Transcrição - Mamilos 100: Sistema Prisional • Parte 1 • B9
Mamilos (Transcrição)

Transcrição - Mamilos 100: Sistema Prisional • Parte 1

Mamilos • Mamilos (Transcrição)

Capa - Transcrição - Mamilos 100: Sistema Prisional • Parte 1

Jornalismo de peito aberto

Esse programa foi transcrito pela Mamilândia, grupo de transcrição do Mamilos

Este episódio foi transcrito por: Beatriz, Aline Bergamo, Carla Rossi de Vargas, Fernanda Cappellesso, Bruna Azevedo e Alan Bastos. Revisado por Carla Rossi de Vargas.

Início da transcrição:

(Bloco 1) 0’ – 10’59”

[Vinheta de abertura]

Esse podcast é apresentado por B9.com.br

[Sobe trilha]

[Desce trilha]

Ju: Bem-vindos ao Mamilos número 100. Se é a sua primeira vez no bonde da polêmica relaxa o ombrinho, aqui não é espaço pra provar pontos, o que a gente quer é construir pontes. Nascemos como espaço de encontro onde pessoas com diferentes vivências e opiniões buscam entender como que alguém bem intencionado e inteligente pode chegar a conclusões tão opostas às suas. Deixa a lacração na porta e vem com curiosidade, de coração e mente abertos. Eu sou a Ju Wallauer.

Cris: Eu sou a Cris Bartis.

Ju: E hoje vamos falar sobre sistema prisional.

Cris: Vamos começar com um beijo. Tem Beijo Para: Itapema em Santa Catarina.

Ju: O Álvaro, que tá de aniversário.

Cris: Pra Blumenau.

Ju: Pro interior do Paraná.

Cris: Para Brasília, em especial pro Jonas.

Ju: E para Pirapora em Minas.

Cris: Como a gente ficou ausente um bom tempo, eu gostaria de agradecer todos os retornos do programa passado, 99, a gente falou de compartilhamento and bebidas. Foi muito legal a discussão que aconteceu, os e-mails que nós recebemos, tudo muito produtivo. Mas a gente destacou aqui, que na verdade foi muito engraçado, para vocês rirem com a gente. A Lucineide Lima disse:
”Oi de novo, vocês me desinstalam, eu vou seguindo a minha vida toda cheia de mim, sou fodona, doutora, ploft, tomo uma cacetada de bigorna ao estilo Coiote e Papa-légua. Tô falando de Pixo, Beba com Moderação e Westworld. Tô colocando em dia, descobri vocês há pouco tempo. Ouvir o divergente quando ele vem com gentileza e conteúdo, tal como no Mamilos, me faz sentir o que o eu lírico fala em: ‘Eu preciso te ouvir, meu fechamento é você, Mamilo. E não preciso nem beber e nem ler O Globo, seu podcast me deu onda, fazer o quê, meu céu te ama’. [Cris: É muito bom isso.] “Deu onda e informação, ampliou o horizonte e alargou a visão, minha miopia até regrediu. Beijos.”

Ju: Muito bom, né. Gente, recebi prints de mamileiros desesperados: “Minha namorada não me deixa mais beber.”
“Meu amigo comprou água para mim, que que tá acontecendo.”
“Eu não quero ouvir esse programa, eu fugi desse programa mas ele me persegue”.

Cris: É. E é isso aí, continue falando com o Mamilos, a nossa equipe está aí para isso. Edição: Caio Corraini. Redes Sociais: Luanda Gurgel, Guilherme Yano e Luiza. Apoio a Pauta: a toda poderosa Jaqueline Costa e grandíssimo elenco. E as transcrições dos programas com Lu Machado e a linda Mamilândia. Nessa última semana tem um tanto de coisa nova no ar lá nas transcrições, como por exemplo o programa duplo de Consciência Negra, toca lá ler o conteúdo que também tá muito bacana.

[Sobe trilha]

[Desce trilha]

Ju: Então, vamos sem delongas para a pauta principal. Antes vale um disclosure de que a gente tá tentando fazer essa pauta desde fevereiro e mil coisas contribuíram para… tava impossível [Cris: basicamente foi o seu inferno astral, Juliana], foi o meu inferno astral, gente. Eu fiz aniversário ontem então isso acabou, tá. É, mas então, a gente teve muita, muita ajuda pro programa tá de pé hoje. Então um agradecimento muito especial para toda a equipe de jornalistas do Mamilos, que nos ajudaram correndo atrás de convidados; pra Mamilândia, que transcreveu em tempo recorde o depoimento das pessoas que vocês vão ouvir, pra que a gente pudesse montar a pauta e costurar essa colcha de retalhos de uma maneira que fizesse sentido. E pra Jaqueline e pra sua maravilhosa equipe que trabalharam dois meses pra que a gente tivesse uma pauta super rica, que tivesse embasamento pra trazer a discussão pra vocês. Então, muito obrigada, hoje o Mamilos não é mais duas meninas, o Mamilos é uma legião. Vamos lá, primeiro vamos começar apresentando os convidados.

Cris: Bora lá.

Ju: Quem se dispôs a vir até aqui, no horário marcado, no dia marcado, que assim, gente, nunca foi tão difícil. [Cris: Nunca antes na história desse podcast.] Nunca. Vamos começar, Lucas, fala de você.

Lucas: Olá, meu nome é Lucas, sou advogado, pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal com enfoque em criminologia. Atuei durante dois anos junto aqui do Ministério Público do Estado de São Paulo, na 5ª Promotoria Criminal, e nas horas vagas eu faço algumas coisas também, que não tem nada a ver.

Ju: Tipo podcast de:

Lucas: Tipo um podcast de cultura pop

Ju: Muito bom.

Lucas: Ocidental e Oriental, né.

Ju: Como que é o nome?

Lucas: Projeto X Podcast.

Ju: Olha aí, muito bem. Mais um podcaster na mesa.E quem mais, Ariadne Natal, se apresente, por favor.

Ariadne: Olá, tudo bem, meu nome é Ariadne Natal, eu sou socióloga, doutoranda em sociologia pela Universidade de São Paulo e sou pesquisadora do
núcleo de estudos da violência da USP. No meu mestrado eu estudei linchamento, que tem pouco a ver aqui em última instância com o tema de hoje. E agora no doutorado eu tô estudando a questão da letalidade policial e de execuções praticadas por policiais e como que eles justificam esse tipo de ação. Então, é… mas eu tenho trabalhado em vários tipos de pesquisa e de temas diversos e o sistema prisional é algo que está sempre de alguma maneira relacionado a todas as questões.

Ju: Vamos começar, vamos direto aos fatos, então.
Começamos o ano sendo sugado pela barbárie, em 17 dias 131 presos morreram em rebeliões. O episódio além de expor de forma inequívoca como o sistema prisional está completamente fora do controle do estado, mostrou a extensão da capacidade e a disposição dos criminosos pra segurar seu poder, uma demonstração de força planejada para aterrorizar. Isso trouxe mais uma vez para arena no debate público opiniões exacerbadas: “Tinha que matar mais, tinha que fazer uma chacina por semana” disse Bruno Júlio, o então Secretário da Juventude do governo Michel Temer. Major Olímpio, Deputado Federal eleito em São Paulo pelo Partido Solidariedade, postou: “Placar dos presídios: Manaus 56 x Roraima 30, vamos lá Bangu vocês podem fazer melhor.” Do outro lado aqueles que defendem que construir cadeia não resolve o sistema falido, como Flávia Piovesan, Secretária de Direitos Humanos de Temer, e como Carmen Lúcia, que defendeu que um dos caminhos para mitigar a crise está justamente na direção oposta, em soltar presos. No auge da crise a Ministra pediu que os tribunais dos Estados fizessem um esforço concentrado pra acelerar análises de processos de presos julgando quem ainda está na cadeia provisoriamente, com o objetivo de desafogar o sistema carcerário. Na prática, uma realidade aterradora.
A Organização Mundial de Saúde classificou a violência no Brasil como epidêmica, com uma taxa de 15.5 homicídios por 100.000 habitantes, e pediu providências. Os representantes públicos atuaram em duas frentes como de costume: leis penais cada vez mais severas – considerem que a gente teve 150 novas leis de 1940 a 2013, sendo 72% de agravamento do castigo penal, então essa ferramenta que a gente geralmente usa quando a criminalidade aumenta -, e encarceramento massivo, inclusive para autores de crimes não violentos. O foco no encarceramento funcionou, ao menos no que tange ao aumento da população carcerária. De 90.000 detentos em 1990 chegamos a mais de 600.000 internos, e o impressionante aumento de mais de 590% em menos de 30 anos. A medida, entretanto, não atingiu até o momento o que deveria ser o seu objetivo, que é diminuir a incidência dos crimes. A população está cada vez mais encarcerada e assustada, atrás de grades e sistemas de seguranças mais sofisticados. Os presídio são fábricas de ódio e organização criminosa, os policiais e servidores estão acuados, sem infraestrutura mínima para trabalhar e sem perspectiva de melhora. E os políticos seguem sem compromisso de resolver o problema, usando um dos assuntos mais sérios da política pública como plataforma de promoção pessoal.
Afinal, prendemos demais ou somos o país da impunidade? Prender resolve? Como prender? A gente precisa reformar o sistema prisional ou destruir ele? Quais são as alternativas?
E a gente vai começar a falar sobre isso, a gente vai dividir – assim como no programa de Consciência Negra – esse programa em duas partes. Na primeira parte a gente vai problematizar, então vai apontar quais são os problemas, e na segunda parte a gente vai tentar pensar sobre outros modelos e tentar pensar caminhos e soluções como sair desse atoleiro.
Primeiro a gente começa com o coach da Débora Ferreira, que é psicóloga com formação em psicanálise e pós-graduação em Elaboração e Gestão de Projetos Sociais Internacionais e Gestão Pública. Ela faz atendimento na Penitenciária Estadual de Charqueadas, que é uma penitenciária de segurança máxima.

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Porque se a gente para pra pensar e analisar, né, a política de segurança pública, nesses últimos anos, tem se transformado, se traduzido, em encarcerar as pessoas, né. A única proposta de política de segurança pública que tem se apresentado. Então esse hiperencarceramento é uma das maiores distorções que temos, né, porque o próprio sistema prisional não acompanhou, e não dá conta, não suporta, esse número indiscriminado de encarceramento que vem ocorrendo, né, nos últimos anos. Não dá conta de forma estrutural, de RH, enfim, de todas as formas em geral. Então acho que essa, com certeza, é a grande distorção que temos hoje.

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Ju: Agora a gente vai escutar um depoimento do Luiz Augusto Barrichello Neto, Juiz de Direito titular da Segunda Vara Criminal de Limeira, também Juiz de Execuções Criminais em Limeira e Juiz do Departamento de Execuções Penais da Região de Campinas. Ele tá na carreira há 20 anos e trabalha desde 1997 em outras áreas da esfera criminal com juiz criminal. Ele também atua como juiz de execuções criminais, trabalhando durante todo esse período como Juiz da Infância e da Juventude.

(Bloco 2) 10’ – 20’59”

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A primeira questão que eu gostaria de abordar é, na minha opinião, algo chamado da “falácia do superencarceramento”. Ultimamente, temos ouvido na imprensa, também diversos profissionais da área jurídica, especialmente que atuam na defesa, que existe no Brasil um superencarceramento. Eu reconheço que existe, sim, o encarceramento, muitas pessoas, obviamente, são presas; entretanto, não há que se falar nesse excesso até porque, em regra, nós, juízes criminais, especificamente do estado de São Paulo, somente decretamos a prisão em último caso e nos estritos limites da legislação. Vale lembrar que, desde 1995, especialmente em razão da lei dos Juizados Especiais, Cíveis e Criminais, a Lei 9099/95, várias medidas chamadas de despenalizadoras foram tomadas. Então em muitos casos que eram de menor potencial ofensivo, que as pessoas eram presas em flagrante, por exemplo em razão de crimes, né, ou de infrações de menor potencial ofensivo, a Lei 9099/95 ela vedou e determinou que no lugar da prisão em flagrante, do auto de prisão em flagrante, que é o documento, fosse lavrado um termo circunstanciado e a lei já deixou bem claro que não seria mais admitida a prisão em flagrante nesses casos de, a princípio, penas não superior a um ano, em seguida isso foi estendido pra penas cujo máximo também não era superior a dois anos. Então todas essas infrações de menor potencial ofensivo já implicaram aí na impossibilidade, na ausência de decretação de prisão. Então apenas a título de exemplo, antigamente uma infração de menor potencial ofensivo a gente poderia citar, inclusive, o antigo artigo 16 da Lei 6368/76, que era a antiga lei de tóxicos; no caso uma pessoa que era, entre aspas, chamada de usuária, antigamente essa pessoa que portava droga para uso próprio, ela era presa em flagrante, ficava efetivamente presa. A partir de 2001, especialmente, mas seguindo a onda de despenalização de 1995, essa pessoa, né, o portador de drogas para uso próprio, deixou de ser preso e depois em razão de outra modificação da lei de tóxico, a prisão do “usuário”, ou seja do que porta a droga para uso próprio, foi absolutamente vetada. Então de cara existe uma crítica hoje em dia, ao meu ver equivocada, de que muitos “usuários” são ou estão presos no sistema prisional. Isso é uma mentira, isso é uma falácia, isso não acontece, não existe nenhum usuário que vai preso em razão de vedação expressa da legislação que está em vigor. Quem é preso hoje em razão de envolvimento com drogas? Os traficantes. E ainda assim, em razão de novos entendimentos aí especialmente do Supremo Tribunal Federal e recentemente o STJ [Superior Tribunal de Justiça] também acolheu esse entendimento do Supremo, aqueles traficantes, aqueles presos em razão de tráfico, que são primários, que não têm qualquer relação com criminalidade organizada, que comprovam, óbvio, endereço certo, que não têm antecedentes alguns, essas pessoas, esses traficantes, eles têm a oportunidade de responder todo o processo em liberdade. Ainda que exista uma ou outra decretação de prisão, ou ainda que sejam presos em flagrante, eles têm sido colocados todos em liberdade pelos tribunais, ou se não pelo tribunal, pelos tribunais de justiça, pelos tribunais superiores. Então repito, existia sim, lá atrás, prisão de usuários, depois foi mantida prisão de traficantes, por expressa determinação da lei e mesmo assim, mesmo a lei ainda determinando um tratamento mais grave, mais duro aos acusados de tráfico, o Supremo Tribunal Federal determinou um tratamento mais brando para aqueles traficantes que são primários e que não têm envolvimento com organização criminosa. Então por isso eu justifico que existe hoje, essa questão da falácia do superencarceramento, nós, né, juízes, prendemos somente em último caso, quando existe, sim, um risco para instrução criminal, quando a pessoa está para fugir, né, quando atenta contra a ordem pública, esse é um conceito que, obviamente, pode ser melhor discutido e depois as pessoas que são condenadas a penas mais elevadas, penas superiores basicamente a quatro anos, que é imposto o regime semiaberto ou ainda o regime fechado. Então, repito, eu entendo que existe um discurso, ao meu ver equivocado, apesar de respeitar muitos dos profissionais que usam esse termo.
Nós temos também muitos, muitos mandados de prisão que não foram cumpridos, ou seja, existem milhares e milhares de pessoas, especialmente no estado de São Paulo, eu posso dizer e posso dar depois esses números, que estão procuradas por crimes graves que foram condenadas e que ainda não estão presas e que não estão recolhidas. Então nós temos essa também defasagem. Obviamente de vagas, mas não só. Falta de prisão, falta de cumprimento de mandados. Isso muitos omitem. Outra questão que é também uma questão, uma falsa interpretação, é a que envolve o chamado regime aberto, tá. Muitos incluem em dados estatísticos e consideram como presos aqueles que estão em prisão chamada domiciliar, ou cumprindo pena em regime aberto. O regime aberto é um tipo de regime que deveria ser um regime prisional, só que na prática o regime chamado aberto ou a prisão domiciliar, ela não pode ser computada da mesma forma que as demais prisões, ou seja, aqueles que estão em prisão cautelar ou que estão em regime fechado ou semiaberto, por quê? Quem está no regime, repito, aberto na prática não está preso, ou está “preso” entre aspas em domicílio, não dentro do chamado sistema prisional. E muitos, repito, usam esses dados pra falar: “Olha, o Brasil tem muitas pessoas presas…” Só que estão computando, também, aqueles que estão em prisão domiciliar, ou seja, que estão em casa.

