O inferno são os outros

Feriadinho da semana passada, tal, a mulher trabalhando, viagem pra Santos engavetada, fui rolear por Avenida Paulista e entorno. Após descer um filé à parmegiana com nhoque ao molho quatro queijos, tudo banhado em Coca-Cola, fui dar um confere no Espaço Unibanco, na Rua Augusta, ver se rolava alguma película pra descontrair cérebro e sentidos, além de botar o almoço pra repousar. Dali a 20 minutos começava O Dia em que Eu não Nasci. Catei o jornal na mochila e conferi do que se tratava mesmo aquele filme cujo trailer eu já tinha assistido.

(aqui cabe, literalmente, um parênteses: sou fã de trailers, vários deles são mais divertidos, bem resolvidos ou emocionantes que os filmes que se propõe divulgar. vejo, de verdade, dezenas de trailers toda semana. antigos, inclusive)

A sinopse do jornal:

“O Dia em que Eu não Nasci” (Das Lied in mir, Alemanha/Argentina, 2010), dirigido por Florian Micoud Cossen. Durante uma passagem por Buenos Aires, Maria reconhece uma canção de ninar e estranhamente se sente familiarizada com a cidade, ao comentar sobre esse sentimento com seu pai ela fará uma descoberta que mudará sua história. Com Jessica Schwarz, Michael Gwisdek, Rafael Ferro, Beatriz Spelzini.

Minha vez:

Há variações, mas, no geral, a gente nasce numa cidade, cresce nela, cercado pela família, com amigos da rua/bairro/condomínio, conhecendo todas as referências pra transitar ali, a quem podemos dar confiança ou mesmo quem vende comida fresca e boa. Nesse local criamos laços, relacionamentos com pessoas e coisas que podem ou não ser pra vida, mas que são fundamentais pra moldar nossa identidade. Muitas vezes, é ali que você vai viver, salvo durante férias, feriados, viagens de trabalho e afins.

De repente, perto dos 30 anos de idade, você descobre que, de certa forma, nunca devia ter estado ali. E fica sabendo disso em outra cidade, num continente distante. Mais estranho ainda: aquele lugar onde você nunca esteve é onde você nasceu. Mais grave: é onde seus verdadeiros pais nasceram. Daí vem a substância do filme.

E agora? De onde vim? Onde eu devia ter passado a vida? Com quem? Que língua essa gente fala? QUEM SOU EU? Sou quem era antes de saber de tudo isso? POR QUE MENTIRAM PRA MIM? Me rejeitaram? Fui roubado? Será que fugi?

Várias dessas perguntas a gente faz ao longo da vida, mesmo sem passar exatamente pela experiência da protagonista, e isso nos liga a Maria, a angústia da identidade confusa, a busca pela felicidade, minha história é minha mesmo ou existe a partir do que vivi pelas ações e observações de outrem? É quando a máxima de Jean-Paul Sartre faz sentido: o inferno são os outros. Nos olhos dos outros enxergo minha essência. A convivência me dá certeza de que estou fazendo as escolhas que quero mesmo fazer.

Porém, se as pessoas com quem convivi nunca deveriam ter feito parte da minha vida, qual seria minha essência? E aí reside a face mais incômoda do filme. Mas Maria, cercada de pessoas carismáticas, amáveis às suas maneiras e quase reais, alcança uma certa tranquilidade, a paz possível. E dá a sensação que é isso que a gente devia buscar cotidianamente: a felicidade que tem pra hoje.

Abaixo, o trailer, mas acho que você não vai entender nada, já que a rapaziada manda um alemão nervoso nele, embora se passe em minha amada Buenos Aires. Não esmorece pelo festival de spoilers do texto, baixa ou caça O Dia em que Eu não Nasci nos parcos cinemas que o exibem. Não vai ser o filme da sua vida, mas tem lá umas dicas pra dar.