Jornalismo de peito aberto
Esse programa foi transcrito pela Mamilândia, grupo de transcrição do Mamilos
Transcrição Programa 111 – Internações Involuntárias: problema ou solução?
Programa transcrito por: Carla Rossi de Vargas, Leticia Dáquer, Fagner Coelho, Alan Bastos, Fernando, Henrique Tavares e Marcelli.
Revisado por Jaqueline Souza Felix, Tatiana Criscione e João Gentil
(Bloco 1) 0’ – 4’59”
[Vinheta de abertura]
Este podcast é apresentado por B9.com.br
[Sobe trilha]
[Desce trilha]
Cris: Mamileiros e mamiletes, sejam bem-vindos ao seu espaço de encontro semanal para debates, reflexões, choro, riso, dúvidas e questionamentos! Toma aqui o nosso abraço e puxa logo a cadeira, porque eu sou a Cris Bartis e ao meu lado a musa:
Ju: Ju Wallauer.
Cris: Estamos prontas pra mais um mergulho em uma polêmica.
Ju: E o Beijo para Aracaju.
Cris: Fortaleza.
Ju: Rio de Janeiro.
Cris: Joinville.
Ju: E pro Sisnando, que nos mandou presentes lindos pro Benjamin, pra Nina e pra Tatá.
Cris: Amaaamos!
Ju: Roupas super estilosas e empoderadas da marca dele, que delícia receber esse carinho, muito obrigada!
Cris: Quem faz o Mamilos é a nossa equipe cheirosa: na edição, o menino Caio Corraini; nas redes sociais, a Luanda Gurgel, o Guilherme Yano, a Luiza e o Cleiton; no apoio à pauta, Jaqueline Costa e um monte de gente que ajuda; e nas transcrições, a diva Lu Machado e a Mamilândia. E se você ama muito esse programa, cê pode apoiá-la no Patreon: “Patreon Mamilos”.
[Sobe trilha]
[Desce trilha]
Ju: E no Fala que eu Discuto, vamos começar pelo Twitter, se você quer conversar com a gente, a gente pede ajuda pra fazer a pauta, pra trazer convidado, segue a gente lá: @mamilospod. A Catarina Holanda disse: “dia de estudar e finalmente começar a investir incentivada pelo último Mamilos sobre mulheres, dinheiro e independência.”
Cris: O Sérgio Pires, assim como um moooonte de outros meninos, escreveu falando: “esse mamilospod foi um dos melhores que já ouvi. Primeira vez que tenho contato com esse tema de forma tão completa. Parabéns e obrigado!”
Ju: A Cá Oliveira disse: “o Mamilos arrasou! Me decidi em investir e ganhar mais dinheiro, sim! Obrigada, meninas, por exorcizar essa boazinha que morava no meu coração.”
Cris: A Valesca disse: “Levando vários tapas na cara – necessários – com o último mamilospod: mulheres, dinheiro e independência.”
Ju: No Facebook a conversa continua, a gente tem vídeos lá, os vídeos ajudam bastante pra você indicar aquele podcast, seu podcast preferido pro seu amigo, pra sua mamãe, pro seu papai, pra sua titia; vá lá, prestigie o trabalho do pessoal, compartilhe os vídeos. A Luana Índio falou: “mas gente? Vocês ficaram espionando minha vida e fizeram esse episódio? Falaram com a minha psicóloga? Foi um poço de identificação e três tapas na cara.”
Cris: Não, foi muito tapa na cara, né? Eu acho que, assim, #tapanacara. [Ju: Só deu isso!] E muito retorno! No site, você também pode não só ver todos os programas que nós temos disponíveis, mas colocar o seu comentário e conversar com outras pessoas que estão falando sobre o programa. O Emerson disse: “Sensacional. Obrigado! Ótimos exemplos e dicas. Nunca pensaria assim e teria esse ponto de vista. Obrigado e vou repassar.” Vários rapazes escreveram falando: “Eu sou uma mulher e não sabia.” [risos] Foi muito legal!