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Ju: A pergunta que a tem pra mesa é: A gente tem pobreza de números, as estatísticas pra apoiar a discussão desse assunto são muito ruins. Então em cada lugar você vê um dado diferente, a Jaque teve muito trabalho para comparar dados diferentes. Esse juiz ajudou muito porque, ela ia lá e mostrava pra ele e falava: “ah, mas olha aqui, você tá falando isso mas tem esse e esse número.” E ele falou: “tá mas esse número tá errado, tem esse número…” Então assim, tem muito debate sobre quais números realmente valem, mas os números que são mais contestados são esses em relação ao superencarceramento. Porque, basicamente, a gente fala que em números absolutos, e é o número que as pessoas que defendem a tese do superencarceramento falam muito, nós somos a quarta a população carcerária do mundo. Só que é um absurdo você trabalhar com esse número considerando o tamanho do Brasil. Então você quer comparar o tamanho absoluto de presos do Brasil com a Bélgica, não tem sentindo nenhum, entendeu. Então você tem que comparar em termos relativos, é quantos presos têm relação ao total da população; e quando a gente compara assim, a gente cai para trigésima primeira posição. Então, é isso que a gente fala bastante no Mamilos, que isso é desonestidade intelectual, sabe? Porque você sabe que você tá… você tá usando um número, que é verdadeiro, mas que você sabe que ele não tá representando a verdade pra provar um ponto, entendeu. Então, isso é que é complicado, isso que a gente tem que tirar do caminho para conseguir fazer uma conversa honesta sobre o problema. Dito isso, vocês acham que existe um superencarceramento? Ou não? Isso é um problema? A gente prende demais?

Ariadne: Bom, eu acho que tem algumas questões que seriam interessantes pontuar na fala do juiz, né. Ele fala primeiro, enfim, que o que o judiciário faz é simplesmente cumprir a lei, né. Então, de alguma maneira se exime já, né, e diz que é, é quase que uma decisão técnica, a questão é colocada de uma maneira bem limpa, né. A ideia é essa: tem uma lei, a gente tá aplicando essa lei, essa lei na leitura do juiz já é bastante branda, então não haveria superencarceramento. A discussão do encarceramento, ela fica bastante focada no problema do tráfico de drogas, porque, enfim, tem uma discussão de fundo aí, que é, se a gente deveria, se as pessoas deveriam ou não tá presas. E segundo, qual a diferença entre usuário e traficante. Na fala do juiz elas parecem óbvias, e elas não são. Na realidade elas não são, e na hora de aplicar a lei, né, ele fala: “Bom, quem é traficante fica preso, quem é usuário não fica preso.” Parece óbvio, mas como é que a lei define quem é usuário e quem é traficante? A gente teve uma fala bastante elucidativa do, do, do nosso atual Ministro da Justiça, uma fala catastrófica, a coisa de uma semana atrás. Ele fala que ele sabe essa diferença olhando nos olhos das pessoas, que se ele olhar no olho [Cris:</strong] ah, hã hã.] ele sabe quem é o traficante quem é usuário. E por quê? O que que é, que que é a diferença? O que que é olhar no olho? E Ele, ele deu um exemplo, ele falou: “Bom, se eu pego um estudante, né, jovem, eu sei que é um usuário” Ele tá subentendido ali: branco, de classe média, “Eu sei que é um usuário”. Agora, “Eu olho no olho e aí eu sei aquele que quer fazer mal, eu sei quem é o mal.” Então, quer dizer, ele, ele retomou uma teoria aí, lombrosiana, de dizer que a partir das características físicas de uma pessoa você consegue identificar a intenção dela, se ela estaria mais propensa a cometer um crime, né, é uma, é uma atrocidade. Mas enfim, pra além disso, como é que a lei define quem é traficante e quem é usuário? Ela não define. A coisa ali é muito… [Ju: Não é a quantidade?] Não é, porque se tem pesquisa mostrando que a mesma quantidade de drogas pode dar desfechos muito diferentes. Então você tem uma série de outras coisas que o juiz vai considerar: tem residência fixa, não tem; tava com dinheiro, não tava; tava com uma balança de precisão, alguma coisa que poderia ajudar, que dá indicação de que aquilo é um comércio; tem mais de um tipo de droga junto. Então é, pode ser, então você tem uma série de coisas que, juntas, dariam a indicação de se é um usuário ou um traficante. Mas… [Ju: Me parece racional isso.] Mas a forma como isso é aplicado não é. Então, assim, eu tenho um… a gente tem uma pesquisa recente de uma pesquisadora chamada Gorete Marques de Jesus, que fez a pesquisa só com a questão dos flagrantes de tráfico de drogas, agora nos últimos dois anos, e fica muito evidente a seletividade, né, nesse tipo de classificação. Porque você tem, uma mãe e um filho, de classe média, com plantação, num apartamento de Jardins e é desclassificado, e eles falam: “Ó, tá vendo? A gente não é tão duro assim, entrou como usuário.” E aí você tem pessoas pegas com três pedras de crack que entram como traficante. Porque tava na rua, tava descalço, e aí é uma questão, uma questão que o juiz coloca: “Essa pessoa tinha dinheiro pra ter essa droga? Essa droga é cara, se ele é pobre, ah, tem coisa aí, tá traficando, ele não teria condições de ter isso.” Então você tem uma série de outras questões que são colocadas já: “Ele não tem residência fixa, é estranho. ele tá fazendo isso pra ganhar alguma coisa.” Ou, até a ideia de que se ele não tem residência fixa, então é melhor manter ele preso. Então você tem uma série de questões que vão ser colocadas ali, que tão pra muito além dessa classificação. Que que é usuário e traficante e como que isso é operacionalizado.

(Bloco 3) 22’ – 30’59”

Lucas: Só uma questão, você perguntou sobre a quantidade.

Ju: É. Na verdade era uma discussão anterior à questão de prisão seletiva.

Lucas: É, a questão da quantidade é uma discussão muito grande no ramo jurídico pelo seguinte: qual o problema que se tem de definir uma quantidade? É você criar saída pro traficante. Então se você fala “olha, são 500 gramas”, ele anda com 499; Essa é a posição crítica. Por que que você não pode colocar… Por que que a lei brasileira escolheu não colocar uma quantidade? Fala “olha, é um quilo”, “são dois quilos”, “são tantos eppendorfs”, “são tantos sacos”: pra realmente não criar essa “não, peraí, eu tô com 499 gramas, eu não sou traficante. A lei fala que é 500, então não sou”. Por isso ele cria esses mecanismos que são… pode-se colocar um pouco mais subjetivos [Ju: Mais discricionários, né…] Então, por exemplo, quando você lê um flagrante de tráfico de drogas, um dos pontos que os policiais buscam abordar é, que eles falam: quantidade, variedade e forma de acondicionamento. Então por exemplo, o que que eles falam: se você pega, independente da questão, um cara com 500 eppendorfs de cocaína…

Ju: O que que é eppendorfs?

Lucas: Eppendorfs seriam, eles chamam… [Ariadne: os pinos…] Os pinos, é aquele como se fosse uma… [Cris: é o embrulho, né?] Não, então, é que a cocaína ela vem naquele pino, ele parece uma balinha, como se fosse uma bala de revólver com uma tampinha. [Ariadne: parece uma tampinha de caneta bic] Isso! Eles chamam de eppendorfs. Então se ele tem 500 eppendorfs de cocaína seria meio difícil ser pra uso, ou, assim, tudo bem… [Ariadne: às vezes ele ia dar uma festinha…] [risos] Mas aí se ele tá levando pra distribuir pra pessoas, mesmo que gratuito, é tráfico. Então é difícil você realmente fazer uma tábula rasa e falar assim onde tá o traficante e onde tá o usuário, é muito difícil.

Cris: Eu entendo que a gente tem toda uma discussão e isso é muito subjetivo e superlota; a população carcerária acaba sendo composta muito por esses usuários/traficantes. A gente tem a esmagadora maioria dessa população carcerária composta por furto, roubo e tráfico. E menos de 2% por homicídio. Então isso é bastante assustador quando você percebe que, na verdade, essa população gigantesca, elas oferecem menos risco à vida – teoricamente, tá, vamos falar “risco violento” – do que os que tão soltos. Mas a pergunta que eu queria fazer pra vocês pode soar bastante estranha mas foi um… como a gente começa a trabalhar com dados eu acho que não deixa de levantar esse questionamento, nós temos mais de 210 milhões de pessoas hoje no Brasil. Uma população carcerária de, vamos colocar um número ruim, acima do que foi colocado aqui, 700 mil presos, é uma superpopulação? Ou a nossa população cresceu demais e o contingente de sistema penitenciário não conseguiu acompanhar o crescimento da população? É uma população gigantesca?

Lucas: Tem um número interessante que eu tava pesquisando, que segundo o anuário brasileiro de segurança pública, que foi divulgado pelo fórum brasileiro de segurança pública, nos anos de 2014 e 2015 foram registrados um total de 1.023.000 roubos e furtos de veículos apenas. Então você tem um milhão de crimes envolvendo furto e roubo de veículos. A gente tem uma população carcerária, se você quiser colocar, de 700 mil. A gente tá falando de potencial de um milhão de crimes que deveriam ser apurados e eventualmente punidos se a gente está assumindo que existiram um milhão de roubos e furtos de carro. [Ju: sim…] Quando a gente começa a jogar isso pra toda a outra extensão de crimes que existem, pode ser que esse número não seja uma superpopulação, mas sim, como você falou, um reflexo social.

Ju: É que você tem que ver que, por exemplo, esse um milhão, um mesmo cara cometeu dez furtos no mesmo dia…

Ariadne: é isso que eu ia falar, não são criminosos, são crimes…

Lucas: Ok, eu sei que é um número que não dá, mas assim, um milhão de roubos de carros em dois anos é um número muito alto de um crime muito específico. Bota roubo e furto de celular… [Ju: Sim.] bota N outras coisas…

Ariadne: Então, mas aí tem uma questão que é importante. Tudo bem, a gente tá falando de primeiro separar o que que é a criminalidade violenta, aquela que oferece um risco à pessoa e outra um risco à propriedade, se a gente vai tratar isso da mesma forma ou não, né? Qual que deveria ser a prioridade do nosso sistema de segurança e justiça? Quem são as pessoas que deveriam estar encarceradas e quem são as pessoas que não deveriam, e que outras soluções possíveis tem? Essa é uma questão a ser colocada. E outra, punir/prender tem alguma relação com prevenir? Se você prender mais pessoas você vai ter menos crimes? Essa parece ser uma relação que é feita de maneira muito direta, mas que a gente precisa problematizar. No caso, por exemplo, de tráfico de drogas, de roubo de carro, você tá falando de uma rede criminosa organizada. Não são pessoas que saem… porque você precisa, você vem de um lugar e vai pra outro, a gente tá falando de produto, que tem que ter então dentro de uma… [Cris: todos dois são produtos… tem que ser uma rede] São produtos, tem que ter uma rede em volta. Você prender o cara que passa a droga ou o cara que vai lá e rouba o carro, ele é a ponta da cadeia, a gente sabe que ele é só mais um. E você pender esse vai vir outro, vai vir outro e vai vir outro porque essa é uma oportunidade de mercado, pra começar né, você tem lucro nisso então você vai ter bucha de canhão [Ju: incentivo…] pra continuar indo lá. Você não vai resolver. Então pensar as soluções pros problemas de segurança pública a partir da prisão, principalmente esse tipo de prisão, que é uma prisão baseada no trabalho da polícia militar e de flagrante. Não é uma prisão baseada em investigação. Não é uma prisão baseada em desmobilizar as redes que tão por trás. Então você não tá resolvendo problema nenhum, você tá criando outros. Porque vai ter outros. Você prende um, amanhã tem outro. Tráfico de droga é isso, esse tipo de roubo que tá relacionado com redes, você não vai resolver prendendo quem tá na ponta. Isso é uma falácia…

Cris: Só pra corroborar com esse ponto, a taxa de sucesso em investigação no Brasil é 1.5%.

Lucas: Eu concordo. Eu acho interessante, só tem que tomar um cuidado que eu tenho – eu peço pras pessoas – assim: você falou: “Olha, hoje você pega um cara que roubou um carro, mas ele tá numa rede, então amanhã tem um amanhã.” Isso não é motivo pra não prender (não punir) o primeiro e o segundo. Os dois tem que ser punidos. É claro que falta você puxar esse fio… [Ariadne: priorizar.] não acho que é questão de priorizar. [Ariadne: os recursos!] você acha que… um crime como um roubo de carro em flagrante é muito mais fácil de resolver porque ele tá resolvido, você não precisa resolver um roubo de carro quando você pega um cara com o carro e ele confessa, por exemplo. Ou, quando você pega um cara com uma arma ou você prende um ladrão após um furto com o celular e a arma – um roubo no caso com a arma – então esse crime é óbvio que ele tem uma necessidade de investigação muito menor. E com essa quantidade a gente ainda tenta… assim, você tem setores, é claro que a polícia é falha, tem um programa inteiro sobre esse tema. A polícia tem problemas, ela vai tentando fazer o que ela pode. É claro que falta. Você fala, é claro que falta, falta às vezes vontade ou falta você conseguir desmembrar muitas dessas cadeias criminosas que envolvem roubo de carro. [Ariadne: foco.] É foco, mas esse cara não pode deixar de atender os um milhão de roubos de carro que tem em dois anos. E se você vai na delegacia registrar um roubo de celular, você tem outros dez na sua frente que vão tentar registrar. A gente sabe que falta contingente, que falta aparato pra esses caras, você vê, tudo isso é um grande problema…

Ariadne: Mas isso é uma decisão política. Por que que a polícia civil tá esvaziada e a polícia militar tá cada vez mais fortalecida no sentido de ter mais recursos pra fazer ronda, pra fazer policiamento ostensivo, porque essa tem sido a base do sistema de segurança pública. E essa é a porta de entrada pro sistema prisional. São escolhas, essas são escolhas políticas.

Ju: A gente tem uma população de quanto?

Cris: De mais de 210 milhões de pessoas e a gente tem uma população carcerária de 700 mil presos ou privados de liberdade, vamo colocar aí até um número maior do que o que a gente tem. Isso significa que tem muita gente presa?

Ju: Quando a gente discute o superencarceramento, o primeiro ponto básico é esse. Tem gente demais presa, por isso que o sistema tá falido. Isso é um fato, baseado em números? Porque é o que você falou, vamos falar sobre números, vamos ter uma abordagem científica.

