Criar para mudar: o outro lado de Cannes

Trabalho há mais de 10 anos inscrevendo campanhas no Festival de Cannes. Isso significa que, ano após ano, passo meses mergulhada em cases, tendências, discursos, padrões criativos e tudo mais que orbita esse universo. Aprendi a identificar o que costuma funcionar, o que emociona jurado, o que viraliza na indústria. Vi os “cases com propósito” se tornarem quase obrigatórios para quem quer disputar um Leão. Vi marcas plantando árvores, limpando oceanos, defendendo causas. Algumas com real intenção de mudança. Outras, nem tanto.

Numa das palestras mais disputadas do festival, ouvi alguém afirmar que “as marcas têm mais poder de transformar a sociedade do que os governos”. Confesso que arrepiei e não foi de emoção. A frase é forte, a responsabilidade é enorme. Será que estamos prontos? No meio de um mundo em crise climática, política e social, será que a publicidade vai continuar se contentando em ser só inspiradora?

Entre tantas ideias com as quais fui impactada aqui em Cannes nos últimos dias, ao assistir às defesas de shortlist da categoria de Glass, um projeto me atravessou de verdade: “Three Words”, da Publicis Conseil para AXA, uma companhia de seguros francesa.

A ideia era basicamente adicionar três palavras a todos os contratos de seguro residencial da AXA na França: “E violência doméstica”. Com isso, mulheres em situação de risco e vulnerabilidade passaram a ter direito à mesma assistência de realocação imediata já oferecida em casos como incêndios ou enchentes.

Mais de 2,5 milhões de contratos foram atualizados retroativamente. Equipes foram treinadas. Criaram um protocolo de acolhimento com transporte, hospedagem segura, apoio jurídico e psicológico. Só no primeiro mês, mais de 100 pessoas foram atendidas. Aquilo que começou como uma ideia criativa virou política interna de uma empresa privada.

Enquanto grande parte das campanhas em Cannes fala sobre o futuro, “Three Words” nos traz um olhar atento para o agora, para o urgente, para o cotidiano e para o invisível. 

Como publicitária, foi inspirador ver uma marca usar sua estrutura para fazer o que o Estado muitas vezes não consegue. Como mulher, foi impossível não ficar emocionada. E Cannes tem esse poder: o de nos atravessar por dentro, mexendo com o nosso lado profissional e pessoal, tudo junto e misturado. 

Cannes nos lembra, no meio de tantos cases, palcos e métricas, que a criatividade ainda pode ser uma ferramenta real de mudança e de impacto na vida de milhões de pessoas.

Talvez seja essa a virada de chave que a nossa indústria precise encarar: sair do campo das promessas e assumir o terreno da ação concreta. Não basta emocionar jurados, ganhar prêmios ou gerar engajamento. Precisamos, cada vez mais, nos perguntar: essa ideia muda o quê e para quem? 

Porque no fim das contas, mais do que contar boas histórias, a publicidade tem a chance – e talvez o dever – de fazer parte de histórias melhores. Reais. Urgentes. Humanas.



O Festival Internacional de Criatividade Cannes Lions é o maior evento global da indústria criativa de mídia, comunicação e publicidade. A edição 2025 será realizada de 16 a 20 de junho. Acompanhe a cobertura B9, apresentada por Globo, no canal b9.com.br/canneslions e no nosso Instagram.
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Publicador por
Isabela Levy

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