que é a chaga da escravidão. A escravidão é presente na nossa vida. Hoje, dia 30 de novembro de 2016, você vai circular… Você pode viver… Você pode escolher viver um conto de fadas… Entende? Vou dar um exemplo. Existem pessoas amigas minhas que falam assim “ah, o meu avô tinha uma fazenda”… Outro dia eu fiz uma comida na minha casa e uma menina… Tinham muitas pessoas na minha casa… Pessoas negras e tal… E as pessoas conversando, contanto, falando, debatendo, debatendo tudo isso que a gente está debatendo aqui, e ela começou a chorar, dizendo que estava se sentindo muito envergonhada, que não sei o quê, que ela não podia deixar de comentar isso e tal, que ela tinha descoberto há poucos dias que o avô dela tinha sido um fazendeiro de escravos, e que ela não sabia o que fazia com aquilo, que ela gostava muito da gente, que ela gostava muito de conviver com a gente e tals. E como ela iria contar aquilo e poderia ser ainda bem recebida, né? Tipo, achando que a gente iria expulsar ela… Que eu ia expulsar ela da minha casa, sabendo que o avô dela tinha sido escravocrata e tal. E eu fiquei pensando sobre isso. Como a escravidão ainda é muito próxima. Existem pessoas que fizeram isso e ainda estão vivas. Existe herança real da parada. Tipo, eu tenho amigo que ainda são filhos de fazendeiros, entende? As pessoas exaltam a escravidão ou não sentem vergonha da escravidão, como Ruy Barbosa fez lá muito tempo atrás, em apagar a História, talvez também como uma maneira, um mecanismo de o Brasil não sentir vergonha do que o Brasil fez. Do que o Brasil participou, né. Porque não é uma culpa do Brasil. Não foi o Brasil que inventou a escravidão nem nada. Mas o Brasil participou, né? O Brasil existia…

(Bloco 6) 51’20 – 1:00’59”

Ju: Se construiu em cima disso…

Xênia: É… O Brasil era um país que já existia, chegaram algumas pessoas de outro país e instituíram uma colônia nesse país. Desrespeitaram as pessoas que já estavam aqui, que eram os nativos, que já viviam no Brasil, trouxeram pessoas escravizadas de outro continente, que é o continente africano… E disso, o Brasil começou a se desenrolar, e estamos aqui hoje, falando sobre esse assunto. Então, a gente tem que entender, que o Brasil não tem vergonha. Não só não tem vergonha, como não quer falar sobre esse assunto. Qualquer pessoa, da mais esclarecida até a mais ignorante, não quer falar sobre este assunto. Inclusive, uma das minhas maiores broncas, é a gente ter que falar sobre a questão do racismo, da discriminação étnica, dessa discrepância social que o negro enfrenta há tantos anos, só no mês de novembro. Nós temos 365 dias no ano. Nós temos 300 mil tipos de veículos no Brasil, informais e formais, aí quando chega no mês de novembro, todo mundo quer falar sobre esse assunto. Dá 30 minutos, uma hora… Pra falar sobre a questão do negro. A questão dos negros são todos os dias. Todos os dias. Há 128 anos após a abolição da escravatura, na sociedade brasileira moderna, nós enfrentamos todos os tipos, das simples e corriqueiras do dia a dia, da falta de respeito, da agressão com o corpo, das pessoas acharem que meu corpo é delas, que elas têm o direito de me tocar, de tocar no meu corpo, no meu cabelo, em tudo mais, até a falta de oportunidade de uma pessoa estudar 8 anos numa universidade, sair daquela faculdade, chegar num emprego para poder fazer uma entrevista e ela não conseguir qualificação para entrar naquele trabalho. Eu conheci uma pessoa recentemente na casa de uma amiga, tipo, que trabalha no Google. Ele me fez o seguinte relato: que o Google tem uma – sei lá se é um mea culpa, sei lá o que que é, o Google tem – e faz processos seletivos específicos. Tem uma cota lá, para empregar pessoas negras, não sei mais ou menos quanto que é, 30%…

Oga: Na verdade, eu posso explicar melhor. O Google até chamou uma empresa que chama EmpregeAfro e eles tem uma trabalho mesmo de diversidade. Isso nos Estados Unidos também têm. Eles se ligaram que realmente, eles não tinham nem esse, nem esse número, então eles estão trabalhando pra conseguir ter mais profissionais.

Xênia:Sim. Então essa pessoa que me contou isso, eles chegaram lá dentro deles, que eles fazem essa seleção mensalmente, né, normal como padrão de empresa grande, e eles não estavam conseguindo cumprir nem um percentual, assim, razoável pra empregar essas pessoas. [Oga: Pra garantir a diversidade de lá.] Pra garantir a diversidade. E eles começaram a fazer uma pesquisa lá dentro do Google mesmo pra saber porque que isso tava acontecendo. Então existem algumas regras, do tipo: a pessoa tem que saber falar inglês, é uma regra, tipo, taxativa, ela precisa falar inglês, porque o Google é uma empresa americana e que responde aos Estados Unidos full time, a todo o tempo. Então, uma série de deficiências que mesmo que você, Oga, tenha se formado em Publicidade ou qualquer função que caiba a você estar trabalhando no Google, caso você não tenha outras, né, tipo outras abas de formação, provavelmente você não vai conseguir trabalhar no Google. Mas uma coisa muito interessante que ele me disse é o seguinte: é que no processo de entrevista, eles identificaram que as pessoas negras, elas são avaliadas diferente. Elas são avaliadas de uma maneira que elas não recebem o emprego. Simplesmente porque, sei lá, o cara que tá avaliando, ela já vem carregada de um preconceito virtual e ela não consegue se afastar disso porque ela não consegue… ela não tá nem fazendo essa relação, entende? Ela não tá nem percebendo que ela tá incomodada que você tem dread, entende? Existe uma coisa psicológica…

Oga: Acho que isso é legal a gente tocar nesse ponto da questão do racismo estrutural, né? Se você não preparar quem tá avaliando, né, realmente a pessoa pode passar por isso. Na cabeça dela, ela nem percebe, né. Até você tinha contado um caso, né, daquela do governo do Paraná, né.

Cris: É, aproveitando esse tema, o Governo do Paraná fez um vídeo onde ele coloca as pessoas que selecionam pessoas para trabalhar, recrutadores e ele pede pras pessoas… [Oga: Profissionais do RH] Isso! Mais conhecidos como profissionais do RH, pessoas que usam a camisa pra dentro da calça [risos], e essas pessoas, elas eram apresentadas a uma série de fotos e elas tinham que falar o que elas pensavam daquela foto de bate pronto. Que que você tá vendo nessa foto? E aí, eles apresentavam, primeiro eles apresentavam assim: um cara correndo de moletom. Aí ele virava e falava assim, ah, tá se exercitando. Uma pessoa se exercitando. Uma mulher passando um pano numa bancada de cozinha: Ah, ela tá limpando a bancada da cozinha dela. Uma mulher olhando uma roupa: ah, ela tá comprando. Voltavam as mesmas cenas, as pessoas com as mesmas roupas.