Ariadne: Então, acho que… uma das questões que tão de fundo quando esse termo foi cunhado e né, isso começou a aparecer, o superencarceramento foi diagnosticado como um problema porque o número de presos cresceu de maneira exponencial e foi muito rápido. Foi num espaço de uma década que isso aconteceu e aí você teve a explosão dos presídios, que vai dar em todas as discussões que a gente vai acabar abordando aqui do crime organizado, né, que vem de dentro dos presídios e tal. Então o que que é um número grande e o que que é um número pequeno, né? É difícil você dimensionar, porque qual é o referencial? O referencial é o número de crimes, o referencial é a população carcerária do passado e como ela cresceu rápido, né, o que que tá acontecendo? Foi uma decisão política de tentar como solução encarcerar mais? O que que é encarcerar mais ou menos ou bem? É difícil, porque essas escolhas você não tem um referencial único pra decidir isso, né. Essas decisões elas são… é a sociedade que de alguma maneira tem que discutir quais são os limites pra isso, né, pra colocar…

Ju: Isso.

Cris: O susto que eu tenho com o número é: nós temos uma população carcerária grande, muito grande, só que quem deveria tá preso não está. [Ariadne: É, exatamente. Porque é mais fácil prender muito e prender mal.] Então a Natália Lago, ela é doutora em Antropologia Social pela USP e vamos escutar um pouquinho do que ela diz.

(Bloco 4) 31’ – 40’59”

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Natália: Acho que vale começar dizendo que o Brasil prende muito e que a justiça é seletiva na criminalização. Acho que esses são pontos que têm efeitos no aprisionamento de homens e de mulheres. As mulheres e homens presos hoje são geralmente pobres, negros, jovens com baixa escolaridade, ou seja, a malha carcerária não captura todas as pessoas da mesma maneira e essa seletividade é bastante perversa quando a gente fala do tráfico de drogas, que é o crime que mais prende mulheres. O encarceramento feminino cresceu, de fato, muito nos últimos anos e com mais velocidade do que o encarceramento masculino inclusive. Esse aumento das prisões de mulheres tem a ver com a política de guerra às drogas e com a lei de drogas de 2006, que é a lei 11.343/2006. Essa lei deixa pra polícia e pro juiz a decisão de separar quem é usuário e quem é traficante, e abre bastante espaço pra decisões que são enviesadas, e aí por enviesada eu to querendo dizer: o critério acaba passando pelo local onde foi feito o flagrante da polícia, qual a classe social do suspeito ou da suspeita – qual é a cor, ou seja né, tá super propenso a acusar pessoas pobres e pessoas negras. Muitas vezes a polícia, o policial que lavra o boletim de ocorrência é a única testemunha do processo. Então a palavra da polícia vale aqui também, vale pra condenar uma pessoa por tráfico de drogas. E hoje mais de 60% das mulheres tão na prisão ou porque foram ou acusadas – são presas provisórias – ou porque foram condenadas por tráfico de drogas. Esse tráfico pode significar um envolvimento mais e menos profundo com o mundo do crime. Mas também pode significar um envolvimento bem lateral com esse mundo do crime, porque a participação nesse tráfico pode ser muitas vezes um bico, uma forma de trabalho. E quando essa mulher é presa, ela é substituída com facilidade. Esse aprisionamento por tráfico também pode criminalizar quem compra substâncias pra consumo próprio. Ou seja, muitas vezes são mulheres que são usuárias de drogas que vêm sendo presas como traficantes. São presas com pequenas quantidades e acabam sendo enquadradas como traficante pelo policial, pelo juiz que eu falei no começo da resposta. Outras mulheres que são presas por tráfico acabam sendo flagradas com pequenas quantidades de substâncias quando elas tentam entrar nas prisões como visitas, pra levar essas substâncias pros familiares que tão presos. Ou seja, a gente não tá falando aqui de grandes traficantes, a gente tá falando de mulheres que têm envolvimento mais ou menos esporádicos com o varejo de drogas, que muitas vezes consideram esse envolvimento como outro tipo de trabalho como um bico, enfim… não são grandes traficantes. E considerando o que leva essas mulheres à prisão, eu acho que é muito importante frisar, por um lado, a perversidade dessa política de guerra às drogas e o modo pelo qual essa política prende seletivamente.

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Cris: Dito isso, a pergunta então pra mesa fica: a população carcerária ela estatisticamente tem cor e tem classe social. A discriminação está em quem faz as leis e aí penaliza com maior rigor crimes contra patrimônio do que contra a vida, por exemplo, em quem executa a lei, que é o policial e o juiz, quem tem poder discriminatório e reforça estereótipos e desigualdade, ou tá tudo misturado, esse problema tá em ambos? Como vocês percebem isso?

Lucas: Essa questão ela é muito interessante porque ela passa por um retrato da sociedade. Ela passa por um recorte que você faz e entra na questão de desigualdade social, entre outras coisas. Um conceito muito interessante que a gente tem dentro da criminologia é o da anomia que é a anomia do Robert Merton, que é um sociólogo americano, que ele falava o seguinte: que pra ele a nossa sociedade tem um problema, que é a dissociação entre as aspirações culturalmente prescritas e os caminhos socialmente estruturados para a realização de tais aspirações. Resumindo, o que que isso quer dizer? Você tem um objetivo e nem todos chegam nesse objetivo. Por que que isso acontece? A gente tem uma sociedade que ela é voltada pro acúmulo de capital e trabalho. Então, acúmulo de capital por meio do trabalho. Todo aquele que não se enquadra nisso ele tem que ser separado de alguma forma. De formas que são mais singelas, como por exemplo, por que que você não trabalha? É porque você é estudante, ou é porque você por exemplo é um padre e não trabalha, ou porque você tá doente então você tem que melhorar pra voltar, ou porque você é louco então você vai ser tratado, ou então você é criminoso. Tanto que a gente tem no Brasil, até hoje, a vadiagem. Tá previsto em lei, não é aplicado, mas você tem ainda a punição pra aquele que é considerado vadio, que é a pessoa apta ao trabalho que não o faz por qualquer motivo. Não se aplica, os juízes não aplicam isso mais, por motivos óbvios… [Cris: mas tá escrito lá né…] Tá escrito lá e ninguém revogou. Então qual é o entendimento? Que a nossa sociedade fala assim: “meu, você tem que trabalhar e acumular riqueza.” E é óbvio, ainda mais num país como o Brasil, que as pessoas não conseguem. Não é todo mundo que vai chegar lá. Tem pessoas que vão se conformar, como a minha vó de 90 anos que até hoje costura vestido de noiva e sabe que ela não vai ficar rica fazendo isso, e tem pessoas que não vão fazer. E aí é óbvio que quando você promete uma coisa e coloca um objetivo, tem pessoas que simplesmente falam “meu, eu não vou fazer isso”, e aí você gera criminalidade. Porque aí você tem pessoas que são excluídas, que não têm acesso a ao mínimo, e falam pra ela “não meu, você tem que trabalhar. Como assim você não tem o mínimo e você não tem que trabalhar?” E isso então é… É claro que isso gera, pro Merton – e isso faz muito sentido – gera uma criminalidade, que é a maior criminalidade que a gente tem, que é roubo, furto e tráfico. Você não tem dono de empresa praticando furto de carro, você vai ter ele fazendo crime de colarinho branco. E aí a gente vai entrar no que a gente tem da teoria que é da associação diferencial. Que é o quê? Porque os crimes do colarinho branco aparecem? Primeiro: porque são crimes complexos, crimes difíceis de serem traçados, de serem descobertos, de você conseguir ver tudo. É só você ver as complexidades do que tem sido a Lava-Jato. É muito complicado, é muita coisa, você vai puxando fio atrás de fio, que é muito mais difícil de resolver do que o tráfico da esquina, que você chega, olha, vê, o policial já pega e faz o flagrante. O do roubo do carro. E além disso a gente sabe que a punição demora e a pena não é tão alta. Tem um dado interessante que é o seguinte, eu vou fazer a pergunta pra vocês e vocês me respondem: Cris, por exemplo, o que que é mais grave, eu sair daqui hoje, ir até a [Lojas] Americanas e furtar um celular de mil reais ou eu sonegar 20 mil reais de imposto?

Cris: Todos os dois são crimes contra o patrimônio, né? E a preocupação que eu tenho hoje, sinceramente, é muito mais com o crime contra a vida. É o crime que agrega violência…

Lucas: Não, mas eu furtei, eu não fui violência [violento]. Eu entrei na Americanas, tinha um celular no display, eu peguei e saí correndo. E eu soneguei 20 mil reais de imposto.

Cris: É, sonegar 20 mil reais de imposto, por causa do valor absoluto do patrimônio.

Lucas: E aí, uma escolha interessante do legislador, que eu acho que é onde tem parte do problema, que é o seguinte: hoje dificilmente você vai conseguir falar de bagatela do celular de mil reais no judiciário. Você tem bagatela, por exemplo, de um cara que furta uma coisa dez centavos, um real, dois reais… tem gente que bota no teto do salário mínimo. Mas você não vai conseguir falar pra um juiz que isso é bagatela. Em compensação, se você pegar a portaria número 75 de março de 2012 fala que não serão inscritos na dívida ativa e não terão qualquer tipo de ajuizamento no processo de execução fiscal os débitos cujo valor totalizado seja igual ou inferior a 20 mil. Ou seja, se você deve, se você sonega até 20 mil, a fazenda nem vai atrás de você. Não vale a pena. E os juízes aplicam isso pra esfera criminal também. Então meu, se sonegou até 20 mil, tem gente falando aqui que a gente nem vai atrás. Então é óbvio que tem uma diferença de tratamento do legislador pra uma conduta e pra outra. Claro, você vai falar da relevância, vai se falar que o cara que sonega impacta muito menos a sociedade, tipo assim, se eu falar pra você hoje: “eu soneguei 20 mil” a maioria das pessoas vai falar: “beleza, legal”… [Ju: Parabéns né, a gente não tem essa consciência social…] [Cris: como você é esperto, inclusive.] Agora, se eu falar: “eu furtei um celular nas Americanas”, o cara fala: “porra, meu, você furtou um celular na Americanas, você é louco, por que que você fez isso?” Então isso passa por uma escolha, muitas vezes do legislativo, e a nossa visão do que é crime e de qual conduta é mais gravosa. Então a gente prefere criticar muito mais quem furta um celular da Americanas do que um cara que sonega 20 mil de imposto, que muitas vezes, como você falou, fala: “meu, esse cara é gênio! Você conseguiu sonegar imposto, o Estado rouba. É roubo. Se você conseguiu sonegar, tá ótimo.” E é óbvio que 20 mil sonegado tem muito mais impacto social do que um celular da Americanas.

Cris: É uma boa premissa.

Ariadne: Com relação à questão da forma como tá colocada aqui, os dois, é óbvio, que tanto a polícia quanto o judiciário tem uma contribuição com relação a qual é o perfil das pessoas que são presas, né. Então as leis quando elas são escritas, em tese as leis são iguais pra todos, mas dependendo da forma como elas são escritas, aí é o exemplo que ele deu, a questão de que que é considerado um crime grave ou não e aí isso de alguma maneira está determinando que tipo de criminoso vai praticar cada um desses crimes, né. E aí depois isso tem relação com a forma como eles vão ser flagrados, é a polícia que vai atrás no caso, a polícia militar ostensiva que vai atrás do criminoso comum pé-de-chinelo, desse cotidiano. E enquanto se você tem outros tipos de crime que podem ser mais graves eles vão estar cercados de outros tipos de coerções que não são da mesma natureza e não são coerções físicas, por exemplo, como no caso da polícia militar. E quem executa a lei. Então você tem esses três: quem faz a lei ou como a lei é feita e quem aplica, tanto da polícia quanto o judiciário pra chegar numa resposta à respeito da discriminação. No caso, por exemplo, como a entrevistada deu uma série de exemplos se relacionando ao tráfico de drogas. Como a gente já falou aqui, o que é ou não o traficante, você tem o varejo e você tem o atacado. Quando você tá trabalhando mais pra prender no varejo, que foi o exemplo que ela falou, se você pensar como lei de mercado mesmo, você tá penalizando aquele que pouco lucra com isso. E mais do que isso, a lei muitas vezes, a forma como ela é aplicada mais do que como ela é escrita, ela tá pensada pra punir o criminoso mais do que o crime. A lei é pra punir o crime. Mas o que tá por trás, a ideia que tá por trás, é de que aquela pessoa ela não cometeu um roubo, ele é um ladrão. Quer dizer, é contumaz, ele vai fazer isso sempre, isso é da pessoa dele, [Cris: é a índole] é algo que é inerente à índole dele, ele é contumaz e ele precisa ser contido e tirado de circulação. E aí o que ela vai problematizar aqui, e pelo que eu entendi, ela fez um trabalho com as presas, é pra mostrar como as vezes num cotidiano de comunidades pobres o crime aparece como uma de várias outras alternativas. Então, num dia você pode fazer isso e no outro você faz outro. Então você passa droga num dia porque você tá precisando de dinheiro, ou porque faz parte das conexões ali, então você embalar a droga ali enquanto você tá conversando com a comadre de outra coisa, você fazer um corre, como dizem, coisas desse tipo. Mas ao mesmo tempo num outro dia você pode fazer um outro tipo de trabalho, é só um trabalho como outro qualquer em algumas situações. Principalmente na questão do tráfico, porque a questão do tráfico acho que é interessante, a gente tem voltado à ela o tempo todo porque ele é uma parte da origem do encarceramento e das questões que discutem como resolver tão nisso, porque ele é um crime contra a sociedade. É um crime sem vítima…

(Bloco 5) 41’ – 50’59”

Lucas: [Interrompe] Na verdade ele é… pelo código, ele é contra a saúde pública. Esse é o bem jurídico tutelado que o tráfico de drogas ofende. Então todo crime no nosso código, ele tem um bem jurídico, ou seja: um furto – patrimônio, tráfico de drogas, é a saúde pública. E aí tem discussões sobre se…

Ju: [Interrompe] se todo mundo que tá fumando também taria atentando contra ela.

Ariadne: Ou com um carro, um carro que polui, ou… [Lucas: Exatamente.] Uma indústria que polui de alguma maneira também, né, em alguma medida você pode estar… ou sei lá, agrotóxicos…

Lucas: [Interrompe] Ambiental, um crime ambiental, por exemplo. Mas tem, tanto que tem outros crimes, por exemplo como: “ah, você foi… “ um crime que é tipificado muito grave é você fazer adulteração, por exemplo, de produtos cosméticos. Então, por exemplo, você tem um creme e aí você fala: “meu, vamo colocar alguma coisa nesse creme pra dar…” [Cris: um formolzinho…] por exemplo. Isso é um crime com uma pena altíssima: saúde pública, entendeu? Ou a questão de medicamento é saúde pública também. Então esse é o bem jurídico tutelado que o legislador se preocupa. No caso do tráfico de drogas tem uma discussão gigante e que divide aí 50-50 sobre se ofende ou não a saúde pública.

Ju: E pra isso tem o Mamilos número 3, de drogas. Vamos continuar na discussão? Porque assim: a gente tá falando que a gente está em disputa se existe superencarceramento, mas a superpopulação dos nossos presídios não tá em disputa. A gente tá acima da nossa capacidade. Considerando isso, a gente quer conversar um pouquinho sobre como se prende. E pra falar sobre isso, a gente vai chamar a Mirella, que é socióloga, agente da Polícia Rodoviária Federal desde 2013, que atualmente desenvolve atividade profissional voltada ao desenvolvimento de ação de bem-estar e saúde institucional e de direitos humanos.

