“Os Segredos de Dumbledore” prova que não há mais solução para “Animais Fantásticos”

Faça o certo, não o mais fácil. Esta frase surge em “Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore” como parte das várias maquinações elaboradas pelo bruxo do título (Jude Law) para combater o ex-amante Grindelwald (Mads Mikkelsen) sem enfrentá-lo de forma direta no curso da história, mas revela também um pouco da pobreza de espírito que permeia todos os três filmes da franquia derivada de “Harry Potter” que a Warner Bros. e J.K. Rowling buscam viabilizar desde 2016. Até por ser um conselho de falsa conotação e de um teor manipulativo dos mais bobos: se o mais fácil é errado, isso não necessariamente significa que o mais difícil é o correto.

O que é importante de se notar neste uso é a determinação com a qual se aplica essa frase, porém, como se houvesse uma profunda sabedoria misteriosa cuja importância se revela na reta final da trama. Essa conexão acontece, veja bem, mas há uma recorrência de postura na verbalização dessas frases de efeito que vai além do comportamento habitual dos blockbusters hollywoodianos e diz muito respeito à comunicação encontrada (e refinada) por Rowling em todos esses anos escrevendo a franquia. Pelo menos nas telonas, “Harry Potter” desde sempre se fez como um grande cinema de poses, com os primeiros filmes reforçando continuamente a ligação do perfeccionismo de posições e pronúncias dos feitiços com a “magia” daquele universo; na passagem do tempo, entretanto, esse elemento dissolveu-se de tal forma na produção que deixou de ser fundamental apenas à lógica da mitologia e passou a nortear todas as instâncias criativas da série e de seus produtos. Poses se tornam coreografias e, na exaustiva repetição do maquinário audiovisual americano, uma muleta.

David Yates (à direita) orienta Jude Law (à esquerda) e o elenco no set

Dá pra dizer com alguma tranquilidade a partir daí que “Os Segredos de Dumbledore” é produto deste ciclo vicioso, mas há de se citar os efeitos da má recepção de “Os Crimes de Grindewald” em todos os rumos da continuação. Além da substituição às pressas de Johnny Depp por Mikkelsen para o grande vilão (uma mudança que obviamente passa batida no eixo da história), o terceiro capítulo da cada vez mais diminuta “Animais Fantásticos” (em sentido literal, a ver a redução da tipografia no título) difere dos seus antecessores por ter Steve Kloves, arquiteto maior da franquia principal, para escrever o roteiro ao lado de Rowling. Essa mudança importa não por denotar uma possível “perda” de poder da escritora, mas por reforçar o redirecionamento envolvido na história da franquia. O filme é uma versão polida do anterior e não são poucos os elementos que revelam esse perfil, da obliteração da personagem de Katherine Waterston da trama (reduzida a uma participação pontual) às voltas que se dá para justificar que o Credence do (agora problemático) Ezra Miller não é um irmão secreto de Dumbledore como divulgado, mas fruto de outro relacionamento.

A questão da pose que comentei no início se revela nesses caminhos, até por ser a única âncora possível de “Animais Fantásticos” em meio a tantas reescritas e reorganizações. Das lições aprendidas com “Os Crimes de Grindelwald”, a que parece ter ficado aos realizadores e gerentes do dito “Wizarding World” é de que a zona pode ser a que for nos filmes, desde que tudo seja verbalizado com a determinação dos corretos – um caminho fácil, se é pra ficar no tom de ironia. Enquanto a história arrisca diversas vezes se tornar o mesmo rocambole intragável do segundo capítulo, o diretor David Yates mantém firme a encenação sóbria, ressaltando como possível o viés teatral das atuações de seu vasto elenco em espaços cuja cor de cinza sugere uma conformidade cada vez mais desoladora no visual uniforme e sem graça. 

A zona pode ser o que for, desde que tudo seja verbalizado com a determinação dos corretos

Se há um braço a se torcer nesse polimento, é de que pelo menos aqui se reconhece de vez o quanto a franquia não diz respeito algum ao Newt Scamander de Eddie Redmayne, mas ao confronto inevitável do Dumbledore de Law com o Grindelwald de (pelo menos por enquanto) Mikkelsen. Mais que isso é difícil, porém: como o caso de censura na China deixou bem claro, a reticência da criação em escancarar o viés romântico entre os dois magos maiores desse universo sabota constantemente o filme de se deixar levar pelas idas e vindas amorosas e destrutivas do antigo casal. O máximo de atenção que se dá a essa narrativa são duas linhas de diálogo e a materialização de um feitiço numa corrente que esmaga Dumbledore caso ele pense em fazer mal ao amado; ir além disso parece ser demais à produção, e a partir daí haja queer baiting para se aturar.

É por essas e outras que faz algum sentido que “Os Segredos de Dumbledore” dobre a aposta no teor político de sua trama para ocupar o vácuo deixado, algo engraçado se considerar que no anterior chegou-se a inverter a história do mundo para retratar a ascensão simbólica do nazismo. A inocência do olhar segue intacta, aliás, e somada à eterna gravidade da direção de Yates se converte numa encenação tola cheia de remendos. Dos muitos pontos peculiares da trama, sem dúvida o maior de todos é a explicação de uma eleição definida de repente pelas movimentações de uma rara criatura mágica, um dia da toupeira com ainda menos lógica envolvida. Tudo muito coerente com uma narrativa que enquadra alemães como malvados e brasileiros como boas pessoas, aliás, e nessa hora também é muito adequado que a participação de Maria Fernanda Cândido seja restrita a uma presença muda e figurativa do jogo de poder.

A reticência da criação em escancarar o viés romântico entre os dois magos maiores desse universo sabota constantemente o filme

Já pesa muito ao filme esses fatores, mas o enlaço que comprova a incapacidade total do episódio e da franquia está no desespero final em retomar uma certa noção de deslumbre com todo o mundo mágico em um cenário tão desesperador. Não bastando o posto de coadjuvante, os animais fantásticos do título enfim são encaixotados como meros adereços de um raciocínio torpe voltado ao público restante, que aí sim se vê contemplado nas explicações e acenos que se proliferam na trama com a mesma intensidade de antes. O segredo, de novo, é a firmeza com quem se profere tudo isso, como se tudo já estivesse planejado e não improvisado como claramente foi, um grande simulacro de boas intenções muito malignas. Retorne a magia, diz a publicidade do longa, mas viva em eterna expectativa de um clímax que não chega.

Kowalski é uma parte importante dessa lógica e não à toa “Os Segredos de Dumbledore” se encerra no destaque do personagem de Dan Fogler, o “trouxa” que mais teve contato com o estilo de vida bruxo nos filmes – sua existência não deixa de ser uma representação do fã naquele universo, afinal. Mais fascinante, porém, é que o desfecho faça aí um exercício de contraste ao contrapor tal consagração com a figura eternamente solitária de Dumbledore, pouco depois dele conseguir uma libertação das próprias correntes e ainda confinado aos tais segredos que guarda. Entre fazer o certo e o mais fácil, a produção consegue ambos por vias muito tortas.

“Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore” estreia nos cinemas brasileiros na próxima quinta-feira, 14 de abril.

A pandemia ainda não acabou. Embora a vacinação avance no país, variantes do coronavírus continuam a manter os riscos de contaminação altos no Brasil. Se for ao cinema, siga os protocolos e ouça as autoridades de saúde sobre o melhor curso de ação após completar o esquema vacinal.

nota do crítico

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Publicador por
Pedro Strazza @pedrosazevedo

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