Oga: Curioso é que é a mesma expressão.

Cris: Tudo igual, tudo igual. Só substituíram a pessoa por uma pessoa negra. Mas é a mesma roupa, o moletom é o mesmo moletom, na mesma rua, correndo do mesmo jeito. A bancada da cozinha, é na mesma cozinha, e a pessoa tá usando a mesma roupa. Então a hora que mostra, ah, o cara correndo: tá fugindo. A mulher passando o pano na bancada: ah, é a empregada doméstica limpando a cozinha.

Oga:Ah, só pra deixar claro, é um outro grupo de seleção, né [Todos: Sim!], então chama mais quatro profissionais, então esses viram as fotos negras.

Cris: E esses, né. Então esses vieram pra esse horário… aí a mulher tá segurando a roupa: ah, ela é costureira, deve tá olhando a roupa. Então assim, muda completamente… todas as pessoas foram colocadas na posição de serviçal. Então quando a gente fala de racismo estrutural, o que que a gente tá falando? A gente tá falando da mesma coisa que no Mamilos a gente já falou algumas vezes sobre o machismo estrutural. É aquela coisa arraigada. [Ju: Cultura.] É aquela coisa que tá lá dentro, é aquela coisa que não basta trocar uma maçã: é a cesta que tá podre. Então é a visão do todo. Quando a gente tá falando de racismo estrutural, a gente tá falando basicamente do que é normal. Do que é normal aos olhos da sociedade. É normal você ver uma mulher negra e entender que ela é empregada, porque você vê essa mulher nesse lugar o tempo todo. É normal você ver o negro correndo fugindo, porque é isso que você vê quando você liga a televisão, quando o Datena todo dia mostra gente algemada e tá mostrando gente negra algemada. Então, na verdade, esse lugar onde o negro ficou por muito tempo é o que faz com que as pessoas pré-julguem e aí é até uma preguiça do cérebro, né? O cérebro vai lá, cataloga. Isso aqui pertence a esse grupo.
Oga: Isso é o viés inconsciente, né.

Ju: É, fala um pouco sobre, isso, o viés inconsciente. Mas fala um pouco, Cris, sobre a situação do negro hoje porque, sabe aquele ciclo vicioso? Porque a situação posiciona onde a Xênia falou, joga à margem da sociedade. Aí você tá acostumado a ver aquilo. A gente tem a continuação da cultura que permitiu a escravidão, que ela não foi abolida, se você não conversa, pelo que a Xênia falou, porque você tem vergonha, então você não consegue resolver o problema. Então você jogou o problema pra debaixo do tapete, então aquela cultura que permitiu a escravidão, ela continua de alguma maneira; claro, diminuída pelo tempo, mas ela continua existindo, e a realidade reforça a sua percepção de mundo. Ué, eles tão mesmo na periferia, eles tão mesmo cometendo crime, o lugar deles é realmente esse. Eles são realmente inferiores.

Xênia: Antes de ela responder isso, quisera que o problema das pessoas fosse só vergonha. Se fosse vergonha, a gente ia, né, [risos]. Acho que lá atrás, muito lá atrás, o plano, ele foi bem elaborado, e o plano, ele foi bem executado assim, tipo, de uma maneira que, por exemplo: vou só pegar esse gancho do Ruy Barbosa. À medida que uma pessoa, que é uma pessoa poderosa, que tem, detém os documentos e tudo mais, queima, né, você deixa uma sociedade inteira, queima esses documentos, você deixa uma sociedade inteira na ignorância, entende? É como eu vejo as pessoas. Então, se eu to andando na rua, e uma pessoa me agride, de qualquer maneira que seja, seja me agredir, que eu me sinto agredida quando as pessoas chegam pra mexer na minha cabeça, chegam pra mexer no meu cabelo, chegam pra mexer no meu corpo, como se eu fosse uma mercadoria, eu me sinto ofendida, mas eu não culpo aquela pessoa. Pelo menos dentro da minha maneira de viver a minha vida, eu já consigo fazer uma regressão mental e saber que aquela pessoa, ela foi educada por outras pessoas, ela tem um histórico familiar, ela tem um histórico escolar, ela tem um histórico social que permite que ela aja no automático, e esse automático pra mim é uma ignorância abissal assim, entende? Sei lá, eu posso dar um zilhão de exemplos aqui de como a gente pode se sentir ofendido diariamente e é muito engraçado. Porque você pode entrar num restaurante e se sentir ofendido sem ninguém te dirigir a palavra, porque a ausência do seu semelhante dentro de um estabelecimento comercial, ou melhor, a ausência do seu semelhante em lugares de consumo, em lugares de poder, e ao contrário, ver o seu semelhante sempre na condição de subserviência, faz com que você realmente, pelo menos pra mim, eu me sinto extremamente conflituosa dentro de mim. E fico tentando buscar respostas. Onde isso começa, a gente já, né, a gente começa o programa falando dessa parte histórica pra esclarecer, não, escurecer as pessoas, [risos] isso é muito importante.

(Bloco 7) 1:01’00” – 1:10’59”