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Mirella: Nós temos atualmente cerca de 1 milhão de pessoas presas e aí a gente forma, assim, a terceira maior população carcerária do mundo. Pois bem, então, um fator que eu acho que a gente precisa levar em conta quando a gente fala dessa população é do número de presos provisórios no país. Segundo dados do CNJ, o Conselho Nacional de Justiça, atualmente a gente tem cerca de 246 mil presos provisórios no Brasil, isso quer dizer que cerca de 1/4 da nossa população carcerária está presa sem ter sido condenada por uma sentença transitada em julgado, quer dizer que 1 em cada 4 pessoas presas, não foi condenada em definitivo pelo judiciário e olha que eu tô falando da média nacional porque, no Amazonas, por exemplo, esse número chega a 66% da população carcerária do estado. Quer dizer: lá a gente tem mais preso provisório do que preso definitivo.

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Ju: O senso comum diz que a gente prende pouco. Prega o mito da impunidade. Em qualquer entrevista que você fizer com policial, você vai escutar o desânimo que dá eles arriscarem a vida, prenderem em flagrante delito, só pra ver “o bandido solto alguns dias depois”. A sensação pavorosa de enxugar gelo. Então assim, afinal de contas, a gente prende muito ou pouco? A regra tá frouxa, facilitando quem burla a lei escapar, ou a gente tem um estado de exceção que não respeita os direitos individuais? Porque são universos completamente diferentes, quando cê conversa sobre esse assunto, cê tá falando, parece que cê tá falando de dois planetas diferentes, entendeu? Quando cê vai falar com o policial, cê vai falar assim: “cara, o problema é que a lei é frouxa e a gente tá enxugando gelo, essa galera escapa no meio dos nossos dedos.” Isso que você falou, tipo: “a delegacia tá sempre lotada de roubo de celular. Eu não consigo dar conta disso, porque eu pego o moleque num dia, no outro dia o cara tá na rua”, entendeu? Ao passo que você tem a contra resposta disso, que é “gente, a gente tem uma população carcerária que não comporta na estrutura que a gente tem, e considera que ¼ dessas pessoas nem deveriam estar lá; porque juridicamente não deveriam estar lá.” E aí? Qual dos dois mundos é a realidade?

Lucas: Essa é uma resposta que eu acho muito, muito difícil. Porque você falou: esses dois pontos são muito gritantes. Eu acho que não tem ninguém aqui que tá ouvindo a gente que fale assim: “Não, gente. O Brasil é um país seguro. Eu posso ir tranquilo na rua que não vai acontecer nada.” Ao mesmo tempo os números de pessoas, de presos provisórios, ele é grande. Eu acho que aí existe uma questão que é a questão de escolha. Qual é a questão de escolha, a questão que eu sempre bato quando eu discuto esse assunto, eu acho que tem muita gente falando: não se escolhe prevenir crime algum. Não se previne crime, porque ninguém estuda prevenção de crime. Ninguém se dispõe a fazer prevenção de crime. Então é óbvio que vai acontecer. Se você não previne, acontece. Aí quando acontece, o Estado vai tentar fazer o máximo possível pra punir ou né… assim, esses crimes… [Ju: remediar] remediar. Aí você tem, por mais que você fale, você tem um Estado que tem problemas, então você tem o Judiciário que é abarrotado de trabalho; você tem falta de condição – há um tempo atrás saiu uma notícia que, por exemplo, de servidores, não de juízes, mas de escreventes do TJ de São Paulo tem um déficit de 3.000. Escrevente é o cara que faz o processo andar. O processo quando fica parado num canto é porque não tem um escrevente pra ajudar. Porque um juiz não pode pegar todos os processos, um a um, e fazer todas as burocracias, vamos colocar assim. Então você tem juízes fazendo audiências todos os dias, tem processos, cada vez mais processos chegando e você, por uma questão de custo, obviamente, de gasto, você não consegue dar vazão pra esse número de processos e aí vem a questão do preso provisório. Por que tem muito preso provisório? Porque você não consegue dar vazão pra julgamento. Tem milhões de julgamentos em São Paulo todos os dias. E a gente tá falando de São Paulo, que é um Estado que tem muito investimento, que o Judiciário tem muito dinheiro, que o Ministério Público tem muito dinheiro. Quando você coloca os dados…

Ju: [Interrompe] Amazonas, 61%.

Lucas: A gente sabe que lá vai ter muito menos dinheiro de repasse e muito menos investimento nesse tipo de coisa e, por isso, muito menos julgamentos. E aí, como que isso continua? Você faz essa prisão, que é uma prisão que não vai prevenir – a gente vai discutir depois a questão da função da pena – e quando você não previne um crime, ele vai continuar acontecendo. E você vai continuar tendo prisão em flagrante, você vai continuar tendo gente sendo jogada na prisão e gente que, depois de um tempo, vai ser jogada de volta na sociedade e muitos deles – a gente sabe da taxa altíssima – reincidem. Por um problema, novamente, no sistema de punição. Então foi uma escolha de não se prevenir, que agora a gente tenta remediar sempre correndo muito atrás do problema; e remediar não é a solução. Remediar é você às vezes passar um pano, jogar a sujeira pra baixo do tapete, você fala que: eu prendi dez, prendi vinte, tô tentando. Mas e lá atrás? Alguém tá fazendo alguma coisa?

Ariadne: É, então, eu acho que a questão da impunidade, primeiro… bom, tem vários elementos que tão por trás, então cê tem desde crimes não registrados, crimes que não são… autores que não são identificados quando você registra um crime, mas não há investigação; e por última instância, quando você tem o autor identificado e por alguma razão ele não é punido – ou porque a investigação não foi boa ou porque, enfim, o que é que pode ter acontecido pra… você tem uma série de elementos aí que, de alguma maneira, vão dar na ideia de impunidade, né? E acho que toda essa sensação de impunidade que a gente tem primeiro vem da ideia de que as pessoas conhecem pouco o sistema carcerário, conhecem pouco o trabalho do Judiciário. Acho que tem a ideia de que nada tá sendo feito. E aí quando você olha pra cadeia, cê fala: “ué, mas… que que esse monte de gente tá fazendo aqui?”

Cris: Não fecha, né, a conta?

Ariadne: Parece que a conta não fecha, porque o pressuposto é: se eu prendesse muito, aí eu não teria crime. Né, então a ideia da impunidade vem de: “ah, eu tenho muito crime, porque eu tenho muita impunidade. Se eu começar a punir mais, eu vou ter menos crime.” Então a relação é como se fosse uma relação… [Ju: Direta] direta entre as coisas. E aos poucos a gente vai vendo que não é, né? Então o que a gente vê que é um problema não é só o fato de punir muito ou punir pouco. É de punir mal. Então você tende a punir crimes que não necessariamente deveriam estar sendo preocupação ou foco como prioritários e as coisas que são realmente graves – e aí a gente acho que tem que bater muito na tecla, que a prioridade deveriam ser crimes contra a pessoa e crimes violentos. Essas são as coisas que deveriam preocupar mais e que deveriam ocupar o trabalho da polícia na maior parte do tempo; esse deveria ser o foco. É uma questão de priorizar.

Cris: Tá, mas e aí tem o que o Lucas já até soltou aqui da bagatela, que é o princípio da insignificância, que é: “ah, esse crime não é grave o suficiente pra ser punido.” E aí tem toda uma rede de pessoas que discute que, a partir do momento que você não pune, você é conivente e esse crime tende a aumentar. Então esse princípio, eu acho que ele tem sido muito aplicado, porque vira e mexe a gente… nós já fizemos aqui no Mamilos uma conversa sobre o Rafaela Braga, que era o cara da manifestação, que tava carregando um Pinho Sol [desinfetante] e que tá preso até hoje, né, muito tempo de uma pessoa presa, e a bagatela aí não é aplicada. E aí quando ela é aplicada, a gente tá falando que: “estamos incentivando o crime”. Esse princípio é válido? Do que que a gente tá falando aqui?

Lucas: Juridicamente, tem uma discussão – juridicamente sempre tem uma discussão e tudo sempre vai ser “depende” no mundo do Direito – mas a questão… qual é o problema da bagatela? A bagatela, ela não é, não tem lei. Não existe nenhum texto legal que defina até onde vai a bagatela. A bagatela é realmente, ela é um… a gente chama de “princípio”, mas o princípio, ele não tá escrito, que vem de razoabilidade, proporcionalidade. Eu falar pra você que eu vou punir por furto o cara que leva embora daqui uma tampa de caneta soa desrazoável. Não me parece razoável. E aí você fala: “então, qual é a ideia jurídica por trás?”. Você tem a tipicidade da lei, então fala: o que que é furto? Subtrair objeto móvel alheio, resumidamente. Só que, efetivamente, ele não vai ofender o bem jurídico. Quando eu roubar a tampa de caneta da Cris ou da Ju, eu não tô diminuindo o patrimônio dela efetivamente, o meu interesse, ao fazer isso, não é aumentar o meu patrimônio. Então não tem porquê. Só que você começa a falar: “bom, e no roubo?”. Quando você tem, por exemplo, violência. O cara, tudo bem, ele levou dois reais, mas ele levou apontando a arma na sua cabeça. Então você começa a questionar até onde vai o princípio da insignificância, o princípio da bagatela, e tem gente que fala, meu, quando você… e isso é uma coisa que não tem estudo, assim, a gente critica de um lado e do outro, se eu falar pra você hoje, Cris: “olha, você pode entrar no Walmart e levar até dez reais, que é bagatela.” Mas peraí, se todo mundo levar dez reais do Walmart, é um caos. Por isso que é o problema de você não ter expresso esse limite na lei. Fica pra cada juiz. Eu já vi, por exemplo, juiz dar bagatela de dois mil reais. Não me parece, dois mil reais, um furto de uma pessoa física, ser insignificante, entendeu? Ele entendeu que sim, e ele tem fundamentos pra isso, ele tem o direito, como juiz, de entender, de fazer uma interpretação.

(Bloco 6) 51’ – 1:00’59”

Cris: Outro dia a gente tava discutindo, uma pessoa que limpava a delegacia que comeu um bombom do delegado, e ele mandou recolhê-la.

Ju: Exato.

Lucas: Sim. Então aí sim. Por que que a gente precisa dar significado de alguns casos? Porque a gente vê falta de razoabilidade, de proporcionalidade na aplicação. Não era… a gente não sabe se esse caso virou realmente um processo…

Cris: [Interrompe] Não, ele acabou desistindo, porque acabou acontecendo muita crítica.

Lucas: Ou denúncia, então… Então assim, existe uma diferença entre eu prender e eu oferecer uma denúncia e iniciar um processo. Eu acho que é mais perigoso quando você inicia um processo de um caso desse, não foi o que aconteceu, mas assim, enquanto você tem gente que acaba errando a mão e “furto, vou denunciar por furto de um roubo de um bombom da delegacia”. Você precisa precisa de uma ferramenta, nem que seja pro juiz falar assim: “Meu, calma. Menos.” Porque a lei fala: “você tem que prender”. A lei não vai falar pra você que não pode, ela vai falar: “Olha, se for a base de tanto, você tem uma diminuição de pena.” Que no caso é o furto privilegiado. Mas a lei não fala que você não pune. Então o judiciário se viu obrigado, de certa forma, a criar uma ferramenta de escape pra esses crimes que são insignificantes ao bem jurídico, que ele tá tutelando. Meu, não faz sentido você punir um roubo de um bombom ou de uma tampa de caneta, mas muita gente vai discutir sobre isso.

Ariadne: É, eu acho que é só importante eu fazer uma reflexão aqui, quando eu digo que pune muito e pune mal, o que eu tô dizendo é: prende muito e prende mal. Porque em última instância, a prisão não é a única forma de punir, só. Então, não significa dizer que esses outros crimes que são contra o patrimônio ou são de menor potencial ofensivo, não significa dizer que eles não serão punidos se as pessoas não forem presas. O que a gente tá problematizando aqui, o que a gente tá discutindo do sistema carcerário é: ‘Será que essas pessoas deveriam ter penas de privação de liberdade em função disso? Essa é a única forma da gente lidar com esse problema?’ Isso tem um custo, isso tem uma implicação, né, você colocar uma pessoa na cadeia por cinco anos, por quatro anos, por enfim… O que que isso implica? Pra gente saber, pra gente pensar. [Ju:Relação causa e benefício, né?] É. Primeiro a gente, eu acho que cada vez mais a gente vai precisar discutir isso, é se a gente consegue prevenir crime com esse tipo de pena. Né, a gente não tem sido bem sucedido nisso. Você coloca a pena, o discurso que eu levanto a bola pro nosso criminologista pra discutir é a questão da certeza da punição e da severidade da punição, né. Então o que que pode ter mais impacto? São penas duras? “Se eu colocar pena de morte aí as pessoas vão deixar, elas vão pensar duas vezes antes de cometer um crime.” Porque você tá partindo de um pressuposto que um criminoso faz uma escolha racional, ele pensa: “Hum, acho que vou cometer um crime. Qual que é a chance, quanto tempo eu vou ficar preso se eu cometer esse crime? Vale a pena ou não vale?” Ele faz a conta e ele vai lá. Ou ele faz a conta de qual é a chance de eu ser pego e punido se eu cometer esse crime. Então, o que… Quais são… Você tá partindo de um pressuposto que existe uma racionalidade por trás e que ele faz uma série de escolhas e a partir de quais são os elementos que tem pra tomar essa decisão. A coisa não é bem assim na realidade. Então não… se você aumentar as penas, deixar as penas mais duras, etc. E aí prender pessoas, prender muito, você não tem garantia do poder das suas ordens, você não tem garantia de que as pessoas vão deixar de cometer crimes por isso.

Cris: Eu só queria aproveitar ainda esse bloco que a gente tá falando sobre como a gente faz esse senso comum de prender pouco ou a gente prende muito. Porque quando a gente olha pro sistema carcerário ou quando a gente vê qualquer matéria, qualquer foto que sai, quando você olha pra aquelas pessoas você vê que elas oferecem um risco muito pela condição social que elas são colocadas; você não olha pra aquilo ali e aquelas imagens e aquelas coisas, você não vê as pessoas que realmente roubam muito. Cometem graaandes furtos, são chefes de graaandes quadrilhas. Quando você olha pras imagens de qualquer interior carcerário, você vê gente que já tem uma cara de sofrido. De pobre.

Ju: Mas deixa eu falar uma coisa, eu tenho uma questão aí que é numérica que é…

Lucas: [interrompe] Quantos são os donos, quantos são os donos de gangues, quantos são…

Ju:É. Porque assim, sabe que crime que a gente vai atrás pra tentar solucionar e pegar esses caras? Roubo de carga. Roubo de carga no Brasil tem muito [Ariadne: Por que será, né?] e isso fere muito indústria, isso fere. Então a gente vai atrás, esses caras estão presos sim. É que o incentivo é grande, como ela falou, então sempre tem gente entrando nesse mercado. Mas a gente tá enxugando esse gelo, a gente tá prendendo esses caras. Só que pra você roubar carga, a sofisticação que precisa, o acesso que precisa é outro. O quanto você tem que tá disponível pra risco, enfim, é outro perfil. Então pra cada 100 pessoas que roubam celular, você vai ter um cara que vai roubar carga. Eu tô inventando, Data Ju, esse número. [ Risos] Mas é por isso que na… Então assim, também tem algumas coisas, correlações que não dá pra fazer, entendeu? Não é que eles prendem pouco crimes grandes, é que crimes grandes acontecem em menor proporção do que crimes pequenos, também tem isso…

Cris: É, eu acho que na verdade os crimes grandes acabam utilizando, muitas vezes, essas pessoas que acabam sendo as pessoas presas. A sensação que tenho, quando eu olho pra esse quadro visual que nos é colocado, é que a gente tá prendendo ladrão de galinha e tá deixando realmente as mentes pensantes por trás das coisas realmente que causam prejuízo ao patrimônio, e aí eu tô falando de grande prejuízo ao patrimônio, sem punição. A sensação que eu tenho é essa.