Ju: Você também pode falar com a gente por e-mail, no [email protected]. A Thalita Monteiro disse: “depois de ouvir esse último programa, senti um tapa na cara por não assumir a responsabilidade na hora de cobrar o valor correto pelo meu serviço. Eu tenho um site e sempre, sempre que alguma empresa entra em contato pra fechar negócio, eu caio fora na hora de dizer o orçamento. Eu sempre me sinto mal na hora de cobrar por algo e sempre quem acaba dando valor e conversando com o cliente é o meu marido e sócio. Agora, eu vejo que tenho muito a ver com a síndrome de boazinha e que eu vou tentar mudar essa postura.”
Cris: A Tatiana Lima disse: “eu fiquei tão louca com esse episódio e, ao mesmo tempo, me senti tão sozinha, que resolvi fazer o seguinte: arregacei as mangas e decidi criar a rede de apoio que precisamos. Marquei um vinho aqui em casa, chamei minhas quatro amigas mais próximas e escutamos juntas o programa. Piraram, claro! Depois conversamos sobre como podemos nos auxiliar. Eu puxei o time, disse quanto ganho, que não sei ao certo quanto gasto, que não tenho nada investido e que eu quero muito mudar isso. Depois, todas foram falando, e agora marcamos de nos encontrar ao menos uma vez por mês pra falar de dinheiro, além de termos todas baixado a planilha de gastos citada no programa. Obrigada, meninas, por incentivarem a sororidade, o conhecimento, e nos empoderar tanto”. Amamos a ideia da Tati: meninas, repliquem! Chamem suas amigas, senta aí, vamos falar de dinheiro e vamos fazer esse jogo virar!
[Sobe trilha]
[Desce trilha]
(Bloco 2) 5’ – 9’59”
Cris: Vamos então pro Giro de Notícias? O número 3: a história sendo reescrita. A edição da Nature que chega nas bancas de Londres nessa terça tem causado caos no mundo científico em uma extensa matéria tornada pública a descoberta que o Homo sapiens tem entre 281 e 349.000 anos, 100.000 [a] mais do que a datação anterior. O grupo mais antigo antes catalogado vinha da Etiópia, sugerindo que evoluímos a ponto de aparecer no mundo num período curto de tempo e numa mesma região. Agora essa teoria caiu por terra. Nesse novo grupo, ele vem de uma região do Marrocos. Pela estrutura do crânio, seria alguém que nós reconheceríamos como igual se cruzássemos com ele na rua. Eles tinham, porém, um cérebro mais alongado e achatado e regiões consideravelmente menores. Essas regiões menores ligadas ao tato, percepção de espaço e precisão de movimentos. A evolução até chegar em quem somos, portanto, foi bem mais longa e bem mais lenta do que pensado, e também ocorrido numa região maior da África.
Ju: Julgamento da chapa Dilma-Temer: terça à noite, o processo teve início com os seguintes ritos: primeiro, o ministro responsável pelo caso, Herman Benjamin, leu por 45 minutos um resumo das 1032 páginas do seu relatório. Depois, falaram os advogados do PSDB, que foi quem entrou com a ação pedindo a cassação da chapa. Por fim, os advogados de defesa de Dilma e de Temer foram ouvidos. Então, entrou o Ministério Público, reiterando o pedido da cassação, além da inelegibilidade da ex-presidente. Deu-se então início à apresentação dos questionamentos preliminares. Ao total, são 5, dos quais 4 já foram aprovados com base em pré-julgamento. O quinto e mais complexo é se as delações da Odebrecht do marqueteiro João Santana e da sua mulher Monica Moura podem ser incluídas no processo. Durante toda a quarta, o clima foi tenso entre Gilmar Mendes, presidente do Tribunal e Herman Benjamin, relator da ação. O professor Idelber Avelar publicou uma análise interessante no seu Facebook: “O que está acontecendo hoje no TSE é surreal e espetacular. A nenhum dos partidos políticos interessa a saída de Temer. Ninguém quer a cassação, com a exceção de um ou outro pequeno partido e o povo, esse detalhe. Mas aí, aparece um Herman Benjamin e começa a detalhar, ponto por ponto, todo o edifício de podridão que sustenta a república e o constrangimento é geral”.