Xênia: Escurecer que, tudo isso tem fundamento. Tipo, as pessoas dizerem que não tem: “Ah, isso não tem nada a ver”, “Isso é mimimi”, como é a nova expressão no momento. Com tanta informação, com tanto acesso à Internet, à comunicação, as pessoas se comunicando tanto, a gente consegue ver cada vez menos as pessoas sabendo das coisas.
Cris: Eu achei muito interessante a visão sobre o racismo estrutural, porque a gente tem a ideia que o racismo, ele acontece quando um branco deliberadamente ofende um negro. Porque quando isso acontece, igual, quando a gente vê…
Oga: É, esse é o racismo direto.
Cris: Quando a gente vê na praia, há um vídeo recente de uma mulher na praia gritando com uma pessoa e ofendendo aquela pessoa, e agredindo aquela pessoa, a gente dá um sentido patológico pro negócio: “Nossa, essa pessoa é doente!”, “Essa pessoa é louca!”, então você leva isso para um patamar de anormalidade, e aí você fala: “Não, é só tirar essa mulher louca aqui da praia; prende, faz alguma coisa aqui, ela cometeu um crime”, e aí você entende que aí você está resolvendo um problema, só que quando a gente vai para esse racismo estrutural, o que a gente tá falando dele, é o funcionamento normal da vida cotidiana, que é ali, é o acordar pro que não acontece na pirâmide social, a relação de estrutura entre os lugares onde os negros estiveram até hoje, então, o que a gente pega e coloca aí, que eu acho muito interessante nesse sentido, porque é o mais difícil de pegar com a mão, que é quando você olha para aquela pessoa e fala: “Nossa, mas você é professor?!”, “Nossa, mas você é o diretor?!”
Ju: Ou como falaram pra Diane que foi para um evento palestrar e o cara achou que ela era do buffet.
Cris: Quando a gente coloca o racismo estrutural, é importante a gente entender como a quase mão invisível do Estado, mas a gente levantou, fez um trabalho aqui de levantamento de números para entender por que que essa condição é a condição do funcionamento normal da sociedade. Quando a gente tá falando de quantidade, volume de pessoas, 52,9% da população se declara ‘preto’ ou ‘pardo’. Aí a gente vai pro analfabetismo; o analfabetismo, entre os pretos, é 11,2%, entre os pardos, 11,1%, entre os brancos, 5%.
Ju: Quando a gente fala de rendimento escolar: 67% dos alunos negros tiveram um desempenho crítico ou muito crítico enquanto a mesma situação só se observa em 44% dos brancos.
Cris: Na formação no ensino superior: 26 em cada 100 alunos na universidade são pretos. Apesar de muito inferior, o acesso da população negra ao ensino superior aumentou 232% comparado entre 2000 e 2010. 150 mil estudantes só nos últimos 3 anos. Ainda assim, de cada 100 formados, somente 2,66% são pretos ou pardos.
Ju: Lembrando que a gente tá falando de uma população de mais da metade do Brasil, declarando ‘preto’ e ‘pardo’, 2,66% só formandos pretos ou pardos.
Cris: Para cada 100 médicos formados no país, só 3 são negros. Uma pesquisa muito interessante do Instituto Ethos, aí quando a gente tá falando da 500 maiores empresas do Brasil, a gente tá falando aí: estagiários e trainees: 62,8% branco, 37,5% afrodescendentes; supervisores: 72% brancos, 25% afrodescendentes; gerentes: 90% brancos, 6% afrodescendentes; executivos: 94% brancos, 4% afrodescendentes; conselheiros da administração: 95% brancos, 4% afrodescendentes.
Ju: É disso que eu tava falando quando eu falei de pirâmide, que eu falei que é impossível uma pessoa bem intencionada olhar essa distribuição e achar que isso é meritocracia, achar que então essas pessoas, elas não se esforçaram, ou elas não têm capacidade. Na boa, de boa fé, é impossível ver essa pirâmide e falar, porque assim, talvez não seja 50/50, né, então vamos dizer, talvez nesse momento histórico você teve os asiáticos que se esforçaram muito mais, e eles vão ter mais acesso do que os outros, talvez não seja 50/50, mas assim 95/5 não tem o que discutir, né? Tá muito fácil, tá muito óbvio, né?
Cris: A gente continua nisso: na política, nem 10% dos parlamentares se identificam como negros. Na renda, um trabalhador negro ganha em média um salário 36% inferior ao salário de um branco. Quando é o caso das mulheres, ainda é mais inferior ainda: na saúde, é uma média de 15 minutos a menos dedicados em consulta médica de homens e mulheres negras. O uso de anestesia é usado 10% menos em partos de mulheres negras. 46,2% das mulheres brancas têm acompanhamento no parto, 27% das negras têm esse acompanhamento. A taxa de mortalidade materna na população negra é de 60% contra 34% de brancas. Aí, ainda no caso de saúde: hipertensão arterial, hérnia, diabetes, anemia, doença falciforme, a deficiência de glicose e fosfato, são anemias difíceis de tratar, são comuns na população afrobrasileira, fora um estudo muito interessante sobre a questão da saúde em pessoas que sofrem racismo diariamente, um racismo intensivo, essa pesquisa é dos Estados Unidos, mostrando que elas têm muito mais tendência a terem doenças mentais, cardíacas e renais.
Xênia: É muito interessante, inclusive, isso que você tá falando, porque tem uma expressão e uma personagem no Brasil chamada Nega Maluca, e um texto fantástico, eu não vou me lembrar de quem escreveu mas podem procurar “Por que a Nega ficou Maluca?”, porque a Nega Maluca virou um, não é de agora, mas com a expansão dos blocos de Carnaval aqui no Sudeste, né, Rio de Janeiro e São Paulo, cada vez mais, a Nega Maluca virou um hit, assim, você sai no Carnaval e você vê muitos homens, principalmente homens, fazendo blackface – para quem não sabe o que é blackface, também, uma aspa, que é quando uma pessoa branca, ela se pinta de preto para fazer uma alegoria de uma outra pessoa…
Cris: [interrompe] Se fantasiar.
Xênia: Se fantasiar, e ser negro não é fantasia, né? Você pode se fantasiar um dia ou dois no Carnaval, no terceiro dia você toma seu banho, você volta pra sua condição de pessoa branca, e essas pessoas negras das quais nós estamos citando aqui toda a situação social durante tanto tempo, e agora vão voltar e vão continuar sendo pessoas pretas, oprimidas e tudo o mais, então a Nega Maluca, e a gente tem a oportunidade, infelizmente, de cruzar com muitas delas nas ruas todos os dias: a mulher preta, alcoolizada, drogada, né, com a sua imagem mais do que estereotipada, né? A mulher de rua, a mulher negra de rua, é o símbolo mais, tipo, claro do que…
Cris: [interrompe] De onde a opressão pode nos levar.
Xênia: … de onde a gente pode levar. E a gente sabe, e os dados falam, que a mulher preta, ela tá na base, né, na base social, então existe esse histórico, pode voltar a fita aí, de tudo que a gente tá falando, e volte lá para 350 anos atrás, e você vai entender por que que a Nega ficou Maluca. Essa expressão Nega Maluca, a fantasia de Nega Maluca, ela não é engraçada, ela ofende mesmo as pessoas que não têm consciência, ninguém tem capacidade de se sentir à vontade se vendo representado, sendo feito de chacota no período, e único período, que o preto brasileiro é lembrado, que é no Carnaval.
Cris: Continuando um pouquinho mais de números, vamos falar aí:
Ju: Eu acho importante falar que 67% da população prisional é de negros, 2 em cada 3 presos no Brasil são negros, que 12.022 pessoas morreram nas mãos da PM paulista nos últimos 21 anos, é uma média de 47 pessoas por mês, e desses, 85% são negros. Então se você comparar a taxa de morte violenta entre negros e brancos: negros, 36 mortes em 100 mil e brancos, 15,2, é metade.
Cris: A cada 23 minutos, um negro é assassinado pela polícia no Brasil; negros correm 8% mais chances de se tornarem vítimas de homicídio, e quando você vai ver a relação com a polícia, 60% não confiam na polícia; entre os brancos, essa desconfiança é de 39%. 61% dos negros vítimas de violência não recorrem à polícia; brancos são 38%. Entre a população negra, 60% teme represália da polícia; 39% dos brancos têm esse sentimento. Quando a gente vai pra violência contra a mulher negra, a violência doméstica é de 59%; de morte por agressão 68%, vítimas de estupro são 62%, vítimas de violência obstétrica são 65%. Entre 2003 e 2013 houve uma queda de 9% no total de homicídios das mulheres brancas, enquanto homicídio de negras aumentou 54%. Na expectativa de vida, um negro vive em média 1,73 anos a menos que um branco por conta da violência.
Ju: Então a gente tá falando de violências presentes, cotidianas e atuais, que moldam a nossa expectativa de qual é o lugar que está determinado pro negro, qual é a capacidade que ele tem, a partir do momento que a gente fala isso: se você tem tão poucos negros se formando, tão poucos negros médicos…
Cris: [interrompe] E tantos presos.
Ju: … e tantos presos, exatamente…
Xênia: [interrompe] E tantos assassinatos, né?
Ju: … e tantos assassinatos, o que que isso te diz? É disso que a Cris falou, da resposta pronta do seu cérebro, então ao mesmo tempo você tem, embasando a sua perspectiva de vida, uma história que foi contada, e que tá sedimentada, que não foi desconstruída, porque não conversamos sobre isso, de uma cultura escravocrata, e você tem uma realidade que valida isso, que fala que “ó, isso ainda tá funcionando”, quando você faz o seu reality check, e continua tudo no mesmo lugar.
(Bloco 8) 1:11’00” – 1:20’59”

