Fábula para adultos, “Christopher Robin” se perde na própria nostalgia

Desde que descobriu o potencial financeiro da nostalgia, lá pelos idos de 2009 e 2010 com filmes como “A Princesa e o Sapo” e “Alice no País das Maravilhas”, a Disney vem aplicando e aperfeiçoando uma política de resgate do passado emocional do público em torno de suas produções, especialmente naquelas que toca sem intermediários. Enquanto sua expansão agressiva no mercado lhe rendeu a possibilidade de ter à mão um leque de estúdios dotados de diversas propriedades criativas que podem ser constantemente reintroduzidas e exploradas – a Pixar com seu ciclo de continuações dos grandes sucessos, a Lucasfilm no retorno bem sucedido de “Star Wars” – esta metodologia de “reciclagem” serviu de pontapé inicial para o estúdio reformar seus alicerces e reencontrar o passo na indústria, voltando a apostar em ícones infantis que formou nos anos 40, 50 e 60 em novas e atrativas embalagens – todas elas à espera de um público que desejasse trilhar este caminho mais uma vez.

Esta aposta não só se provou correta, mas também se tornou a lógica predominante dentro da indústria hollywoodiana nestes anos 2010, com a Disney formando uma base econômica sólida à partir de uma proposta que é no cerne uma exploração de “velhos” mitos. “Velhos” porque no fundo a proposta nostálgica parte de um ato de passagem de legados entre gerações, uma noção que quando percebida pelos realizadores por trás destes projetos foi capaz de impulsionar o valor destas para além da mera repetição convencional do antecessor. Foi o que aconteceu, pelo menos, com os novos “Mogli” e “Meu Amigo, O Dragão”, até o momento os dois ideários artísticos não reconhecidos pelo estúdio por levarem a ferro e fogo a necessidade de reformulação geral da história e o interesse genuíno de fazer uma investigação direta sobre a construção destas fábulas, respectivamente.

É curioso mas (sob certo olhar) previsível, então, que “Christopher Robin – Um Reencontro Inesquecível” trilhe seus caminhos influenciado por estes dois antecessores específicos, ainda mais por conta de sua decisão consciente de avançar no tempo uma história até então atemporal: ao invés de manter os escritos de A.A. Milne intactos e seguir contando novas aventuras do jovem Christopher Robin com seus amigos animais e de pelúcia, o filme do diretor Marc Forster opta por ambientar sua história quando o garoto já deixou há tempos a infância e o Bosque dos Cem Acres para ir de encontro à fase adulta, uma cujas responsabilidades no trabalho se avolumam na mesma medida que põem a integridade de sua família em perigo. Quando tudo parece perdido, eis que reaparece na vida de Christopher (Ewan McGregor) o seu amado Ursinho Pooh (Jim Cummings), atrás de sua ajuda para recuperar os amigos perdidos.

Marc Forster no set

Se esta opção por macular os alicerces do material original a princípio soa precipitada dentro do filme – ainda mais depois de um prólogo extremamente frágil que falha em dosar tantas informações de contexto e entrega tudo meio atrapalhado ao espectador – ela aos poucos começa a encontrar alguma coerência dentro de uma história que Forster sem dúvida não possui total domínio sobre. Ainda que também seja assinado por Tom McCarthy (diretor e roteirista do premiado “Spotlight”) e Allison Schroeder (revelada no mercado com o alardeado “Estrelas Além do Tempo”), o roteiro na verdade tem a identidade do terceiro nome creditado (e o primeiro a ter trabalhado no texto), o diretor Alex Ross Perry que ganhou alguma fama no circuito independente com trabalhos como “Cala a Boca Philip” e “Rainha do Mundo” e cujas narrativas dominadas por neuroses e uma sensação crescente de lamento e arrependimento não assumidos repercutem aqui em um tom mais fabulesco.