Cris: Número 1: Trump sob investigação? Não é só o nosso presidente que anda com problemas. O Senado americano tornou público o documento encaminhado oficialmente pelo ex-diretor do FBI, James Comey. Ele testemunhará hoje, na quinta, perante os parlamentares, mas adiantou sua declaração de abertura. Comey conta que o presidente Donald Trump cobrou dele um juramento de lealdade, ameaçou-o de demissão e pediu o fim de uma investigação sobre o seu ex-assessor de segurança nacional. Trump ainda pediu que o ex-diretor fizesse um anúncio para desfazer a impressão de que ele estava sendo investigado. O Senado pode vir a abrir uma investigação, se considerar que o presidente tentou obstruir a Justiça, o que inclusive pode levá-lo a um processo de impeachment. Muito pop, né? É impeachment pra todo lado. Quem tá na mesa hoje conosco já é a prata da casa. Fê Duarte, se apresente.
Fê Duarte: O meu nome é Fernando Duarte, eu sou médico psiquiatra, trabalho no Centro de Atenção Psicossocial, que é um modelo de atenção à saúde mental comunitário, substitutivo aos manicômios, e também trabalho no NASF, que é o Núcleo de Apoio à Saúde da Família, e obviamente também trabalho em consultório particular, com atendimento também em terapia de psicodrama.
Cris: Legal! E também tá aqui conosco o Marcelo que, por favor, se apresente.
Marcelo: Eu sou o Marcelo Feijó, eu sou psiquiatra também e sou professor no departamento de psiquiatria e trabalho com consultório também.
Ju: No dia 21 de maio, mais de 900 agentes das polícias civil e militar começaram uma grande operação na região da Cracolândia, no centro de São Paulo. O objetivo da ação foi identificar pontos de vendas de drogas, apreender entorpecentes e localizar e prender traficantes. Segundo a prefeitura e o governo estadual, a intenção é limpar e revitalizar a Cracolândia, inclusive com a instalação de habitações populares. Após o início da operação, a prefeitura entrou com um pedido pra internação compulsória de usuários de crack. Em seu pedido, justifica que o dependente não se encontra em condições de decidir pela própria vida e não pode ser então quem define se precisa de tratamento e como quer se tratar. Na comunidade médica e entre ativistas, a medida gerou polêmica e colocou a questão da internação compulsória no centro do debate. O presidente do conselho regional de medicina de São Paulo, Mauro Aranha, afirmou que o método é um absurdo do ponto de vista ético e clínico. Mas a medida tem o apoio de 77% da população, segundo o Datafolha. O debate acontece também no contexto de outro caldeirão: a luta antimanicomial, uma construção de 30 anos pra segurar os direitos humanos dos portadores de transtornos mentais, mudando o modelo de encarceramento pro de assistência multidisciplinar individualizada, com foco em autonomia. Mas afinal, a internação compulsória involuntária tem efeito terapêutico efetivo? É moral impor tratamento? É razoável esperar que um indivíduo em surto, profundamente comprometido pelo uso de drogas, faça a melhor escolha pra si?
(Bloco 3) 10’ – 14’59”
É justo um sistema que respeita a autonomia dessas pessoas, impedindo que elas sejam internadas quando não desejam, mas que as responsabiliza criminalmente pelos seus atos e abarrota cadeias de usuários de drogas e pacientes psiquiátricos? A violência das cracolândias que se espalham pelas cidades e o desespero das famílias que não encontram suporte para lidar com o problema, tanto de abuso de drogas quanto de pacientes psiquiátricos, nos mostram a necessidade de retirar a discussão do campo polarizado e apresentar um conflito multidimensional, com muitos danos colaterais e diversas camadas para compreensão. Nossa missão é trazer os diferentes olhares envolvidos: quem tá vivendo no olho do furacão, quem tá buscando soluções e apresentar as diferentes vertentes científicas, qualificando o debate e permitindo espaço pra que os ouvintes construam uma opinião com embasamento, argumento e sensibilidade e possam também compreender os fatores que motivam opiniões divergentes.