Xênia: Uhum. Vazou uma informação da Polícia Militar de São Paulo, numa determinada época, não sei quanto tempo tem, mas que é de conhecimento de algumas pessoas da população, que a polícia tem uma cota de ocorrências que ela precisa cumprir diariamente. E nas características, ali na descrição das ocorrências, uma coisa que chamou atenção fortemente, assim, era que as abordagens deveriam ser feitas principalmente aos indivíduos de cor padrão. Que cor padrão é essa?

Oga: Isso era sobre a Rota nos anos 90. E aí, né, quem se encaixava no padrão era pele negra, sempre. E eu fico pensando nisso, né, eu tive a oportunidade de viajar pra Berlim, e aí você tem vários monumentos, você tem um museu que chama “Topografia do Terror”. Quer dizer, você vai nesse museu e tem vários banners e explicações mostrando o que que foi. Eu sei que tem uma falácia, todo mundo que discute comigo fala assim: quando que essa discussão vai chegar no nazismo? [risos] Mas, mas assim, não é brincadeira, assim, mas é que realmente, é muito louco.

Ju: É a lei de Goodwin, né?

Oga: É a lei de Goodwin. Então, você tem no meio da cidade, o tempo inteiro você tá pensando sobre um erro que a cidade, né, que ocorreu naquele lugar. [Cris: Naquela nação, né.] O tempo inteiro, as pessoas são, tem… são obrigadas a pensar nisso. Eles já estão num momento até, que tem uma parte da nação que já nega. A juventude alemã já falou, ó, eu não quero ter essa culpa. Já tem essa bizarrice. Mas assim, eles não tem como esquecer, porque no meio da cidade você tem… você tem um monumento pra mostrar, ó, olha a besteira que nós fizemos.

Cris: Olha a merda aí.

Oga: Olha a merda que nós fizemos. Agora o que eu acho mais complicado no Brasil é que a gente tem isso só através da arte. Através de coisas muito subjetivas. Então assim, quando você tem na lei, lei de cotas, né, leis afirmativas, lei de cotas, as pessoas ainda se indignam, porque elas não tiveram nem a primeira leitura disso. Então acho que o trabalho que a gente tá fazendo aqui inicialmente, fora dos nossos relatos, enfim, é meio falar isso. Cara, se você tá ouvindo a gente até agora, e enfim, eu acho que essa informação, em parte deve ser nova pra você, em parte não, eu não sei o quanto as pessoas pensam seriamente nisso, porque de certa forma nem o Estado, nem a mídia, nem a educação em si faz a gente se confrontar sempre com esse problema. Então entendo que acaba sendo um problema pra novembro, acaba sendo um problema para espaços negros, então acho que de certa forma, é legal quando a gente começa a criar mecanismos pra que todo mundo se… veja esse problema e comece a pensar em soluções mesmo.

Cris: É importante ressaltar isso, porque nós, Brasil, somos signatário de uma declaração, a Declaração de Durban, ao final da Conferência Mundial contra o Racismo, que foi em 2001, na África do Sul. E o Brasil assumiu a responsabilidade em documento, com a história da escravidão, com esse compromisso com a diminuição dos efeitos. Então assim, foi muito importante esse congresso. Foi um reconhecimento enquanto nação que nós temos uma dívida por ter tirado essas pessoas do lugar delas, trazido, matado, escravizado, diminuído. Então houve, enquanto nação, esse reconhecimento, e em 2001, Brasil assinou esse tratado, assumindo esses crimes cometidos, e tem trabalhado com políticas afirmativas a partir de então, buscando reintroduzir as pessoas negras na sociedade com dignidade. Então as políticas afirmativas nos últimos doze anos, elas já começam a criar a ordenação pra tornar essa sociedade um pouco mais equalitária. Acho importante isso, porque quando as pessoas falam “cotas pra quê?” e “pra que ação afirmativa?” e “isso já passou”. Acho que esse contexto e esses números nos dão um pouco a dimensão que o problema, ele não vai sumir se a gente parar de falar nele. Ele não some sozinho, ele some se a gente, falar, falar, falar até encontrar um lugar, uma solução pra isso. Eu fiquei muito tocada pela fala do Silvio Almeida, que é um filósofo de direito, e ele fala muito bem sobre o racismo estrutural, porque ele fala que existem três dimensões básicas pra isso acontecer, que são três pontos que o indivíduo, ele é constrangido por ser negro diante da sociedade, e ele não consegue se mover de lugar por conta desses três pontos. O primeiro é o econômico, que é a tributação versus a renda versus os serviços públicos disponíveis pra ele. O segundo é a política, que é a ausência de pautas claras pra esse debate social sobre racismo e as mudanças que combatam essa estrutura. E o terceiro é a subjetividade, que é o mais difícil de tachar. Que é aquele que você pressupõe que o lugar do negro é ali, e quando ele sai daquele lugar, vem todo o espanto, né? E vem o racismo disfarçado de elogio, né? E aí, é interessante falar sobre isso, o que que é o racismo, quando uma raça se sente superior à outra. Então você percebe que o cara tá no mesmo patamar que você, aquela surpresa que você sente, ela não é um elogio. Ela é tipo, como assim você chegou aqui? Então, essa desconstrução que a gente precisa entender e fazer e discutir e modificar, porque a gente assinou um documento enquanto nação, a gente já reconheceu. Por isso que o programa até parte desse suposto, porque não é o Mamilos, a nação Brasil já reconheceu perante a ONU e têm trabalhado pra isso. Precisamos divulgar mais, tipo, essa época de discutir se existe ou se não existe, já passou, não tem mais.