Ju: Aproveitando que a gente tá falando sobre: a gente já discutiu um pouco sobre quantidade de aprisionamento, vamo qualificar um pouco esse aprisionamento, então se a gente discute ‘Se estamos prendendo suficiente’ e a questão maior é ‘Se estamos prendendo bem?’, ‘Quem a gente prende?’, ‘O que a gente faz depois de preso’, ‘Se isso tá funcionando, se tem alguma função’, a gente precisa conversar um pouco sobre o descumprimento de lei de execução penal, e pra isso a gente vai trazer de volta a Mirella, que a gente já conversou, da Polícia Rodoviária Federal.

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Mirella: A gente tem aqui a lei de execução penal que é uma lei orientada pelo respeito dos direitos dos presos e para sua reinserção social. É uma lei que reflete entendimento de que a dignidade da pessoa humana é fator fundamental para existência de um estado democrático de direito e que entende o impacto social das ações realizadas junto à população carcerária como positivo e muitas vezes definitivo. Prevê o direito à educação, ao trabalho e à ressocialização do indivíduo encarcerado como uma resposta para a diminuição dos índices de criminalidade e de violência no país. Mas a realidade é que esses fatores foram pouco ou nada respeitados e aplicados dentro do Brasil.

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Ju: Colaborando com essa visão a Thaís Duarte, que é socióloga, doutoranda em Relações Afetivas no Cárcere e autora do artigo ‘Sentimentos no Cárcere, análise de narrativas de mulheres de presos sobre o amor.’:

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Thais: Quando eu menciono o aprisionamento, eu menciono o encarceramento de pessoas que vão pra estabelecimentos sem qualquer direito, sem qualquer garantia de direitos. Então são estabelecimentos com problemas graves de infraestrutura, né, são estabelecimentos superlotados, em que as pessoas não têm acesso à justiça, não têm acesso à educação, não têm acesso ao trabalho, ou seja, um quadro de completa violação dos direitos das pessoas privadas de liberdade. E nesse contexto que surgem, por exemplo, organizações criminosas, que ensejam, né, o ocorrido nas prisões no final do ano passado e no início desse ano, né. No início desse ano, apenas no mês de janeiro, existiu mais de uma centena de mortes de pessoas privadas de liberdade, né. Só que é possível falar então que esse processo de encarceramento em massa, somado a péssimas condições de encarceramento, fornece base pro nascimento e concentração de grupos que, pra além de atividades criminosas, né, assumem um protagonismo na gestão da violência nas prisões que, num segundo momento, depois de uma fase de consolidação do grupo dentro do cárcere, se estende para áreas periféricas das cidades, né, como por exemplo, periferias e favelas. Então quanto mais os grupos criminosos se consolidam, se fortificam, e fazem articulação entre o dentro e o fora do cárcere, mais o governo, mais o Estado, investe na ampliação de um sistema que o nutre.

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Ju: Vamo escutar agora o Samuel Lourenço, que tem um lugar de fala muito específico nessa questão. Ele ficou preso alguns anos e agora tá em regime semiaberto.

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Samuel: O sistema não consegue suprir a necessidade de todos aqueles que estão tutelados ali. Então, assim, você vê um grande desafio de dar o suporte mínimo pros presos. Você tem a lei de execução penal dizendo que é dever e responsabilidade do Estado a assistência da saúde, das questões de higiene, de todas as coisas ali dentro de necessidades pessoais dos internos, porque eles estão custodiados pelo Estado e, na verdade, essas questões mínimas não conseguem ser supridas, né?

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Ju: E aí eu pergunto pra vocês: investimento em presídio é visto como regalia. Num país pobre e desigual, em que o investimento em bem estar social ainda é muito precário, é polêmico oferecer melhores oportunidades depois que o cidadão desobedeceu a lei. Saúde, segurança, moradia, alimentação, educação. Porque a gente sabe que esses bens eles não foram oferecidos pra população, a gente sabe que antes do cara entrar no presídio, ele não teve isso, então por que que agora eu vou ter? “Então eu que trabalho com carteira assinada não tenho moradia garantida. Eu vivo angustiado com meu aluguel. Eu que trabalho com carteira assinada, não tenho certeza que eu vou ter comida pros meus filhos, então por que que o cara que tá roubando vai ter quando ele chegar lá? Eu que trabalho com carteira assinada, vou morrer na fila do SUS e às vezes não consigo atendimento à saúde. Então por que que o cara vai ter garantia de saúde?” Entendeu, então é muito polêmico. Não é pros políticos, é polêmico pra sociedade você estender esses “benefícios” que não foram garantidos antes, fora da prisão, você assegurar isso apenas depois do aprisionamento, né?

Cris: Qual que é obrigação que o Estado tem com essas pessoas? E por que que essa falta de investimento pode ser um risco?

(Bloco 7) 1:00’50” – 1:10’59”

Ariadne: Isso é uma, são questões que trazem à tona uma série de elementos, então acho que primeiro a gente pensar por que as pessoas estão lá. Então a gente já fez uma discussão a respeito do encarceramento e de uma solução que tem sido prender cada vez mais. Só que aí tem uma consequência, se você prende cada vez mais, essas pessoas estarão em algum lugar. Elas continuarão vivas, elas estarão dentro de um estabelecimento que precisa garantir o mínimo. Se você tá disposto a prender, você tem que tá disposto a sustentar aquelas pessoas com o mínimo de dignidade, porque esse deve ser o papel do Estado. Aí você coloca “ué, mas por que que eu devo dar dignidade pra uma pessoa que não respeitou os meus direitos? Se ele não respeita os meu direitos, eu não deveria respeitar o dele.” Qual que é o objetivo da prisão? Aí acho que a gente entra em discussões possíveis de: a prisão, ela serve pra dissuadir? Que é a ideia que a gente já discutiu de “ah se eu colocar uma pena forte e uma pena longa, as pessoas vão deixar de fazer, de cometer crime, e aquilo vai ser, vai ter um caráter de exemplaridade.” Então eu vou punir algumas pessoas e os outros vão ficar com medo. Então esse é um objetivo. O outro objetivo: se eu punir, eu vou tirar pessoas de circulação. Então aquele é um mau elemento que não vai tá ali no cotidiano, nas ruas da cidade, então a cidade vai tá mais segura de alguma maneira. A ideia então, pra além disso, a ideia de prisão como punição, de “ele precisa pagar.” E ideia que chega quase na vingança, que é fazer sofrer, é fazer sentir. Então por que que eu vou dar boas condições, se o que eu quero mesmo é fazer com que ele sinta mais do que o que ele causou? Então se ele causou um dano pra mim eu quero que ele sinta um dano ao cubo, eu quero que ele sinta na pele, eu quero que ele seja humilhado, eu quero que ele sofra, né. Então o discurso da punição, é um discurso de vingança, em última instância, a ideia de “Por que que eu não devo dar condições? Porque ele não merece. Ele tem que sofrer.” É isso que tá por trás. Aí você junta toda essa salada de coisas e aí você pensa: “Mas essas pessoas, elas vão voltar pra sociedade depois. E aí como é que eu vou resolver isso se eu tirei de circulação, mas ele vai voltar? Eu fui cruel na punição, mas ele vai voltar. Eu não reabilitei, que em tese deveria ser a proposta da prisão.” E aí você cria um problema maior e mais do que isso, ele tá dentro da cadeia, a cadeia parece invisível, tá nuns lugares que a gente nem vê direito, a gente não sabe quais as condições que essas pessoas ficam, a gente não quer saber na verdade, né. A gente quer que elas fiquem bem longe da gente e se possível que sumam, que explodam, né. Que se explodam, essa é a ideia. Mas aí você pensa: bom, se a pessoa cometer um crime contra o patrimônio ou um crime de tráfico de drogas, ela vai ficar presa por um tempo, ela vai voltar, ela não vai morrer e durante esse tempo ela vai tá em algum lugar, e que que ela vai tá fazendo nesse lugar? Ela vai… Tá em suspenso? Ela vai continuar vivendo, e ela vai… Ali dentro, e a gente entra na questão que foi colocada pela entrevistada, e aí a gente sabe que as nossas cadeias estão abandonadas e porque enfim… por falta de recursos, etc. Muitas vezes são os próprios presos que cuidam da administração de boa parte do cotidiano das prisões. Eles primeiro a partir das percepções das próprias violações, né, violações de direito, começam a se organizar, começam a se articular, começam a não só exigir melhorias, mas começam a pensar como atores políticos também e essa articulação, ela não tá só dentro da cadeia, ela tá fora também, então eles começam a perceber: “Bom, se a gente é um lixo, a escória, juntos somos mais fortes.” E aí você começa a entender que quanto mais você prende, você colocando as pessoas dentro da cadeia nessa situação [Ju: Tá alimentando.] Você tá alimentando um monstro, né. Evaí quando você vê o que aconteceu aqui em São Paulo em 2006, o que aconteceu lá no Amazonas agora no começo do ano, no Norte do país, Roraima, é um espelho do que já aconteceu em 2006 aqui, a gente viu isso acontecer. É uma demonstração de força. Essas pessoas, elas estão se organizando em grupos e tão disputando espaços e ali as mortes, elas não são punições, a questão da morte ali é articulação de forças entre grupos que tão criando alianças e oposições e uma hora algum grupo se torna hegemônico. Isso tem um lado bastante negativo de “Ah, bom, então eles que se virem”, mas os que se virem lá dentro depois vêm pra fora. E aí tem uma questão de “bom, quando você prende muito você tá criando esse monstro e esse monstro vai sair”, enfim, ele regula condutas dentro da cadeia e fora da cadeia e aí é difícil falar isso, mas teve alguns aspectos positivos que diminuiu algumas… porque ali você coloca regras pro funcionamento; você tem uma hierarquia, uma forma de funcionamento. Então o Estado se beneficiou de alguma maneira disso, porque o problema tá lá, e aí fica mais fácil de negociar de alguma maneira.

Cris: Ele se auto resolveu de alguma maneira.

Ariadne: Ele se auto resolveu.

Ju: Cara… É muito forte, porque primeira coisa eu queria pedir que quem tá ouvindo esse programa, escutasse complementarmente o podcast “Salvo Melhor Juízo”, eles fizeram dois podcasts sobre o assunto: um sobre como é a vida carcerária e o outro sobre essa guerra de facções; e eles explicam muito bem sobre o surgimento do PCC. Então eles vão explicar bem direitinho como a ausência do Estado, como a sua incompetência em gerir uma coisa que você que criou… Então é assim, enquanto você tá fora do presídio, você pode até entrar, a gente pode discutir se é bom ou ruim, mas o Estado pode dizer “Se vira! Você quer se sustentar, se vira.” Ali dentro ele não tem condições e pela ausência completa das condições dele se virar, você é obrigado a manter o mínimo. E você sim, claro que o Estado deveria garantir a minha segurança quando eu chego em casa, da Cris, de todos nós, mas aqueles que estão sob tutela deles, embaixo do teto dele, tem obrigação sim de colocar a segurança. Quando o Estado não proporciona isso, o sistema de alguma forma vai responder e a questão é: antes do PCC o sistema respondia na forma do bandidão, a lógica do bandidão; então quem era mais forte oprimia todos os outros e era um sistema extremamente violento. A subida, a ascensão do PCC, veio justamente pra regular isso, pra falar: “Escuta, vamo colocar uma ordem aqui? E a ordem é: ninguém pode prevalecer em cima do outro, todo mundo tem os mesmos direitos…” Quando você escuta do jeito que eles colocaram o que que significou o PCC, a mudança nos presídios antes do PCC e pós PCC, é muito difícil você não tirar o chapéu pros caras e achar que os caras são a solução para todos os nossos problemas. [Ariadne: É um risco] E aí você vê por que que o PCC tem força fora da cadeia, porque na periferia, quando a polícia não entra, não chega, não garante segurança nenhuma, eles garantem. E é do jeito deles. [Ariadne: Sim, exatamente.] E aí que tá o problema do lobo aí, chegando à espreita, que é por que que eles conseguem fazer uma coisa com rapidez e com efetividade que a gente, “Estado organizado” não consegue? Porque as armas que eles têm não são proporcionais às nossas; porque é matar quando quiser, quem quiser, do jeito que quiser; porque é infundindo o terror, quando… Assim, a gente não tem essa arma, a gente não pode pegar essa pessoa que a gente fez alguma coisa errada, que a gente não concorda e que publicamente está errado e eliminar de uma forma espetacular pra dar exemplo e infundir o medo, o Estado não tem essa arma na mão, entendeu.

Ariadne: Mas uma questão que pode ser colocada, que é uma discussão que tá pra além do que a gente tá propondo aqui, que é o poder que essas facções têm de regular condutas, né, e regular condutas dentro dos presídios e fora dos presídios, principalmente em regiões que eles tem o domínio territorial, ou pelo menos tem uma grande influência e eles têm assim, como uma empresa capitalista que tem monopólio, eles são monopolistas e eles chegam pra destruir o que tiver. Então não tem concorrente, então dentro das cadeias e dos presídios em que eles dominam, eles dominam, não tem rivalidade. Em São Paulo pelo menos essa é, pensando em Brasil, aí você vê os conflitos acontecendo. No Rio de Janeiro os conflitos são latentes, e também fora. Então eles vão ou eles entram em disputas com relação a bocas, etc, de tráficos de drogas ou outras modalidades de crime organizado e aí eles estabelecem algumas regras, e aí esse é o mais irônico: é que eles tem uma capacidade de regular condutas e eles garantem previsibilidade, né, então, num mundo que era imprevisível, que a…

Ju: [Interrompe] Não, e injusto. As regras deles são justas, você consegue entender.

Ariadne: É, é, muito entre aspas, aí é que tá: elas não são necessariamente justas, mas elas garantem previsibilidade. Então você sabe até onde… Você não tá mais num campo minado em que a qualquer momento uma bomba pode explodir; você sabe até a que ponto pode ir ou não. E aí um efeito irônico…

Ju: [Interrompe] E democráticas ainda, né.

Ariadne: Ah, mais ou menos… Eles têm uma…

Cris: É que na verdade eles são uma organização criminal.

Ariadne: Sim.

Cris: Eles são um poder paralelo e eles se organizaram muito bem, eles funcionam melhor do que o Estado.

Ju: Mas o ponto que eu queria dizer é: esse é o custo do vácuo. Não existe vácuo de poder. Se você não tá lá, alguém tá. E aí a questão que eu acho que é isso que a gente tava…

Ariadne: [Interrompe] Que é do monopólio estatal da violência no plano da sociologia [Ju: Exato.] que essa discussão é colocado é que é: bom, quem deveria ter o monopólio de usar a violência e aí de maneira legítima, com limites, é o Estado. Quando você tem outros atores disputando isso e o Estado pouco faz, se o Estado não recupera esse monopólio, ele deixa isso acontecer, porque o Estado teve vantagens com isso. O Estado teve vantagens com relação à regulação das prisões, então aquele monte de problemas que a gente via no passado – eu tô pensando principalmente em São Paulo porque é o contexto que eu conheço mais. Porque quando esses grupos, tem uma guerra inicial pra se estabelecer, e aí essa guerra monopolista, etc e tal. Depois que o monopólio tá colocado, há uma pacificação, né.