Para o filme, a presença destes pontos é imprescindível para legitimar a sua narrativa encardida, traço presente tanto no visual das versões físicas dos personagens animados quanto no arco percorrido pelo protagonista na trama. É da amargura, afinal, que “Christopher Robin” almeja fabricar um conto infantil direcionado a adultos, cuja moral busca anular o desânimo frente os resultados dos próprios caminhos trilhados de forma inconsciente: se Christopher encontra-se em um beco sem saída no início da história, forçado a ter que fazer cortes na fábrica onde trabalha em um final de semana em que tinha prometido à esposa (Hayley Atwell) e filha (Bronte Carmichael) tirar um tempo para a família, é porque isso é resultado da sociedade ao qual integra, cujo sistema em teoria meritocrático se encontra um tanto deturpado por idiossincrasias trabalhistas – algo que a direção de Forster busca ressaltar no retrato do chefe de Robin, vivido de maneira satírica por Mark Gatiss.

É da amargura que “Christopher Robin” almeja fabricar um conto infantil direcionado a adultos

Neste sentido, existem algumas construções promissoras que o filme anuncia sem muito jeito dentro das peripécias da direção, sendo que quase todas elas residem no primeiro ato pelos benefícios do exercício de contextualização da premissa. Dentro do roteiro elaborado por Perry, McCarthy e Schroeder, Forster aproveita melhor a noção implícita de que a vida adulta é formatada à partir do crescente acúmulo de responsabilidades, algo que ele usa para construir junto de McGregor um protagonista perdido em suas próprias preocupações, seja no início na relação distante com a filha – uma caricatura bem resolvida das pressões familiares para criar herdeiros brilhantes – ou um pouco depois nos primeiros contatos do Christopher adulto com Pooh. O ápice deste processo ocorre em meados do segundo ato, quando a aventura usa da figura dos temíveis “efalantes” para materializar de alguma forma os transtornos vividos pelo personagem em todo o seu caminho.

Todo este desenvolvimento inicial é promissor dentro das estruturas do longa, mas conforme os eventos se desenrolam na tela vai se percebendo com maior clareza o grau de instabilidade da produção com o próprio tom a ser assumido perante estas preocupações temáticas. Talvez seja neste momento que se percebe a quantidade de ajustes sofridos pelo projeto ao longo dos anos, pois por mais que “Christopher Robin” parta do pressuposto de se compor como uma fábula de moral voltada a adultos frustrados com a condição atual de vida, sua narrativa aos poucos descamba para caminhos dignos das tramas infantis, apostando na purgação do protagonista dos próprios pesos como meio para acessar as histórias mais lúdicas – e portanto infantis – de Milne. Não à toa, o terceiro ato parece um tanto aleatório dentro da construção da obra, injetando um senso de comédia cartunesco como se estivesse querendo compensar o público jovem pelo excesso de tempo direcionado aos pais.

Conforme os eventos se desenrolam, vai se percebendo com clareza o grau de instabilidade da produção com o próprio tom

Este ruído que se dá entre as partes sem dúvida ajuda a sintetizar o desbalanço geral por trás de “Christopher Robin”, que no mais sofre para conciliar estas duas esferas tonais por trás deste exercício impossível de resgate de um ícone do passado para uma nova geração sem perder o foco no público original. É por conta desta nostalgia forçada, afinal, que toda a aproximação de Forster com a fábula cai por terra, pois cada um dos temas mais adultos propostos pela produção e os quais eventualmente são sustentados no pálido conto infantil tecido se perdem em resoluções que prezam acima de tudo o retorno a um “estado original das coisas” reconfortante. O problema são os desafios da vida adulta? Não se preocupe, parece dizer a obra, reestabeleça da melhor maneira possível o último cenário feliz da sua existência que tudo dará certo.

Se esta vulnerabilidade do projeto perante o gesto nostálgico sugere uma finura palpávels na interpretação de Forster com o texto, ela também abre espaço para uma problematização importante sobre a metodologia por trás destes live-actions produzidos e lançados pela Disney, cuja estratégia talvez precise ser repensada agora que o estúdio se comprometeu de vez com a decisão de ressuscitar todo o passado ao seu alcance. Como os ingleses vem provando em seu cinema, voltar no tempo apenas para promover uma sensação reconfortante pode ser uma atitude bastante limitadora e desgastante não só ao público e os realizadores, mas também aos ícones que se deseja o retorno.

nota do crítico

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Publicador por
Pedro Strazza @pedrosazevedo

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