Xênia: Mas existe uma hipocrisia a respeito disso, porque existe um documento assinado, né, fora do Brasil, um tratado feito com outras pessoas, com outros países, outras nações, outros idiomas, só que dentro do próprio país isso é totalmente desconhecido.

Cris: Precisa ter um sentimento de nação.

Xênia: A população, e eu digo como população, a gente tem meios de comunicação de massa como a televisão, que só joga contra as pessoas 24 horas por dia e não tem interesse algum nem economicamente em falar com essas pessoas. E quando eu falo essas pessoas, eu falo conosco, com todos nós que existimos, que estamos aqui, que movimentamos esse país com a força do nosso trabalho, com a força do nosso intelecto, com a força da nossa cultura. A gente construiu esse país com esse poder, e alguém falou uma coisa muito interessante sobre protagonismo, acho que foi o Oga, que nós não somos minorias, nós somos protagonistas de uma nação, que só existe e é da maneira que é por causa da influência em todos os sentidos dessas pessoas, que somos nós, pessoas pretas, descendentes, transcendentes, das pessoas que passaram por aqui, chegaram por aqui. Essa coisa da lei 10.639, eu vou voltar nela, porque é muito importante, porque além de ser uma coisa obrigatória e muitas instituições de ensino não terem como colocar em prática, e quando essas instituições falam que não tem capacidade ou por não ter profissionais qualificados pra falar do assunto… Achei muito engraçadinho, outro dia eu cheguei na casa da minha sogra e a neta dela, a minha sobrinha postiça, que é branca, disse “titio, eu quero ouvir Miriam Makeba”. Eu vim saber quem era Miriam Makeba faz mais ou menos 5 anos que é o período que eu tenho de carreira, de trabalho. Nas minhas pesquisas musicais eu descobri Miriam Makeba. Uma criança de 2 anos já sabe quem é Miriam Makeba e já gosta de ouvir Miriam Makeba, porque na escolinha dela, a política foi implementada. Mas mesmo a professora tem as suas limitações pra falar do assunto, sabe por quê? Porque existe um protagonismo. Eu gostaria, como estamos aqui, eu e Oga, fomos convidados a participar desse programa, e falarmos o que que a gente pensa. Eu não tenho, como é que se diz? Formação, embasamento… nenhum. O que a gente tá conversando aqui são reflexões sobre o que nós vivemos diariamente, né, sobre como a gente avalia a sociedade que a gente vive e avalia a situação do nosso semelhante também. Mas existem profissionais. Nós conhecemos, podemos dar uma lista aqui de pessoas fantásticas. Escritores, poetas, professores, acadêmicos negros que não estão no setor formal ensinando, aplicando a lei 10.639, sabe? Isso é uma deficiência. E aí, quando a gente vai falar de um documento, que foi assinado lá fora, beleza, mas e aí? E na prática? A gente também tem uma lei no Brasil que obriga as instituições escolares, que na minha opinião… [Cris: Faz parte do tratado, até.] Que na minha opinião, é por onde a gente começa o desenvolvimento de um país, é pela [Xênia: Pela transformação.], é pela educação, a gente tem mais da metade da população brasileira declarada preta e a gente não tem profissionais, não porque eles não existam, porque eles não são contratados, para estar e ocupar esse lugar. Então, esse é um problema, existe… não sei se é um problema de comunicação. Não sei se é falta de interesse, não sei se é má-fé, mas há muitos desequilíbrios na sociedade brasileira pra gente conseguir não só vencer essa chaga que é a escravidão, na prática mesmo, fazer com que essa equidade social exista, mas também a falta de que isso existe de fato, entende? Tipo, as pessoas colocam… colocam as leis pra funcionar, e elas não são respeitadas. Outro dia eu ouvi de uma pessoa estrangeira que o Brasil é um dos países que mais desrespeita leis no mundo.

Cris: É o país da zuera.

Xênia: Entende? Que mais desrespeita…

Ju: Que tem lei que pega e não pega.

Xênia: Pega! Tipo, como assim a lei pega? Lei tem que ser…

Ju: A lei é lei!

Xênia: Ela tem que ser cumprida! A lei é lei. O Brasil é o país que mais desrespeita pesquisa. Falando, por exemplo, de publicidade, veio uma equipe americana pro Brasil fazer pesquisa. De mercado, saber, quem são os consumidores brasileiros, né? Cadê a galera? Quem consome o que, qual tipo de shampoo… enfim.
(Bloco 9) 1:21’00” – 1:30’59”

Xênia: Fizeram um levantamento, principalmente voltado para a população negra. Que essas pessoas sabem que o Brasil é um país, percentualmente…

Oga: Majoritariamente negro.