Ju: Morre menos gente…

Ariadne: Morre menos gente. Não só dentro dos presídios, como fora. Isso teve um impacto gigantesco nos índices de homicídio aqui em São Paulo. Porque o que aconteceu? Quando você tem um grupo que detém o monopólio ali, que determina as regras, você tem menos conflito; então você não tem disputa o tempo todo por boca, você tem uma hierarquia colocada. E aí é um problema antigo que você tinha era: bom, você tem o tráfico de drogas. A hora que eu prendo um traficante, eu tiro um cara de circulação, vai ter disputa com relação aos recurso que ele tinha, a boca que ele tinha, quem é que vai entrar no lugar. E aí você tinha disputas, enfim, sangrentas a respeito disso, porque você cria vácuos. Então quando você tem uma estrutura organizada por trás…

Ju: Você tira uma peça, logo vem outra.

Ariadne: Logo vem outra. E assim, vem de maneira suave, já tá colocada, né. Então as coisas ali acontecem com mais suavidade e mais do que isso: com relação a outros conflitos, conflitos interpessoais, eles definem quando se pode matar ou não a partir de determinadas regras. Existe uma hierarquia pra definir isso. Então existe sintonia, existe… Você vai, se você tem uma disputa, enfim… isso não tá em todos os contextos. Mas assim, a ideia de você recorrer a esses intermediadores e eles fazerem mediação pra decidir, você não pode simplesmente ir lá e matar.

(Bloco 8) 1:11’00” – 1:20’59”

Ju: [Interrompe] Então cara, tem sistema penal, Cris.

Ariadne: Tem, eles têm julgamento…

Ju: Eles têm julgamento, têm processo, pode recorrer…

Ariadne: Só que é sumário, não, mas é sumário. Definiu morrer e aí assim é… E aí, às vezes… E aí uma coisa que é muito irônica, é muito irônico com relação… E aí pra pensar o nosso sistema de justiça que é uma questão que acho que vai aparecer mais pra frente aqui que é: A vítima tem voz. No nosso processo penal a vítima não tem voz. Então você só vai lá e fala que um crime aconteceu e depois você não tem voz sobre o que pode ou não acontecer com aquele que cometeu um crime contra você, quem vai definir o que pode acontecer ou não é a lei. Você não tem direito a dar perdão, você não tem direito a… de alguma maneira opinar com a relação ao que pode ou não ser feito. E eu tô falando de um tipo de justiça, que é entendido como justiça restaurativa, que é uma outra coisa, mas assim, lá no sistema deles a vítima tem voz. A vítima, ela pode colocar ou tirar, ela pode… Então é…

Cris: [interrompe] Ela participa ativamente.

Ju: [interrompe] Elas estão à frente em algumas coisas.

Ariadne: Ela participa ativamente em algumas coisas. Então isso [Cris: É surreal.] é muito irônico. É surreal, mas assim, isso é resultado da política de encarceramento. Todo esse contexto e todo funcionamento dessa organização e dessas organizações, não é só em São Paulo, a gente viu isso acontecer em outros lugares, isso tem a ver com essas disputas; ali, quando você estabelece o monopólio, isso tem “vantagens” – e eu coloco vantagens entre aspas, eu tô aqui num áudio e eu coloco as aspas no ar, não aparece – mas o Estado, ele tem ganhos, porque “bom, dá menos dor de cabeça pra mim”, quer dizer… e aí eu tenho com quem dialogar em certas situações. Isso aconteceu em 2006, quando eles quiseram dar aquela grande demonstração de força em São Paulo, que enfim, aquilo foi uma queda de braço pra mostrar que eles eram fortes. Quando falaram que eles não eram ninguém, eles… bom, e aí teve avião indo até o interior com grandes autoridades pra sentar na mesa e falar: “pelo amor de deus, para! A gente tá na mão de vocês, que que a gente pode fazer?” Cê tem com quem dialogar, cê tem um interlocutor. É outra coisa, é outro nível.

Ju: É, então o que que eu gostaria que ficasse claro desse capítulo, que é: a nossa responsabilidade, porque tá dentro da nossa casa. Então assim, claro que o Governo é responsável por todos no país; claro que esses benefícios são garantidos pela Constituição e a gente, como um país pobre, não consegue ainda estender esses benefícios para toda a população e isso é, de fato, um problema. Mas a questão é: não é tratar o preso melhor do que o cidadão; mas essas pessoas tão dentro da nossa casa. Não fazer o que tá prometido em Constituição, deixar essas pessoas num ambiente fechado, ali, à mercê pra morrer, que a gente tem números que mortalidade dentro da cadeia é mais de três vezes maior do que a mortalidade fora da cadeia – ou seja, a gente tá literalmente atirando as pessoas pra morrerem lá, pra se matarem lá – e se omitir quanto a isso, se omitir quanto a condições mínimas de sobrevivência, tratar que nem bicho, tem alguns aspectos: número um, que é uma questão de direito, que isso tá errado, é uma questão de, não é direito, é ético, que isso é errado; número dois, uma questão muito mais de interesse próprio, que é você tá fomentando um ódio, uma capacidade de organização que vai aumentar cada vez mais e vir te morder o teu pé depois.

Cris: Agora entrando um pouquinho na seara tão complexa de como os presos são catalogados, a gente chama de volta o Samuel Lourenço, que teve uma experiência como presidiário e ele dá um pouco do tom de como isso acontece.

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Samuel: Uma das distorções do sistema prisional é a questão das celas especiais, né? Assim, os estabelecimentos prisionais pra quem tem nível superior já diz muito sobre o sistema prisional. Eu acho que se o propósito da pena é a reintegração harmônica do sujeito na sociedade, ele tem que lidar com as pessoas de níveis mais diversos possíveis. Então assim, não deveria isolá-lo; deveria integrá-lo. E seria muito proveitoso pra ele ter essa oportunidade de integração com pessoas com capital cultural diversificado, né? As outras distorções também, elas passam por esse aspecto de facção. Esse aspecto de seleção de presos. Embora haja aí uma proposta legal, né, pruma classificação técnica, até própria da Lei de Execuções Penais, eu acho que a falta de diálogo e de relação entre todos aqueles que incidiram em crimes similares de acordo com uma só lei, eles deveriam estar integrados. Uma situação que eu acho muito curiosa aqui no Rio de Janeiro são [é] o fato dos presos serem divididos por facções. E isso é interessante, porque assim, é uma instituição do Estado em que você vai neutralizar aquelas ações criminosas e vai anular o sujeito criminoso – porque senão não faz sentido chamar de penitenciária, né: aquilo ali é quase que um purgatório, é um período de purificação, como é que você vai destituir esse ser criminoso e formar um novo ser, se dentro do processo do sistema prisional, ele é rotulado tal como é? Então assim, a gente tira o traficante de determinada facção da rua e coloca esse penitente na mesma facção dentro de um estabelecimento prisional. Mas se colocar junto, eles podem se matar, eles podem fazer motim, rebeliões e cortarem mais cabeças do que essa que nós vimos recentemente nas imagens do início do ano. A gente precisa tirá-lo de circulação do crime, como é que a gente faz? Coloca ele junto com os outros criminosos, do mesmo pensamento político, dentro do contexto prisional. Então assim, essa é uma das maiores distorções também que eu encontro nesse sentido. Você tira o preso de uma determinada facção do convívio externo e coloca esse preso junto com outros presos e a mesma facção num convívio interno. Ou seja, o sistema prisional não tem a capacidade de anular essa prática faccional e acaba reforçando e legitimando; e não é capaz de garantir nem a vida do sujeito. Porque quem garante a vida do sujeito, não é o Estado, mas sim a facção [a] que ele pertence. Porque se ele for pra outra facção, ele morre. E aí não é um problema de facção, é um problema da ausência do Estado. O Estado é que se manifesta de forma repressiva nas periferias, nas favelas, no combate ao crime organizado, às drogas e à facção, ele é totalmente imóvel, assim, omisso, nas relações intra prisionais, intramuros; porque ele não consegue garantir a vida e a dignidade.

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Cris: Ouvindo aí um pouquinho mais do Samuel, vem a pergunta: o senso comum também fala que os presídios são universidades do crime, que ao colocar pessoas de backgrounds diferentes juntos, você promove a transferência de conhecimento. Mas a tentativa de corrigir essa distorção acabou criando um problema maior. Como então a gente pensa sobre essa nova distorção?

Lucas: Só um ponto que é um erro comum e que isso é comum, que é veiculado de maneira um pouco equivocada, que é a questão da prisão especial. Cê fala “prisão especial para quem tem ensino superior”. “Vou fazer ensino…” Quantas vezes você já ouviu essa piada? “Ah, você tá fazendo Ensino Superior pra quê?” “Não, porque se eu for preso, eu vou pra cela especial”. Calma. [Cris: Pior piada.] É. Pior piada, mas muito comum. O artigo 295 do Código de Processo Penal fala que “serão recolhidos a quartéis ou prisão especial”, aí ele fala, “a disposição de autoridade competente, quando sujeitos à prisão antes de condenação definitiva”. Então estamos falando de uma prisão processual, não prisão pena. Penas todos vão cumprir no mesmo tipo de estabelecimento. Essa é a pena que a gente chama da prisão preventiva. Então, foi o caso, por exemplo, do Eike Batista. “Ah, o Eike Batista foi para uma prisão…” não, ele não foi, né, ele não teria curso superior, então ele não teria ido pra uma prisão especial. Se ele tivesse, ele iria. Apenas enquanto o processo tá correndo e a sentença não transita em julgado. Porque eles entendem que você não deve misturar presos pena e preso provisório. Tanto que você tem CDP, que é Centro de Detenção Provisória, pra isso. Que assim: são coisas diferentes. São prisões com bases jurídicas e estruturas diferentes. Então assim, condenados, todos vão pro mesmo lugar. Sobre a questão de juntar por facção, juntar por tipo de crime, eu tive também já várias discussões com o pessoal por isso. O pessoal fala: “ah, se eu juntar por tipo de crime, eu posso criar uma guerra, porque você junta duas facções rivais, por exemplo, que foram presos, os caras se matam.” Porque você não tem o controle. Por outro lado, quando você junta os caras na mesa, você tá criando a salinha do PCC no presídio tal. E isso mais uma vez acho que cai nos problemas, que é a inexistência ou a baixíssima estrutura que a gente tem. Por exemplo, você fala: “Ah, vamos separar e isolar um preso de alta periculosidade. O Marcola. Você isola e ele não tem contato com ninguém.” Gente, ele não tem contato com ninguém? Cê acha, realmente, que ele não tem contato com os outros presos ou com outras lideranças? É claro que tem. E aí passa, primeiro: porque você não tem uma… você não consegue isolar, porque você… entra celular, porque passa, porque o agente penitenciário, ele ajuda. Então você tem uma falta de estrutura que permite você dar, primeiro: segurança, pra caso eles sejam de presídios diferentes, então você não consegue garantir que… o Estado tá falando assim: “gente, eu não posso colocar membros de gangues rivais em um mesmo local prisional, porque eles vão se matar e eu não consigo resolver.” Por isso que, assim, primeiro: a gente discute sobre a questão de ter ou não investimento, a gente tem quotes, até a Carmen Lúcia falou: “gente, a solução não é criar presídio”. Realmente, não é criar presídio, mas tem que criar. E tem que dar estrutura. Pra ter estrutura, cê tem que investir. Cê pega, por exemplo, tem uma matéria que saiu, não lembro onde, que mostrava fotos de um presídio na Noruega, que é um hotel. Você tem agentes penitenciários que estudam dois anos de um curso superior pra poder tratar dos detentos na Noruega. Ah, é claro que a questão da Noruega é muito fácil de lidar comparada com a questão do Brasil, extensão territorial, quantidade de crimes. Mas primeiro você precisa de uma estrutura, pra depois começar a pensar: “como que a gente vai dividir?” Porque antes de você fazer isso, você tá fazendo aquela coisa, eu vou fazer uma escolha pelo mal menor:

(Bloco 9) 1:21’00” – 1:30’59”

Lucas: É melhor eles não se matarem ou é melhor eu realmente garantir que os presos de baixa periculosidade não vão ter contato com o chefe da gangue ou a famosa escola do crime? Então como que não vou gerar a escola do crime? Colocando os caras com a mesma periculosidade juntos, eles não vão “ensinar” o preso de menor periculosidade.

Ju: Mas é que tem uma falha nisso que eu achei interessante eles colocarem, porque é uma coisa que a gente discute em educação também que é: se você pega um menino que é um mordedor e a professora olha ele como mordedor e a classe olha ele como mordedor e os pais olham ele como mordedor, ele será um mordedor. E isso aí, gente, não é… Não sou eu que estou falando, não tem a ver com inclinação política. Isso tem a ver com neurociência, com as pesquisas que são feitas agora [Cris: Comportamentais psicológicas…] que é sobre o quanto a expectativa sobre um indivíduo determina o comportamento desse indivíduo, condiciona o desempenho desse indivíduo, as possibilidades que ele tem, enfim… Então, por isso que eu acho complicado… Quando existe essa… Eu entendo muito bem quando falam: “Não vamos promover a escola do crime”, mas também quando me falam que você etiquetar as pessoas e imobilizar quem elas são e a capacidade delas por uma coisa que elas cometeram no passado vai contra a perspectiva, a necessidade educativa do sistema, de reabilitação do sistema. E aí eu não sei qual é, assim, eu não sei qual é a solução, entendeu?

Lucas: Isso é ótimo, o que você falou, Ju, de uma teoria que a gente estuda muito dentro do direito, dentro da criminologia, que é a do labelling approach. Que que é? O etiquetamento social, resumidamente. Isso na década de sessenta foi usado nos Estados Unidos que era o seguinte: ele tentava explicar como que você passa de uma pessoa comum para alguém que vai sair um membro de gangue ou um criminoso ou como que ele se… Por que é que isso acontece? Ele fala o seguinte, resumidamente: você tem a delinquência primária e que você tem diversos fatores, pode ser uma questão social, ele pode ser pego por acidente, ele pode ter praticado um crime numa situação onde, por exemplo, ele precisava do dinheiro, precisava comer, ele é levado e passa por um processo que é um processo frio, que é o processo jurídico, é um processo onde realmente, assim, por mais que a gente fale que são pessoas, mas é um processo frio da lei. Ele vai ser etiquetado no sentido assim: ele é condenado como ladrão.

Ju: [interrompe] Então agora ele é isso.

Lucas: Então você e ladrão.

Ju: [interrompe] Isso define ele.

Lucas: Você estigma ele depois de ter essa resposta ritualizada que é o processo; depois você distancia ele socialmente e reduz a oportunidade dele. E ele vai ter contato com o quê? Com o que a gente chama de subcultura delinquente que são pequenos grupos que falam: “Olha, também sou…”, “Olha aqui a minha etiqueta de ladrão, de traficante, de criminoso”. Quando ele olha aquilo e fala “bom, eu estou afastado, eu não tinha muitas oportunidades antes, agora, muito menos. Os caras estão falando que sou ladrão, que sou ladrão, que sou ladrão”. Então ele adere. Ele fala: “Eu sou realmente, então, ladrão”. E aí ele parte para a delinquência secundária que é o momento em que ele olha em volta e fala: “meu, é só isso que resta”.

Ju: [interrompe] Essa é minha identidade.