Cris: Vamos começar ouvindo o áudio do Élcio, que é um policial, e já trabalhou em diversas operações onde foi necessário intervenção sobre pessoas que estavam sob surto psicótico de uso de drogas.
Élcio: Olá, meu nome é Élcio, eu sou policial em uma cidade de médio porte que está entre as tops no índice de violência no Brasil. Eu passei por várias experiências relacionadas com viciados em drogas, principalmente o crack. Tem uma situação que sempre me vem à cabeça, pois me marcou muito. Com a minha guarnição, tivemos que conter um dependente de crack: estava drogado, apenas de cueca, fora de si. Queria matar o padrasto, bater na mãe e tivemos que retirar ele de dentro de sua casa utilizando a força necessária. Esse dependente queria matar o padrasto dele simplesmente porque ele escondeu duas pedras de crack que ele tinha. Ele já tinha fumado outras e queria terminar fumando aquelas últimas duas e o padrasto resolveu esconder porque não aguentava mais. A casa não tinha mais nenhum móvel, tava toda detonada devido à violência e o impulso de venda que o usuário tinha para comprar drogas, era realmente um estado deplorável. Não era uma casa de família pobre desfavorecida, a mãe era servidora pública bem remunerada e o seu cargo tinha acesso a vários órgãos de segurança pública do estado. A família tinha estrutura econômica muito boa pra sociedade. Aí, se você se pergunta: então [o] dependente era rebelde, do tipo que não quis nada com a vida e só queria viver às custas da mãe? Também não. A gente teve oportunidade de conversar com ele e ele, ainda drogado, ele falou que tinha duas graduações e que havia trabalhado em sua área profissional, mas que o crack realmente era o maior prazer da vida dele. Ele já tinha se internado voluntariamente, mas não conseguiu se livrar daquilo. Imobilizado, ele já não conseguia agredir fisicamente ninguém, mas continuava com agressões verbais. A guarnição que eu tava, todo mundo já tem a vida de polícia há um bom tempo, a gente tá acostumado com essa situação e consegue se manter frio. Mas assim, me doía olhar pra mãe dele e ver a expressão de sofrimento, do que ela tava passando, aquela situação, que é uma situação, querendo ou não, vexatória. Ela tinha um cargo importante na sociedade e passando por aquela situação, dava para ver a tristeza no olho dela. Eu não sou pai, não tenho filho nem nada, mas aquilo dá uma noção muito boa de como é ter um parente, um filho dependente de crack. E, para finalizar a ocorrência, esperamos o SAMU chegar, conduzimos a um Hospital Psiquiátrico da minha cidade e lá ele foi sedado. Conversamos com a família sobre as questões de segurança e confortamos na medida que foi possível. Voltamos pro nosso trabalho, não sei quais foram as medidas tomadas posteriormente, pois a pessoalidade que a gente tinha acabou assim que a gente entrou na viatura, que a gente saiu do hospital e que a gente voltou pra nossa área de trabalho. E aí fica todo o questionamento de ‘até quando o Estado está na vida daquelas pessoas?’ Ali, particularmente, eu era o Estado, ajudei e depois me retirei. E depois? O que o Estado realmente deve fazer e até onde deve interferir? Sou completamente a favor da internação compulsória e isso eu digo porque eu já entrei em muitos lares, o suficiente para ver, com o mínimo de empatia que qualquer pessoa tenha, consegue enxergar e sentir a dor de várias e várias famílias. Tem um padrão no sofrimento delas, na tristeza delas. E, se realmente existe alguma família que tá tranquila, tá de boa com essa situação de ter um ente viciado em crack, realmente deve ser um ponto fora da curva porque eu, particularmente, nunca vi e deve ser uma exceção ter um caso desse tipo. Eu sou completamente a favor da internação compulsória, sou a favor partindo por parte da família da pessoa mas, na falta da família, eu entro em conflito comigo mesmo e começo a pensar que o Estado deve intervir de alguma forma, mas cria uma certa desconfiança na capacidade do Estado de tomar essa decisão. Bem, é só uma série de questionamentos que eu apresentei baseado em alguma experiência de vida que eu tenho nesses casos.