Xênia: Negro. E, cadê essas pessoas que não estão sendo ouvidas?
Ju: [interrompe] Ouvidas…
Xênia: Ok, fizeram uma pesquisa grande em várias capitais do Brasil e entregaram esse documento, e beleza. Tá tudo igual, como sempre foi. Eu moro em São Paulo há doze anos. A publicidade continua igual, a moda continua igual. Estou falando de representatividade imagética. As novelas, a televisão…e mesmo quando há uma ideia, uma iniciativa de colocar esse preto ali, né, tipo representado de alguma maneira, ele é estereotipado, ele continua com os mesmos signos. Ele é cafona, ele é mal educado, ele não tem educação, ele não tem família. Ele pode não ser bandido, mas alguém na família dele é, se ele tiver um parente, esse parente é bandido. A mulher, principalmente a mulher, é uma coisa muito curiosa porque toda mulher na dramaturgia, a maioria das mulheres representadas na dramaturgia que são negras elas foram estupradas. Ou elas são estupradas ou elas são filhas do estupro. Isso é muito engraçado. Então, não adianta a gente ficar soltando leis ou fazendo acordos por aí afora, as nossas politicagens, porque pra mim isso é politicagem, pra ficar bem na foto fora do Brasil, e aqui a gente não ter essas leis realmente respeitadas e elas estarem na prática.
Oga: Eu acho muito isso, né, quando a gente começa a pensar em lei, elas só pegam quando elas tem algum interesse econômico, e aí é muito louco porque…que eu acho que volta um pouco o que a gente falou no começo, né, independente se a pessoa tem uma orientação liberal ou mais esquerda, enfim…cara, por números, pensando no sistema capitalismo, dica capitalista, você não tá vendendo pra mais da metade da população, você botar essas pessoas no jogo capitalista, dar poder pra elas, você vai melhorar, se você tem…trabalha com criatividade você tendo essa diversidade, você vai conseguir realmente trazer mais criatividade, mais experiência pro seu negócio, então realmente é muito difícil entender porque é que a gente não questiona o racismo, eu acho, pelo menos me parece muito, existe uma parte de má fé mas existe uma parte de ignorância no sentido de tipo “nunca enxerguei mesmo isso”, estruturalmente falando. Eu acho que essa questão da lei pegar, eu acho que ela depende muito das pessoas entenderem esse problema e realmente verem…é absurdo pensar assim, né, mas as pessoas têm que ver uma vantagem pra essa lei pegar e eu acho que de certa forma, talvez eu seja eu seja um pouco mais esperançoso que a Xênia (risos)
Xênia: Eu sou uma pessoa muito esperançosa, é que a minha maneira…
Oga: Parece que de um tempo pra cá parece que a gente já começa a entender, que assim…mesmo na moda…eu tô adiantando a parte dois do programa…mas assim, eu já começo a entender que em alguns lugares a gente já conseguiu mostrar, mas a gente só conseguiu ser enxergado porque a gente foi enxergado primeiro como consumidor, que é escroto quando você pensa assim…não fui enxergado como ser humano
Xênia: Eu sou uma pessoa muito otimista. É que eu tô querendo deixar o meu otimismo ficar evidente no próximo bloco. É que a gente tá um pouco sério aqui falando essas coisas, números, dados, história e que de fato…
Jú: É, botando o dedo na ferida, né? A gente começa mostrando o problema, depois a gente vai pra soluções.
Xênia: E acho que quem tem o mínimo de sensibilidade, principalmente as pessoas negras, quando tocam nesse assunto, quando a gente vai a fundo, quando a gente toca na nossa própria ferida, é impossível a gente não ficar revoltado, entende? Tipo, a revolta é uma coisa…é natural. A gente fica endurecido porque realmente não há…mesmo com otimismo, mesmo sabendo “Ah, aumentou 8%”, mas pensa, nós somos 50…é pouco, é pouco em todos os cenários
Cris: Diante de tanta dor, qualquer número é pouco. Bom, a gente termina então essa primeira parte falando um pouco sobre o mito da democracia racial. Diante de todos esse números que a gente viu, de toda essa história que a gente tem, diante da necessidade de conversar mais sobre o assunto, de políticas não só afirmativas, como debates pra alteração da cultura, da cesta, a gente não tá falando só da maçã não, mas da cesta. E entender que o dia da consciência negra não é um dia sobre negros. É um dia sobre a sociedade brasileira. Por isso que cai aí o mito de “Ah, mas o Dia da Consciência Negra não segrega?” Não, porque ele não é pra negros. Ele não é pra negros. É um dia pra nação parar e refletir sobre como é ser negro no Brasil, o que é ser negro no Brasil.
Jú: Como nosso passado ainda é presente.
Cris: Como nosso passado pesa no nosso presente, qual o futuro que a gente quer construir. Isso não é só uma reflexão sobre negros. Entender o que é Zumbi, o que é resistência, como se perderam os nossos documentos, nossas histórias…então não é um dia pra negros, por isso que ele não pode ser segregador.
Xênia: Na falta de…coisas física, né, de memoriais, como existem na Alemanha, o memorial do Holocausto, que foi uma coisa horrorosa também que aconteceu no mundo, mas na falta do Brasil não ter vergonha e não querer abordar esse assunto, vamos supor que o dia 20 de novembro é o nosso memorial e que ele não pode passar batido, a gente não pode parar de refletir sobre isso, e não parar pra refletir apenas como uma coisa geral, “vou pensar pelo…”, vamos pensar pelas nossas próprias ações, no nosso privilégio, quando digo, privilégio digo do privilégio social porque eu mesma, tô cavando aí, tô correndo com uma bola de ferro no meu pé e correndo em cima de um monte de obstáculos, mas eu digo, quando a sociedade brasileira instituiu o dia vinte de novembro, isso passa a ser um memorial pra que quem participou e quem participa e quem tem esses privilégios da estrutura branca, do patrocínio, do dinheiro, da herança, que naturalmente vem desse tempo, possa refletir. Eu vou ser bem prática…os donos de empresa…
Cris: Na verdade, todos nós, né Xênia, porque eu fiz uma entrevista de emprego e concorri com outros três brancos. Se houvesse uma democracia racial, seria muito mais difícil pra mim porque eu concorreria com mais seis pessoas. Essas outras três não estavam lá porque elas estão marginalizadas. Então quando a gente para pra refletir sobre o privilégio branco , qualquer não-negro parte com privilégio, tem menos gente pra competir com você. Então é sobre isso que a gente precisa refletir e quando a gente fala de entender…
Xênia: Uma das coisas que a gente precisa refletir é na região abissal que é esse assunto, né? São muitas abas…
Cris: Então é isso, a gente termina a sessão problematização nesse momento, tem assunto pra pensar aí pra mais de metro pra essa semana, e aguarde, semana que vem, empoderamento negro, a continuidade dessa história sobre como os próprios negros têm mudado essa sociedade que a gente vive hoje, esse quadro tão difícil.
Ju: E a narrativa imposta, né? Estão se tornando protagonistas das suas próprias histórias e reescrevendo o papel que lhes foi destinado na nossa cultura e na nossa sociedade.
Cris: É isso, então.

[Trilha sobe]
[Trilha desce]

Cris: Vamos então para o nosso farol aceso. Ju, o que é que você tem pra indicar?
Ju: Muita gente veio falar comigo sobre a dica daquele filme coreano (The Handmaiden) que eu falei “gente, vão assistir sem saber nada que esse é o jeito de assistir esse filme e as pessoas vieram me agradecer muito “nossa, foi incrível e realmente eu não podia ter lido nada” e tal, então vamos fazer outra indicação que é sobre como ver um filme. Que é um seguinte…é o filme “A Chegada”, tá. O que é acontece? Eu tenho um extremo preconceito sobre filmes de ET. Não quero ver, não me interessa essa questão, tal. E muito disso vem do filme “Sinais”, que eu odiei e é um dos filmes preferidos do Merigo. E aí, depois de muitas discussões, eu fui entender porque que ele adorou e eu odiei. Como é que a gente pode ver o mesmo filme e ter critérios tão diferentes, porque uma coisa é “Ah, mais ou menos”, e outra é “Puts, odiei!”. Ele viu outro filme. Eu fui pelos teasers, que diziam que agora entender a histórias do ETs, então que é verdade ET Então eu fui pra lá pra ver um filme que ia provar que ET existia e ia me explicar por quê, eu fui, assim, seca numa questão de ET E não era sobre isso. O filme é sobre fé. ET é um recurso de narrativa que ele usa pra discutir a questão de fé. E aí eu super não gostei do filme e Merigo super gostou. Eu não tenho como voltar a ver e ter outra ideia porque é aquela coisa…já foi. Agora, um filme que eu assisti com outra perspectiva foi Distrito 9, que é um filme que eu adoro e que é um filme que, de novo, não é sobre et. Ele usa et como recurso de narrativa. Então peço que você não seja ignorante como eu que fui ver esse filme A Chegada e tava vendo um filme de et. De novo caí no mesmo erro. Não é um filme de et. É um filme pra falar de outra discussão. A questão de ET até tem algumas abordagens científicas interessantes, que pra quem é nerd, vai curtir, é uma ficção científica bem feita, mas a questão do filme não é essa, abra sua cabeça, “Ju, mas eu não vejo filme de ET”, cara, não é sobre isso, é sobre humanidade, é sobre as escolhas que a gente faz, sobre o que é que vale à pena na vida, sobre mil outras coisas que não é ET. Então entenda que “ET” é um recurso narrativo de “E se“…
Cris: [interrompe] Como zumbi é usado em todos os filmes…