Ariadne: É. E mais do que isso, essa identidade, ela que tem um caráter negativo socialmente, ela é positivada. Então vira algo que tem a ver com masculinidade, uma série de outras coisas, mas então, “eu sou o cara barra pesada”. Então tirar a cadeia, o teu tempo de cadeia, faz parte do seu currículo, né? Ser pego, ser preso [Cris: Sua cultura, né?], se você entra numa carreira criminal com essa ideia de “bom, eu preciso ter algum lugar no mundo, né”, então se esse é o seu lugar no mundo então você tem que ser o cara mais bad ass desse mundo aí. Então [Cris: Você é bom nisso.] se você não tirou cadeia você não é durão o suficiente.

Ju: Cara, mas nesse podcast que estou falando para vocês escutarem, o “Salvo Melhor Juízo”, eles falam bastante sobre construção identitária do PCC, de como eles conseguem justamente construir isso, falam assim: valorizar o “ser bandido”. Então assim, não é… Cometer um crime é um ato, ser bandido é uma escolha, entendeu?

Ariadne: É uma construção de uma identidade que não parte só do sujeito. Ela tem, em alguns aspectos, ela é uma construção social também do meio em que vive, em que isso é valorizado de alguma maneira e tem relação com esses contextos. Enfim, você ser inserido numa cadeia em que você vai ter que aderir a alguma coisa porque se você não faz parte de uma facção ali dentro você vai ter muito mais problemas…

Ju: [interrompe] Você não tem como sobreviver, né?

Ariadne: É. Pois é, em última instância, se o Estado não garante a sua sobrevivência, se você está na dependência daquela organização que é quem regula, né, tudo ali, da [desde a] comida aos funcionamentos, aos acessos aos serviços, você vai ter que aderir. E aí é o que nos torna um referencial e aí eu acho que dá para entender como é que essa… Que isso deságua onde a gente tem chegado.

Lucas: E isso gera um problema, Ju, que é o seguinte: o nosso sistema não sabe resolver esse cara que está etiquetado. No momento em que ele se filia a uma subcultura delinquente, isso pode ser o caso do PCC ou é o caso skinhead, do neonazista, que pratica o crime por uma motivação totalmente diferente da nossa, passa a ser uma motivação ideológica. A gente não sabe resolver essa questão porque você não está mais trabalhando com a ideia de “meu, você praticou um erro, a gente vai te colocar de volta e te dar oportunidade”. Não! Ele já aderiu àquilo. Você tem que… como que você vai tirar aquela ideologia dessa pessoa? É a questão… Meu… Por que é que você não resolve briga de torcida de futebol? Do cara que mata porque ele é apaixonado pelo Corinthians e bate no Palmeirense até ele morrer? Porque isso… Ele não é criminoso do ponto de vista… Ele é um homicida frio, ele mata pessoas, ele não é um Champinha, ele não é um Maníaco do Parque. Ele é uma que tem uma subcultura e naquela situação específica, ele vai praticar aquilo por uma ideologia e você não consegue trazer esse cara de volta cem por cento. Esse cara, quando ele é parte disso, ressocializar ele é, assim, muito muito muito difícil você retirar esse cara, explicar pra ele porque ele tem que entrar na sociedade, reaplicar aqueles valores que a nossa sociedade põe, quando ele fala: “meu, peraí, mas agora vocês querem que eu volte para este modelo? Vocês fizeram tudo, me etiquetaram, me jogaram aqui dentro, eu só sobrevivi, fui acolhido, por causa dessa ideologia e vocês falam que eu sou ‘bandido bandido bandido’ e agora vocês querem falar que eu não sou bandido? E eu tenho que voltar e começar a trabalhar tudo de novo sem condições?”

Ariadne: E com antecedentes criminais que vão praticamente impossibilitar a reinserção dele…

Ju: [interrompe] Pois é, e isso a gente já vai para o próximo bloco, que é, agora que a gente já falou sobre o quanto a gente prende e como a gente prende, vamos falar sobre por que a gente prende, né? Qual é o objetivo, para quê que a gente prende. E aí a gente vai falar um pouco sobre exatamente essa questão que cê tava falando de reinserção social que teoricamente a gente prende para desincentivar o crime, para tirar o cara de circulação, reprogramar ele e colocar de volta na sociedade. Vamos ouvir de novo a Débora Ferreira, que é psicóloga lá na penitenciária de Charqueadas.

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Débora: Uma das maiores dificuldades que nós encontramos é a impossibilidade de aplicar de fato o tratamento penal adequado a esta pessoa privada de liberdade. Por quê? Porque nós temos alguns projetos, alguns programas para essas pessoas mas, em geral, esses programas e projetos, eles não propõem um espaço para reflexão e responsabilização das suas atitudes, né, e também eles não apresentam uma proposta de mudança de vida para essas pessoas privadas de liberdade. Uma das maiores limitações que temos é apresentar uma proposta de mudança de vida, uma alternativa, uma nova alternativa para essas pessoas privadas de liberdade. Falta [faltam] políticas públicas, desta forma, mais eficaz [eficazes], que apresentem propostas de mudança de vida significativas de fato na vida dessas pessoas.

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Ju: O Samuel, que [com quem] a gente já conversou um pouco, que já cumpriu pena e está em regime semiaberto falou:

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Samuel: A ausência de justiças restaurativas, de aplicações de medidas alternativas, faz com que o sistema prisional só tenha um efeito: isolar o sujeito da sociedade, mantê-lo isolado. Isolar de certo modo porque dentro das prisões os caras ficam aí com telefone, usam lá aplicativos de mensagens, redes sociais como a gente constantemente lê notícias, então eles não estão tão isolados assim. Mas a questão de confiná-los em determinados espaços, nas instituições de prisão, de tutela coletiva, elas implicam no isolamento desse da cidade, em especial, distante.

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Ju: E aí, gente? O que que… Você falou um pouco sobre isso. O que é que a gente quer quando a gente prende e se a gente consegue atingir esses objetivos quando a gente prende. Então assim, eu achei muito legal no “Salvo Melhor Juízo” eles questionaram no campo bem teórico, bem bem teórico, não prático, se a premissa que a gente tinha quando a gente criou o sistema de encarceramento ela continua sendo válida porque a gente não consegue mais confinar esse cara. Com o celular eles estão o tempo inteiro… Bom, o PCC é o melhor case para provar esse estudo, que é: esse cara continua comandando o crime, então você não tirou ele de circulação; apesar de ele não estar na rua, ele continua comandando o crime. Ele continua fazendo a lei e ele continua influenciando a cultura. Então eles falam muito bem como o moleque, mesmo que nunca tendo estado na cadeia, ele é formado pela cultura da cadeia, do tanto que essas trocas, elas são constantes. Tanto pela reincidência, então você tem pessoas entrando e saindo da cadeia o tempo inteiro, quanto pelas visitas, quanto pelo coitado que nunca acessou. Então a idéia que a gente tem, a premissa de tirar o cara da sociedade parece que não funciona mais. Que que vocês acham?

Ariadne: É, tem toda razão. Acho que o preso e, enfim, a sua existência, a ideia de deixá-lo à parte, num lugar invisível e… Para a sociedade é isso: a ideia de que “bom, a gente não tá vendo, parece que não está acontecendo”, mas na prática não. Na prática, entrada e saída da cadeia faz parte, então numa carreira criminal isso vai acontecer e quando você está lá, você não está numa [Ju: Isolado, né?] isolado porque ali dentro existe uma dinâmica própria também que interfere na dinâmica fora.

Ju: [interrompe] Essa é a questão. Essa separação de mundo dentro e fora não existe, né?

Ariadne: Dentro e fora não existe mais, os negócios continuam a acontecer então todos os… No mercado de crime organizado, toda a inserção que eles têm, ela não é abalada pela prisão, né? Então… Enfim, pontualmente sim, mas como negócio, não. Então de alguma maneira você não consegue desmobilizar isso com prisão. Então se esse era o objetivo, você não tá conseguindo concretizar o objetivo. Você tem uma punição que é mais… A ideia é impedir o direito de ir e vir, né, então… Mas esse ir e vir é físico, você garante que a pessoa esteja num determinado lugar, mas não que ela deixe de fazer certas coisas, que ela deixe de estar em comunicação, que ela deixe de operar. E que diferença faz então, né? Por que é que a gente precisa disso.

Ju: Tá, então. Assim, em termos de isolar, parece que não está muito bom. Em termos de desincentivar o crime, você também falou que parece que a relação não é tão direta assim. Em termos de punir, será que a gente está sendo efetivo? De você pagar o que você fez?

(Bloco 10) 1:31’00” – 1:40’59”

Ariadne: Olha, a punição é dura. No sentido de que as pessoas ali dentro, elas tão sendo colocadas lá dentro pra um sofrimento. Então você tem menos direitos lá dentro, evidente, você… na lei diz que sim, mas na prática, não. Então quando você tem superpopulação – você tem um número de presos muito maior do que a capacidade do sistema atender de maneira minimamente adequada – significa que essas pessoas vão sofrer uma série de privações, né, desde as coisas mais cotidianas, assim, de acesso a alimentos, de acesso a atendimento, de higiene, então são coisas básicas, né, que não são supridas. Então pune, nesse sentido de vingança, de uma punição física, que em tese você tá só tirando o direito de ir e vir, mas na prática, cê tá promovendo sofrimento físico e psicológico também. [Ju: Tortura, né.] É. Tem também um efeito psicológico, mas e aí, qual que é o resultado desse tipo de punição? Garante menos crime? Também não. Porque aí é aquilo que a gente discutiu aqui da incriminação, o criminoso vai ser etiquetado e vai reproduzir isso, né, isso vai fazer parte da identidade dele. Então, de alguma maneira, em termos de vingança ou, sei lá, de promover dor física ou sofrimento (acho que é a melhor palavra), tem funcionado. Mas pra quê isso? Qual que é o resultado disso? Isso diminui crimes? Dá mais sensação de segurança depois? Não, muito pelo contrário. A pessoa que é barbarizada, ela vai barbarizar depois.

Cris: Eu acho que, em última instância, né, se a gente olha pra esse sistema e se vê tão out, tão excluído dele, por uma questão minimamente egoísta, cê deveria desejar que o processo funcionasse com menos opressão, né? [Ju: O backlash vai vir.] Porque isso vai voltar pra você mesmo. Então, minimamente…

Ariadne: E aí a última característica que seria interessante que é a da reabilitação, essa eu acho que tá mais do que provado que ela não existe. Então dissuasão não tem um bom impacto; tirar de circulação tira fisicamente, em tese, mas não impede que os negócios, circuitos continuem operando; o sofrimento, então, acho que é a única coisa que… e aí, isso não é o que a lei… que irônico, né? Justamente o que a lei não prevê [Cris: é o que funciona] é o que a gente faz melhor, né, que é fazer sofrer; e reabilitação, zero. Então cada uma dessas questões, cê vai vendo que sistema é esse, pra que que isso é um recurso e por que que esse é o único recurso, acho que é uma coisa que precisa ser colocada.

Ju: É, acho que é exatamente isso.

Lucas: Essa questão é interessante, assim: eu enxergo que esses problemas não são inerentes à existência do sistema de privação de liberdade. A gente tem modelos, como já falou, em outros países, que funcionam. [Ariadne: Mas que o foco deles é a reabilitação.] Exatamente. Então assim, o problema eu acho que não é você fazer a restrição da liberdade – ou seja, você separar ele por um determinado tempo e colocar num outro ambiente pra que ele volte. Isso não é o problema. O problema é que aqui é aplicado de uma maneira inacreditável. É assim, uma maneira inacreditável e que, como muitas outras coisas no Brasil, a gente já tá amortizado. A gente já nem… sabe, questiona muito. Eu trouxe um… só pra, que eu tava comentando até com a Ju antes, tem um livro que é do Mariano Ruiz-Funes, ele foi Ministro de Justiça espanhol, o livro é de 1953 e ele cita, dentro do livro, que na Bélgica teve uma reforma do sistema penitenciário no ano de 1820. Ou seja, a gente ainda né, tinha escravos por aí enquanto eles tavam pensando em reformar o sistema penitenciário deles. E o que eles colocam é o seguinte: que você precisa fazer uma visão e focar individualmente cada preso. Você não pode tratar eles como… quando você vê qualquer reportagem, de qualquer jornal, de uma foto de um presídio, a única coisa que você não vê ali é individualização: todos eles são uma grande massa idêntica de pessoas que você não vê, não quer saber como são, não quer saber qual o crime de cada um e o nosso sistema, depois da condenação… na condenação você quer saber qual crime é, porque isso implica no quanto ele vai receber de pena. Mas depois você não pensa no caso a caso. Em 1820 a Bélgica tava preocupada, falando: “olha, cada preso – você pode colocar como “cada reeducando” – ele precisa de um tratamento diferenciado e específico pra causa dele. Você não tem como falar que todo tipo de criminalidade vem da mesma fonte. Então você prender todo mundo igual, com o mesmo sistema, é óbvio que não vai funcionar. É óbvio que a motivação dum crime de furto de celular é diferente do crime do Eike Batista. [Ju: Dum crime passional, por exemplo.] Dum crime passional. Ou dum crime de estupro. São fontes diferentes, sao construções diferentes. Então você precisa, obviamente, quando você pensa em ressocializar, junto com as outras funções da pena do Brasil, você precisa começar a pensar num projeto individualizado, onde você tenha assistência. A Lei de Execuções Penais fala que você tem que ter assistência social ao preso. Que é o quê? É uma pessoa, que ele fala que “a assistência social tem por finalidade amparar o preso e o internado e prepará-lo para o retorno à liberdade”. Gente, é sério, isso não existe. Você não tem nem contingente de funcionários preparados pra fazer isso com a quantidade de presos que a gente tem. Então a gente tem um sistema que na prática pode funcionar, então a gente tem modelos que falam: “olha, você pode separar ele da sociedade, reeducar ele, e devolver”. Você fala: “ok”. A gente tá colocando gente lá dentro? Tá, a gente tem um número razoável de pessoas que tão lá dentro. Depois disso a gente para. A gente não tem um modelo, a gente não tem proposta, hoje, séria, de falar assim: “meu, como que a gente vai ressocializar e reeducar?” Eu entendo que assim, só ressocializar, por si só, gera um problema, que é o seguinte: o cara irreparável. É o Champinha. O Champinha, o que dizem, é: ele não se ressocializa. Se ele não se ressocializa, a gente vai prender pra sempre (que é o que provavelmente vai acontecer com ele, com a internação). [Ju: Apesar de ser ilegal.] Então, o Champinha é um caso assim, quando alguém levanta a mão, fala o Champinha, ele fala: “óóó… a luz ali no fundo. Ó, Champinha, lá, lá, lá”. Porque o caso dele não tem solução, a gente não sabe lidar. Imagina você colocar o Champinha na rua. Sai a notícia amanhã na televisão que o Champinha está na rua. Ao mesmo tempo, você fala: “então vamos prender.” Aí cê fala: “mas você não pode prender pra sempre, o nosso sistema não permite”.

Cris: Mas o sistema de saúde mental permite.

Lucas: O STF hoje tem decisões que falam que mesmo assim você não pode ser “pra sempre”. Tem um… [Cris: E a gente tá falando de um cara super jovem, né] tem buracos pra você fazer… a Noruega, que eu citei aqui, eles têm um sistema de ressocialização, que você fala, eles têm uma pena máxima, se não me engano, de vinte e um anos, mas se eles entendem que você não tá apto, você fica por mais cinco, e mais cinco, e mais cinco, [Cris: Vai renovando] e mais cinco. Então até a ressocialização tem um preço, se a gente for olhar pra ela pura e simplesmente. Por isso que a gente…

Ju: Alguém vai ter que dizer: “está ou não apto”.

