“O Primeiro Homem” rejeita a mitificação e explora a fragilidade de Neil Armstrong

Na abertura de “O Primeiro Homem”, novo filme de Damien Chazelle, vemos Neil Armstrong (Ryan Gosling) participando de um teste para um programa espacial; Neil está dentro de uma aeronave que tenta chegar à estratosfera. Com uma construção visual claustrofóbica, a obra tem, nessa cena, uma alternância entre planos detalhe e close-ups que colam a lente da câmera no rosto de Neil e nas partes da aeronave. O espectador sente-se sufocado, pressionado, assim como o protagonista. Ao fim da cena, Neil tem alguns diálogos, volta para casa e segue sua rotina familiar, e é aí que Chazelle surpreende o público: o mesmo estilo de filmagem claustrofóbico mantém-se por praticamente toda a narrativa. Notamos logo, portanto, que não se trata simplesmente de um filme sobre um herói destinado à história, mas de um estudo sobre um homem comum, cheio de traumas e angústias.

O recorte da trama é feito dentro de um período de oito anos da vida de Neil, que abrange do falecimento de sua filha de três anos, Karen, ao momento em que Armstrong entra para a história da humanidade como o primeiro homem a pisar na Lua. Chazelle, então, faz um estudo de personagem focado exclusivamente na trajetória de Armstrong na NASA e em como a viagem à Lua foi importante na vida do americano.

Damien Chazelle (à esquerda) e Ryan Gosling no set

Fazer um filme que esculpe o heroísmo de uma figura como Armstrong seria a escolha mais óbvia, já que Hollywood sempre adorou enaltecer as grandes figuras americanas. Na atual década, por exemplo, o mestre Clint Eastwood criou sua própria trilogia sobre heróis estadunidenses com “Sniper Americano”, “Sully – O Herói do Rio Hudson” e “15h17: Trem Para Paris”. Chazelle, portanto, é corajoso em nos apresentar um Neil Armstrong de poucas expressões e sem nenhuma pretensão heróica. Na verdade, o caminho seguido é o contrário: Neil vê sua viagem à Lua como uma jornada particular, um caminho para auto-reflexão.

A escolha de Chazelle mostra-se tão arriscada quanto ousada. Afinal, Neil era um sujeito muito quieto, introspectivo, e isso reflete diretamente na atuação de Ryan Gosling, que compõe um personagem sério, muitas vezes de difícil leitura. Em boa parte dos momentos dramáticos, o Neil de Ryan se expressa não por palavras ou olhares, mas pela gesticulação com as mãos, evidenciando o fato de que o personagem, mesmo que pouco expressivo, muito sente. Em contraponto à silenciosa atuação de Gosling, temos um ótimo trabalho de fotografia de Linus Sandgren, que cria inúmeros espaços dominados pelas sombras e compõe planos que trazem o próprio protagonista cercado pela escuridão. Se os sentimentos de Neil Armstrong não são verbalizados pelo próprio, é essencial que a técnica cinematográfica ocupe essa lacuna dramática.

Não se trata de um filme sobre um herói destinado à história, mas de um estudo sobre um homem comum

Elogiável também é a forma como a câmera do filme é utilizada quando Chazelle nos mostra o muro que separa Neil do mundo. A câmera se aproxima de Amstrong, tenta adentrar sua privacidade, mas acaba sempre se afastando do rosto do personagem, como se houvesse um magnetismo que nos impede de realmente penetrar a psique do protagonista. É interessante perceber, portanto, que essa escolha por manter Armstrong como uma figura impenetrável impede que haja diálogos catárticos.

Esse afastamento, logicamente, não se restringe ao espectador. A dor pela perda da filha mudou a forma de Neil perceber o mundo, o que cria um distanciamento entre o personagem e sua família. É estranho notar, por exemplo, que praticamente não há cenas de Neil com seus filhos – a não ser os curtos momentos que precedem uma ligação ou chamado do trabalho que prontamente o tira do conforto de seu lar. Não é coincidência, portanto, que, em um dos momentos de maior dor do protagonista, ele resolva isolar-se em seu quintal e admirar a Lua. É como se o personagem fantasiasse com sua chegada ao satélite e projetasse nele a chance de um recomeço.

O protagonista fantasia sua chegada à Lua e projeta na missão a chance de um recomeço.

Todo o teor político da corrida espacial é minimizado pelo roteiro de “O Primeiro Homem”. Chazelle e seu roteirista, Josh Singer. A escolha é por manter a trama mais íntima de seu protagonista, abrindo mão de analisar o contexto sociopolítico dos Estados Unidos nos anos 60 – e essa opção é interessante, já que impacta diretamente em tudo que é mostrado ou omitido durante a projeção. Notamos, por exemplo, que o fincar da bandeira americana na superfície lunar é omitido, dando lugar a um momento de realização pessoal da figura de Neil. A passagem se torna um exemplo perfeito para entendermos a relação de escolhas e renúncias resultantes do recorte de “O Primeiro Homem”.

“O Primeiro Homem” é um filme que faz escolhas que não agradarão a todos. Por ser sempre fiel às suas escolhas, a obra acaba por privar o público não só de momentos catárticos, mas também de uma construção visual mais variada – o excesso de planos fechados certamente deixará muitos visualmente cansados –, e também de ver algumas passagens importantes da corrida espacial. Pode-se desgostar, mas é inegável que contar a história de um personagem histórico de forma tão intimista e renegando o apelo fácil é algo corajoso. Chazelle faz de “O Primeiro Homem” não um filme sobre um astronauta que entrou para a história, mas sobre Neil, um indivíduo machucado, que vê em seu encontro com a Lua uma forma de recomeçar e voltar para casa sendo capaz de ter em mente a única coisa que realmente importa: sua família.

nota do crítico

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Publicador por
Matheus Fiore @matheusfiore

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