“The Ballad of Buster Scruggs” se aproveita da inevitabilidade da morte para criar conto amoral

Boa parte dos grandes diretores trabalham um mesmo assunto de diferentes formas ao longo de suas cinematografias. Para Bergman, a melancolia da existência humana, nossa relação com a morte e com o divino e o conflito entre consciente e inconsciente são temas que marcaram presença na maior parte de suas obras. Já Kubrick demonstrou apreço pelo estudo do fracasso da humanidade desde seu primeiro grande trabalho, “O Grande Golpe”,  de 1956, até seu último, “De Olhos Bem Fechados”, que apresenta o fracasso do modelo de sociedade monogâmica. O mesmo acontece, claro, com diretores contemporâneos. James Gray, por exemplo, estuda a gênese de Hollywood bem como traz sempre protagonistas em conflito ou subjugados por algum sistema, seja ele político ou cultural.

Com os irmãos Ethan e Joel Coen, o ceticismo trazido por uma visão de mundo niilista é uma constante em seus projetos – fique tranquilo, este crítico promete não falar de “Rick & Morty” por aqui. Em “The Ballad of Buster Scruggs”, porém, os cineastas fazem algo novo. Pelo fato de ser, em vez de uma só trama, seis curtas-metragem divididos pela metragem de 130 minutos, é como se, aqui, os Coen pudessem dissertar sobre um só tema de seis formas diferentes; como se fossem seis obras isoladas que, observadas como uma só, desenvolvessem uma ideia fixa dos autores.

As seis histórias têm contextualização parecida: o oeste americano do século XVIII – o famoso Velho Oeste. Pistoleiros famosos, ladrões, garimpeiros, jovens em busca de realização amorosa… Todos os personagens de “The Ballad of Buster Scruggs” são, acima de tudo, sonhadores que estão em busca de algo: seja poder, realização amorosa, financeira, etc. Todos têm suas trajetórias interpeladas pela morte. Partindo do período que definiu o mito fundador da América, os Coen fazem um irônico retrato da imprevisibilidade da vida e da inevitabilidade da morte.

O que temos em “The Ballad of Buster Scruggs”, portanto, é uma análise da efemeridade no velho oeste norte-americano. O niilismo está lá, mas, diferente de “O Grande Lebowski”, a ideia não está encrustada nas aspirações dos personagens, e sim na visão que os próprios Coen têm da história. É como se sonhos e planos fossem algo inútil, já que todos aqueles sujeitos estão e sempre estarão à mercê de um acaso implacável.

Os Coen fazem um retrato irônico da imprevisibilidade da vida e da inevitabilidade da morte.

É interessante observar, porém, que quase todos os personagens, em certo momento, chegam a ter essa visão cética do mundo que o narrador tem – alguns até encaram o próprio fim com serenidade. Também é interessante observar como os Coen repetem signos ao longo da narrativa. Observe, por exemplo, como a morte quase sempre chega cavalgando em um distante horizonte, como se fosse uma força da natureza; inexorável, a morte sempre vence seus confrontamentos contra os personagens, e estes sempre a aceitam de bom grado por terem ciência da finitude da própria existência.

Outro aspecto peculiar de se observar é como os personagens seguem estereótipos. O pistoleiro Buster Scruggs, de Tim Blake Nelson, que protagoniza a primeira das seis histórias, é um sujeito absolutamente soberbo e certo de que sempre sairá vitorioso de seus duelos. No caso deste personagem específico, vale notar que, além de ser o personagem mais arrogante da antologia, é também o único que parece moldar toda a narrativa de sua trama. A história do pistoleiro começa com uma música extra-diegética que logo torna-se diegética quando percebemos que o próprio Buster canta e toca a faixa.

Scruggs é também o único personagem que quebra a quarta parede e fala diretamente com o público, como se tivesse ciência de sua natureza fictícia. É a Scruggs também que os Coen cedem o amplo domínio das leis do universo do filme. Apesar de carregarem estereótipos e possuírem suas singularidades, nenhum dos outros cinco capítulos de “The Ballad of Buster Scruggs” tem um protagonista que brinca com a realidade como faz Buster – ao ponto de chutar uma tábua de madeira de forma a fazê-la bater e disparar a arma de um inimigo.

Uma característica impecável de “The Ballad of Buster Scruggs” é a forma como cada universo é unicamente construído por sua direção de arte e fotografia. Desde a escolha de planos aos diferentes usos da luz, cada uma das seis histórias possui sua personalidade, e todas elas ganham muita vida graças a essa variação estética. Na segunda história, “Near Algodones”, James Franco encarna um clássico bandido de filmes faroeste. Há, então, uma construção visual dedicada a recriar o período cinematográfico eternizado por Sergio Leone: desde os planos americanos, cortando a imagem na altura do joelho dos atores, até os planos detalhe que destacam os olhos dos personagens, há um ritmo mais desacelerado e um clima de tensão bem diferente da trama anterior, que só são possíveis graças ao silêncio que permeia boa parte dessa história – algo bem diferente da verborragia presente na trama de Buster Scruggs, por exemplo.

Cada universo é construído unicamente por sua direção de arte e fotografia.

O mesmo vale para todos os episódios. Em “Meal Ticket”, Liam Neeson vive um homem que conduz um espetáculo itinerante protagonizado por um sujeito sem braços e sem pernas. Ambos não possuem uma relação de amizade, apenas se suportam por um depender do outro – Neeson do talento de do artista, e o artista do serviço braçal da figura interpretada por Neeson. Aqui, a fotografia aposta em uma iluminação mais baixa e aproveita os cenários frios e nevosos para pintar de azul a trajetória da dupla.  Já em “All Gold Canyon”, Tom Waits dá vida a um garimpeiro que encontra um vale onde o riacho contém ouro. Ali, os Coen aproveitam a natureza, que é um elemento central da trama, para implementar cores super saturadas no cenário. A direção de arte e a fotografia destacam o verde do ambiente, que gradualmente se torna mais cinzento à medida que o garimpeiro explora as terras – o que nos conta um pouquinho de como os Coen vêem essa relação de exploração entre homem e natureza.

Seria infrutífero discorrer sobre todas as seis histórias e entregar algumas das boas surpresas que a dupla de artistas guarda para o espectador. “The Ballad of Buster Scruggs” é um filme riquíssimo também por sua variação estética, mas principalmente pela capacidade de entrelaçar as histórias com um ingrediente em comum: a inevitabilidade do encontro entre as jornadas dos protagonistas e o destino. Querendo ou não, o pistoleiro, o garimpeiro, o artista, o bandido e todos os outros personagens apresentados, uma hora ou outra, terão que enfrentar seu destino. A morte criada pelos Coen, porém, sempre recebe os personagens de braços abertos. Ela é, afinal, o elemento que dá sentido à vida. Tendo ela como denominador comum, os Coen fazem um filme irônico e bem humorado; uma obra que, ao passo que analisa a gênese da América, passeia também por diferentes fases do cinema faroeste para, no fim das contas, pintar um retrato da condição humana e da melancólica inevitabilidade de uma morte que não joga fazendo distinções de bom e mau, apenas vence.

nota do crítico

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Publicador por
Matheus Fiore @matheusfiore

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