Lucas: Exatamente. E quando a gente fala isso, e se ele não tiver apto? Então a gente vai soltar e aí a função socializadora a gente esqueceu também, porque ele não tá mais apto? Então, por isso que a gente fala que no sistema brasileiro a gente tem que ter essa… um tripé, dois são previstos em lei, a ressocialização, ela é prevista expressamente como função da pena; a gente tem a função retributiva, que é essa função de “olha, você vai pagar pelo crime que você fez”, então você paga em X anos. Depois desse tempo, você “pagou” pela sua pena. A função preventiva, que é essa que foi até explicada, a Ariadne explicou e o Samuel explica isso também, que é o seguinte: você tem a prevenção pro indivíduo e pra sociedade; pro indivíduo é: se a gente separa, ele não comete mais crime; pra sociedade “olha, isso é crime, não façam”. E você tem a socialização. Quando isso tudo, teoricamente, funcionasse junto, você vai prender o cara por um tempo suficiente, por um tempo que faça sentido, que ele consiga voltar, e que você olhe pra sociedade e fale: “realmente, acho que não vale a pena eu praticar essa conduta se eu puder escolher”. Só que a gente não consegue fazer nenhuma das três bem. Como a gente falou, talvez a retributiva, no sentido de que a maioria das pessoas fica presa, mas ainda tem o questionamento, às vezes o pessoal tá… hoje, tá, se vocês tão ouvindo isso perto do lançamento, é a questão do goleiro Bruno. Muita gente tá questionando. Ele tinha que sair? O STF falou: “olha, a gente tá soltando porque ele já poderia ter progredido de pena se tivesse condenado.” Aí você assiste uma entrevista dele, onde ele fala que ele não faria nada diferente. Ele falou agora na Globo. Que ele não faria diferente, ele falou: “mesmo que eu ficasse preso, isso não traria a vítima de volta.” Ele não falou o nome dela. Ele fala “eu já paguei, paguei muito”. Ele não tá, desculpa, ele não tá ressocializado. Não me parece que ele passou pelo processo de ressocialização, por mais que ele tenha passado pelo tempo. Então é uma questão que envolve todos esses… o que a gente vai escolher: é soltar quando terminar o tempo? É botar uma pena que seja assustadora pra população, que é aquela história que vocês comentaram, até lá do cinto de segurança, botar uma multa lá em cima pro meu pai ser obrigado a falar “puta, vou colocar o cinto de segurança”, ou tentar ressocializar ele até o fim? Então os três, as três funções têm problemas, só que a gente não tenta nenhuma delas de maneira verdadeira, muito menos efetiva.

Cris: Exatamente disso que cê tá falando, que parece que a gente não ataca completamente nenhuma dessas frentes, ou corretamente nenhuma dessas frentes, o Samuel Lourenço fala de uma maneira muito interessante dessa invisibilidade, que ela acaba sendo provocada. Vamos ouvir então um pouquinho novamente o Samuel:

(Bloco 11) 1:41’00” – 1:50’59”

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Samuel: Uma das maiores limitações do sistema prisional também que pode ser observada é o distanciamento do preso com a cidade. Você encarcera o cara, coloca ele pra longe da cidade, em São Paulo isso funciona muito bem, aqui no Rio isso já tá funcionando, né, os complexos penitenciários são fora dos centros urbanos, é fora do ponto de vista social, ou seja: a gente transita na cidade sem saber onde estão os presos, se eles existem. Talvez, por não se dar conta de existirem tantas pessoas presas, que as pessoas fiquem clamando por mais punições aí, entendendo que o Brasil é o país da impunidade, quando na verdade a gente já tá na cifra aí de 700 mil presos. E a sociedade não tem noção das coisas que acontecem na prisão, porque não há nenhum tipo de diálogo da instituição com a sociedade. As pessoas só souberam do que se passa intramuros através de tragédias, de vídeos de chacina. Ou seja, o dia-a-dia da prisão nunca foi de interesse social. Ou as instituições nunca fez [fizeram] questão de mostrar o que acontecia lá dentro. Aí a cidade só toma conhecimento do que acontece dentro da prisão quando tem chacina, quando tem rebelião, quando tem morte. E aí se torna conhecido. Então assim, é um desafio do sistema prisional integrar a sua própria instituição no seio da cidade, entendendo que uma vez que não existe prisão perpétua, [que] o egresso, quando ele se torna egresso do sistema prisional, ele seja admitido naquele seio que ele estava já de adequação constante. Porque daí você isola o cara por cinco, seis, sete anos, como foi o caso recente do goleiro Bruno; Você isola o cara por sete anos, quando ele reaparece com proposta de emprego, é assustador. Ou seja, qualquer egresso depois do cumprimento da pena, quando ele aparece na cidade, ele é uma ameaça. Você vê as saídas temporárias – em todas as saídas temporárias há um alarde midiático: “Saídão temporário libera tantos mil presos”. O que que é isso? A sociedade não está acostumada a viver o egresso penitente vivendo na cidade. E toda vez que ele sai, sai com representação de ameaça e de medo. Tipo assim: “Cuidado, eles estão na rua”. Então, essas pontuações acabam sendo os desafios das limitações do sistema prisional na sua atuação.

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Cris: A partir disso que o Samuel falou, essas pessoas hoje já vivem à margem da sociedade porque a gente não interage mais com elas e essas grandes casas não estão mais nos centro urbanos. Mas seria um problema a gente deixar de conviver, deixar de ver essas pessoas, ou seria isso também parte da pena, né? Do processo pelo qual eles estão passando.

Ariadne: A sociedade tem pouca compreensão à respeito de como funciona a pena e o sistema de progressão de pena, né? Porque a ideia é: bom, existe uma pena colocada e aí, esse é um dos poucos elementos da ideia de socialização, de ressocialização que ainda está lá de fundo, que é você não simplesmente recebe uma pena de, sei lá, de uns vinte anos, você não vai ficar… A maior parte das vezes você não vai cumprir essa pena toda em regime fechado. Existe um processo. Você não vai estar preso num dia e no outro vai estar solto quando a sua pena acabar. Deve existir um processo em que, lentamente, esse preso vai sendo reintegrado à sociedade. Esse tem que ser um processo paulatino, né? Então… Até para que essa reinserção se dê de maneira mais suave possível. Então essas saídas temporárias, o regime semiaberto, tudo isso faz parte do processo de pena porque a ideia é essa de que o preso vá de alguma maneira voltando à sociedade até a liberdade total que é o fim da pena dele. Ele ainda está apenado, ele ainda está cumprindo, e ele pode regredir, né? Se ele fizer alguma coisa, por exemplo, ele ainda pode voltar para o fechado, mas a ideia é essa: é de um processo até que ele retorne à sociedade. Então a ideia de que o preso tem que estar o tempo todo apartado e afastado, invisível e tirar de circulação, a gente já viu que isso não acontece na realidade, porque dentro da prisão ainda há contato com a sociedade, mas é um contato parcial e com relação a certos aspectos. Há necessidade de tornar aquele ser não só invisível mas quase que inexistente. Parece que, da sociedade, parece que é isso que emana. A gente tem pouco conhecimento da ideia de que essas pessoas vão voltar e precisam voltar da melhor forma possível. Eu acho que a gente só vê isso como um problema que a gente precisa invisibilizar e não resolver. E acho que isso também é um pouco resultado de você pensar até em termos de política pública mesmo, porque é que a maior parte dos governos não estão preocupados em sustentar por quatro anos, por oito anos mas não em colocar a mão em alguns vespeiros. Então… Até quem faz a própria legislação também. Então é uma… Existe uma dificuldade de tratar isso de frente, tratar esse problema de frente, e buscar soluções que precisam desconstruir alguns dos sensos comuns, né? Então…

Lucas: Tem uma coisa que ouvi falar na faculdade e eu nunca vi na vida prática e eu queria conhecer alguém que é o seguinte: a Lei de Execução Penal fala: “o preso que vai para o regime semiaberto, ele vai para uma colônia agrícola”. Eu nunca vi uma colônia agrícola. [Risos da Ju] E depois ele fala, que se não me engano, o aberto é a “Casa do Albergado”. São pouquíssimos. Então assim, você tem um previsão expressa para onde esse cara vai, destinada para, de forma gradual, reinserir ele na sociedade. Você não tem nem isso. Eu nunca vi. Você não tem criação… Você não vê projeto de lei para criar colônia agrícola pro semiaberto. E aí você cria essa situação onde ele não vai… Ou ele não vai progredir porque não tem vaga no semiaberto, ou ele vai progredir pro semiaberto de uma maneira que ele é colocado, aí colocam a tornozeleira, não tem tornozeleira, aí você fala: “bom, não tem tornozeleira, esse cara não consegue emprego, ele vai ficar no fechado”. Muitas vezes ele não progride. Vocês tem vários julgados que falam “ele não pode deixar de progredir”. Aí às vezes, era para ele ir pro semiaberto, ele vai direto para o aberto porque não tem vaga, o que também não é o ideal. Não é o que o nosso sistema prevê. E aí de novo a gente bate na questão que é investimento, que é alguém olhar e falar assim: “meu, a gente ressocializar é impedir novos crimes”. Então volta naquilo que falei no começo que é: ninguém está pensando e realmente preparado e intencionado em prevenir esses crimes, seja a delinquência primária, que é a primeira vez, seja que ela se repita após ele uma vez passar por todo esse sistema. Tem números… Esses números, novamente, não são precisos, são do CNJ fala em setenta por cento de reincidência. Tudo bem, o CNJ pode não ter a melhor pesquisa mas eu acho que é um órgão que ele teria vontade de falar menos se ele pudesse. Meu, setenta por cento de reincidência. É ridículo você falar que você não consegue fazer com que setenta por cento volte ao mínimo convívio social. Enquanto como eu falei, na Noruega, você tem oitenta por cento de ressocialização. Qual é a diferença? Porque lá é mais frio que aqui? Não. É porque lá tem um sistema que funciona e aqui você não tem o mínimo para isso. E aí como que se resolve? Claro que você tem medo. Por que é que vem esse medo, essa revolta da população? Porque esse cara quando sai muitas vezes ele não consegue voltar [Ju: Sai pior do que quando ele entrou.]. Se a sociedade olhasse e falasse assim: “meu, esse cara que sai do sistema e está ressocializado, a gente não tem medo.” [Ju: Sim.] É o cachorro vacinado. A gente não tem medo do cachorro que está curado. A gente tem medo, a pessoa tem medo pensando que ele está doente ainda. Claro que não estou falando que quem está preso é doente, obviamente não é isso. Mas assim, a gente sabe por que que a população detesta saída em regime aberto e regime semiaberto? Porque na cabeça dela você fala: “meu, o cara que sai de lá, ele sai criminoso, ele não sai sem ser mais criminoso”. E aí você gera um ciclo vicioso porque a sociedade fala: “Nananananão. Não quero, não quero. Esse cara eu não quero. Esse cara perto de mim eu não quero. Eu não vou contratar para minha empresa um cara que é ex-presidiário”. Por que? Porque tem um risco.

Cris: A gente tem até a desvalorização do lugar onde os presídios são construídos próximos, né? As áreas de valorização. A percepção que eu tenho é que a cadeia é um lugar, ou seja, a privação de pena [de liberdade], as prisões, são uma escola de recuperação. É como se você tomasse bomba da sua vida em sociedade: “Você bombou, você errou aqui, tirou zero na prova, você cometeu um crime, você vai voltar ali, você vai ficar de recuperação”. Então vai pra essa… E aí é interessante que a nossa arquitetura de escola é muito parecida com nossa arquitetura de prisão. [Ju: Instituições totais.] Então é isso, você vai viver em sociedade? Para viver em sociedade tem que viver dentro desse quadradinho aqui, tem algumas normas que você precisa seguir. Tomou bomba? Vai lá pra recuperação. Você vai ficar lá durante um processo que vai te ensinar a entrar no quadradinho, para viver no quadradinho, junto com as outras pessoas que estão no quadradinho. E aí, quando você sai, teoricamente você deveria entender como que é viver nesse quadradinho. E o que a gente vê hoje é que realmente você toma bomba, você bombou, você vai, e o professor lá dentro é o PCC hoje. Então, na melhor das hipóteses…

Ju: [interrompe] Vale a máxima, na melhor das hipóteses, nesse lugar que você vai para… Quando você toma bomba, não vai ter nenhum livro para você estudar, todo mundo vai falar que você é burro e quando você sair, vão falar: “lá vem o burrão”. Entendeu? Qual é a chance de você não bombar de novo? Esse é o ponto, entendeu?

Cris: Exato.

Lucas: Tem uma cena que eu acho maravilhosa, que é [do filme] “Um Sonho de Liberdade”, que é um clássico. Para mim, uma das passagens mais marcantes é daquele senhor que sai do presídio e ele começa a falar: “Olha, está aqui um apartamento para você, a gente vai te dar condição, você vai começar a trabalhar nesse mercadinho”…

Ju: [interrompe] No Brasil não é assim, tá?

[Risos]

Lucas: Não, isso é o filme. “Então toma aqui um apartamento para você, você vai trabalhar nesse mercadinho” e pouco tempo depois esse senhor se mata. Por quê? Porque ele não consegue mais… Ele passou a vida inteira dentro da cadeia. Outro personagem, o Red, que que ele faz? Toda vez que eles vão lá verificar se ele está reabilitado para sair, ele fala: “eu não cometi o crime, eu não deveria estar aqui, eu to pronto para sair”. E o cara fala: “Então não”. A hora que ele fala simplesmente “Eu sou isso mesmo. Não dá mais. Eu vou ficar aqui para sempre”, os caras falam: “É isso aí! Pode ir.” Olha o que é que o sistema quer! Então pode ser que no filme tenha toda essa questão filosófica, mas assim, o sistema não está mais preocupado em colocar você de volta. Quando coloca você de volta, tem uma grande chance de você acabar voltando. Aí você… Talvez seja a finalidade do PCC, ou você saiu com menos oportunidade que você entrou e a sua saída muitas vezes é voltar para a criminalidade e aí a sociedade tem medo. Nem a sociedade quer você de volta. A sociedade fala: “Nananão. Você aqui não”. E esse cara não tem mais oportunidade, não tem mais chance nenhuma. Se ele já tinha pouca chance no começo, agora ele tá com menos dez por cento de chance.

Ju: Não… E tem uma coisa que a gente fala bastante é que a pessoa mais perigosa é aquela que não tem nada para perder, né? [Lucas: Exatamente.] Então, o que é que a gente está fazendo com uma população tão grande de pessoas… Então assim, a sensação que eu tenho é que a gente tá cada vez com mais medo e porque a gente está com mais medo a gente está com mais raiva. E com mais raiva a gente está reagindo com a bile e aí a gente está pressionando cada vez mais. E essemonstro está vindo nos morder e quanto mais ele nos morde com mais raiva a gente fica. Esse ciclo, a gente não consegue sair, entendeu? Então vamos encerrar aqui. Eu acho que a gente conseguiu mostrar bem problemas tanto estruturais quanto problemas pontuais. Vão dormir com essa dor de cabeça. Eu acho que é super legal a gente fazer essa quebra porque vocês vão processar essas informações, pensar sobre isso, pensar sobre o que vocês concordam, sobre o que você não concordam para a gente continuar a conversa semana que vem falando sobre de que forma a gente começa a desenrolar esse novelo e quais são as alternativas, o que é que existe já para tentar modificar isso. Beleza?

Cris: Beleza! Fica então aí gostosa sensação de uma bela teta para vocês degustarem ao longo dessa semana. Polêmica!

[Sobe trilha]

[Desce trilha]