(Bloco10) 1:31’00” – 1:40’45”
Ju: “E se uma coisa que de escala global e completamente inusitada que foge do nosso controle acontecesse? E daí, o que acontece”. Então é um recurso narrativo. A Chegada é um filme muito sensível que vai te fazer ter muitas reflexões e se conectar num nível muito pessoal desde que você se permita a isso, que você não entre com várias barreiras e filtros, tá. Então recomendo A Chegada, pode ir, sem medo de ser feliz, vá com o coração aberto. E a outra dica que é mais rápida é…minha mãe tinha um ritual comigo no Natal, com meus irmãos, que é o calendário do advento, que é uma contagem regressiva do Natal. Vá no Google Imagens, Pinterest e coloca calendário do advento ou Advent calendar e você vai ver um monte de jeitos de fazer, dos mais simples aos mais complexos, principalmente pra quem tem criança é muito legal, mas que é pra criar essa expectativa de que o dia tá chegando pro natal, pra criar um ritual gostoso, pra você, a família junta curtir, pra curtir esse clima de Natal. Eu acho que em face de tudo que a gente tá vivendo a gente tá precisando muito de bons rituais, de momentos felizes em família, enfim, recomendo que você faça um calendário do Advento.
Cris: Oga querido, o que você tem pra gente?
Oga: Primeiro, coletivo Sistema Negro que eu faço parte, fui convidado pra discotecar, para vou atacar de DJ, quer dizer na verdade talvez eu só chegue no final mas enfim, meus amigos estarão lá representando num bazar que chama Casa das Crioulas, vai ser no dia 3 de dezembro a partir das quatro horas na Rua Luís Alberto Martins, nº 36 aqui no Butantã e ai vai ter oficina de brincante, cinema, vai ter Flash Day tattoo, vocês sabem o que é isso né?! Tipo o Black Friday da tatuagem
Cris: [rindo] Jesus…
Oga: geralmente o tatuador vai lá com alguns desenhos e bota em promoção esses desenhos [Cris: que máximo!] vixi, meu comedoria tem acarajé, drinks e doces…
Cris: [interrompendo] nossa, eu sou muito surtada no acarajé…
Oga: e aí eu digo é esse espaço que você tem pra ter contado com a cultura negra de várias formas num espaço aberto a diálogo, enfim. Rapidamente, ainda sobre esse tema, tem uma diretora inglesa que chama Cecile Emeke, ela faz uma série de documentários sobre a diáspora, sobre negros, ela entrevista as pessoas é tão legal, ela faz vídeos curtos de entrevistas que passa por vários assuntos né, feminismo, artes, história, sexualidade e até um dos capítulos que eu vi eu adorei que era um cara que nunca parei pra pensar nessa questão um afro italiano o cara vai explicando o que é ser um negro na Itália e aí ela passa por várias discussões muito legais assim e é uma diretora negra com olhar muito sensível à câmera, é demais, tem no youtube e tem o site dela dessa última série dela que o Strolling series, pra quem não tem o inglês tão bom, as vezes eu sofro muito, porque meu inglês não é tão bom assim, tem legenda em espanhol também, então tem um jeito de dar uma hackeada.

Cris: [brincando] ah, malparido…

Oga: ah, a gente entende pra caramba o espanhol, ainda mais depois do… [risos de todos] agora todo mundo acha que eu falo espanhol depois do Narcos né, se matando no portunhol, quando a gente fala assim morre né, tipo, morre mais um Pablo Escobar no mundo…
Cris: [interrompendo] morre um Gustavo…
Oga: [continuando] enfim, vou falar agora de um gibi chama Hip Hop Genealogia, então pra quem gostou de The Get Down, pra quem falou putz Hip Hop é incrível, quero ler mais eu quero entender mais, eu quero me aprofundar mais nisso gibis sempre são bons pra entrar, é uma trilogia, tem 118 páginas então o seu dinheiro vai ser bem gasto capa dura, editora Veneta lançou aqui tem prefácio do Emicida e é muito legal essa série porque ela conta mesmo de um jeito bem bacana e documental e o acabamento dela é muito legal, o início do Hip Hop. Última dicaaaaa: youtube negro é esse último mês, esse mês no canal da Nátaly Neri uma blogueira, uma vlogueira, não é só isso uma estudante de ciências sociais e trancista, ela tem um canal no youtube que ela fala sobre várias temáticas negras e o que eu acho mais legal nesse canal, ela foi convidando várias outras youtubers negras então assim, abordando parte dos assuntos que a gente discutiu aqui e outros e eu acho um jeito bem legal, uma introdução bem legal porque assim aqui a gente vem com muito dado, com muito número, com muita experiência empírica mesmo, pessoal e às vezes assim, é legal você ter mais esse viés pra justamente você ter mais essa noção de multiplicidade [Xênia: ouvir mais gente…], de pluralidade sobre esses temas acho que é isso heim gente…
Cris: Xênia querida o que você tem pra gente?
Xênia: Ai meu Deus, vamos lá, primeiro eu quero agradecer né ao convite mesmo [Cris: prazer], muito importante isso, dizer que dia 18, eu vou acabar falando e vou pedir pra galera entrar na página do Aláfia, que é a banda da qual eu faço parte, o Aláfia está indo para o terceiro disco, chamado “SP não é Sopa” um disco dedicado a Cidade de São Paulo, a gente falou tanto de São Paulo aqui hoje né, é uma, é um disco dedicado a São Paulo com várias participações de diferentes regiões, que o disco foi dividido em quatro partes né, e aí pegaram um personagem de zona leste, zona norte e tal e aí incríveis, eu não vou dar spoiler [risos de todos] e aí no dia 18 nós temos uma van premier assim um show que a gente vai fazer na rua de graça e aí eu vou pedir pra galera entrar na página do Aláfia e ficar atento na agenda porque eu não vou saber o local porque é um palco móvel e a produção do evento ainda vai divulgar onde vai ser esse palco móvel. Então dia 18 Aláfia, entre lá na página do Aláfia no Facebook ou Instagram e a gente tá sempre divulgando. Uma segunda dica que eu vou dar, na verdade são duas, de dois filmes que eu assisti que foram muito importantes na minha formação assim, dessa coisa que a gente conversou hoje, dessa identidade, do meu processo de autoformação de identidade preta e tal, além da música que foi a minha principal formação, chama-se “O Poder do Machado de Xangô” que é um documentário produzido, pasmem, pela Rede Globo, é um repórter numa época que a Rede Globo aberta tinha um pouco [Oga: era Eduardo Coutinho né, eu acho] esse é do Cid Moreira.
Oga: [interrompendo] ah era do Cid, [Xênia: é… é…] olha que incrível, porque o Coutinho tinha uns bons né
Xênia: é, e aí conta a história de Balbino que é um personagem dos livros de Jorge Amado, Balbino lutador de boxe, uma figura que existiu, um personagem real, que tem a brilhante ideia de voltar pra África, ele quer fazer a viagem de volta e ele é só uma pessoa preta na cidade e tal. E aí ele consegue fazer essa viagem e é super emocionante porque aí conta não só a experiência desse homem na cidade de Salvador, a relação com o candomblé e tudo mais, o encontro dele, que ele é filho de Xangô, o encontro dele com Xangô na Nigéria é uma coisa assim, eu chorei copiosamente. E o outro é um outro documentário que chama “Candomblé, a Cidade das Mulheres” que faz uma explanação fantástica sobre a figura do patriarcado no candomblé, porque no ocidente a gente tem exemplos mais do que taxativos do poder do homem na socie… tem o Papa, tem os presidentes, então essa figura masculina no poder, então especialmente na Bahia que é o Estado por onde o Brasil começa né, como essas mulheres, como a Cidade de Salvador e consequentemente o Estado da Bahia foi se configurando com essa figura feminina que é a que senta na cadeira principal que tem relações políticas com diversas personalidades é masculinas né, dentro e fora do terreiro de candomblé e principalmente como essas mulheres conseguiram criar verdadeiras dinastias mesmo, sustentar suas famílias com a comida de santo, então explica assim bem lindamente, assim tem falas lindas de mãe Stella de Oxóssi, do terreiro do Cantuá, fala das mulheres de partido alto que eram coletivos de mulheres negras que já conseguiam ter um pouquinho de dinheiro e elas gastavam com roupas, com joias, fala da venda da comida de santo nas ruas, é um documentário belíssimo “Candomblé, a Cidade das Mulheres” que vale muito a pena conhecer pra se aprofundar cada vez mais no nosso universo afro brasileiro…
Oga: que bom, você complementou…
Ju: [interrompendo] e você Cris?
Cris: Tava guardando essa dica pra falar neste programa, eu li esse ano e fiquei muito envolvida com “Americanah” da Chimamanda Adichie [Chimamanda Ngozi Adichie] que é uma escritora que eu já venho lendo e acompanhando a algum tempo, mas o “Americanah” realmente é o livro que eu guardei pra falar hoje sobre ele É a história de uma estudante, ela deixa a Nigéria, Lagos a Cidade onde ela mora e se muda pros Estados Unidos para estudar, a partir daí ela deixa a vida e um grande amor pra traz e o livro mistura romance com militância de uma maneira poética como só ela é capaz de escrever e a construção do personagem, ela enquanto negra americana é extremamente enriquecedora e essa personagem cria um blog em um determinado momento do livro onde ela começa a colocar as impressões que ela tinha sobre os negros americanos, sobre o racismo americano e é paralelo o que ela tem com uma africana morando ali naquele país e é interessante que o tempo todo que ela… o livro se chama “Americanah” porque é uma expressão usada na Nigéria pra pessoas nigerianas que vão para os Estados Unidos e perdem um pouco, né, da ascendência deles ali, um pouco dessas ancestralidade porque ficou americanizado. Então ela já não é mais totalmente nigeriana, mas ela também não é totalmente americana e a discussão que ela propõe é riquíssima, o livro vai até quando o Barack Obama é eleito e olha ela é incrível, sinceramente, é um dos melhores livros que eu já li, porque tem um pouco de romance também e aquela mulher descobrindo o que é amar e se relacionar com outros homens e tal é um livro muito bom, eu indico fortemente espero que vocês gostem, porque é um livro que eu tenho imenso carinho, a minha segunda indicação é o projeto “Identidade” que tem o seu perfil no Instagram, o projeto “Identidade” tem um trabalho lindo de colocar negros em diversas posições onde a gente só vê branco. É um negócio interessante porque uma discussão que eu e a Juliana tava tendo um tempo atrás de como você o seu imaginário é populado por figuras brancas, mesmo quando você tá lendo livro e ali não tem nada que distingue aquele personagem como branco e o projeto Identidade ele coloca o Harry Potter preto, Kill Bill preto, Homem Aranha preto e aí ele começa a popular esse universo, a Monalisa preta e a trazer, tirar da margem, trazer o negro pra esse lugar popular do imaginário, das artes e tudo mais é um projeto que eu tenho carinho, sigo e acho muito legal queria indicar pra vocês…
Xênia: tem um filme chamado “A mãe de George” é um filme que aborda também uma, a história de uma mulher nigeriana que sofre com essa pressão da cultura nigeriana que é o casamento [Cris: ter filhos…] e é uma pessoa né, ter o filho e tal e aí mostra esse drama, eu não vou contar muita coisa porque [Cris: qualquer coisa é spoiler] qualquer coisa é spoiler, mas também é um filme que tem uma fotografia belíssima, a atuação fantástica, uma sensibilidade incrível pra essa questão e chega fortemente nessa coisa da detenção do seu próprio corpo, a mulher negra ser dona do seu próprio corpo, mandar na sua própria história, decidir com quem ela vai casar, se ela quer ou não quer ter filho e aí baseado nessa estrutura social que é tão distante da gente mas que também não é tão distante, a gente vive isso também aí em alguns paralelos no Brasil, então é legal ver esse filme o tema em inglês, eu vi em inglês era Mother of George algo assim, mas “A mãe de George” acho que a galera vai achar…
Cris: Vai lá conhecer a sogra…
Xênia: é… [risos]
Cris: é isso então, temos um programa Juliana?
Ju: Não, temos dois
Cris: opa!
[risos de todos]
Cris: Fica a gostosa sensação de ter feito mais uma superprodução Mamilos, brigada gente
Oga: Valeu!
Cris: beijos
Todos: tchau…

[sobe trilha]