Ju: Depois dessa introdução, vamos começar na discussão propriamente dita e, pra entrar nessa polêmica, a gente vai começar pelos aspectos legais e a gente convidou o Diogo Buzzi, que ocupou a Secretaria de Combate às Drogas em Curitiba e gravou o “Salvo Melhor Juízo” sobre política de drogas – que a gente recomenda fortemente – pra explicar os limites legais, o que pode e o que não pode em termos de internação e qual a diferença de internação involuntária e compulsória.
(Bloco 4) 15’ – 19’59’’
Diogo: Olá, é uma grande satisfação participar desse debate tão importante promovido pelo Mamilos, um debate que infelizmente ainda é tratado com falta de informação e com muita superficialidade. Bom, do ponto de vista legal, a questão da internação de um paciente acometido por algum transtorno mental, um usuário problemático de drogas, é tratado por uma lei de 2001. No nosso ordenamento jurídico, essa questão é prevista pela lei 10216/2001 que traz, basicamente e objetivamente, três tipos de internação: a internação psiquiátrica, a internação voluntária, que é aquela solicitada pelo paciente; a internação involuntária, que é pedida, solicitada por terceiros, geralmente a família, alguém próximo da pessoa pra quem está se pedindo uma intervenção; e a compulsória, que é aquela determinada pela justiça. Do ponto de vista legal, no meu entendimento, o ordenamento jurídico brasileiro, o direito brasileiro lida de uma forma adequada. No meu entendimento, não é uma questão legal a questão da internação compulsória. Em primeiro lugar, eu diria que o grande problema é que – eu vejo com muito problema – quando a internação involuntária ou compulsória se torna uma política pública ou nós banalizamos esse procedimento. Existem várias questões que envolvem a discussão da internação compulsória, da internação involuntária. Nós precisamos entender, então o que eu quero dizer é que é uma questão complexa, que envolve várias dimensões e, como eu disse do meu ponto de vista, a dimensão jurídica e legal tá ok, o Brasil regulamenta bem, não é uma questão de direito, não é uma questão legal, eu diria não de direito, de lei, eu quero dizer, então, essa é uma tendência também de uma cultura que acredito dissemine a ideia de que “ah, nós temos um problema (e geralmente problemas tão complexos, né?) vamos produzir uma lei que com isso a gente resolve o problema”. Isso é bastante simplista e tem gerado muitas soluções simplistas para problemas extremamente complexos. O que acontece hoje, por exemplo, em São Paulo na chamada Cracolândia, que é também uma questão a ser discutida, é um termo pejorativo e a gente precisa desestigmatizar essa questão. O que acontece lá hoje é muito triste de ver porque, pra impressão que nós temos, nós que estudamos e pesquisamos há muito tempo, esse fenômeno de áreas de concentração de usuários de drogas e tal, é muito triste porque é mais do mesmo, parece que nós não aprendemos com a história, com as experiências e não ouvimos os especialistas, as pesquisas, a ciência… Então, é triste demais porque veja, a gente já assistiu isso acontecer inúmeras outras vezes e é evidente, que não se resolve um problema tão complexo como esse dessa maneira. A gente já assistiu na televisão, há muito tempo atrás, iniciativas onde passava-se recolhendo todo mundo nas ruas como se fosse uma massa indistinta de pessoas que perdiam a sua individualidade, a sua singularidade como seres humanos, colocava-se ou depositava-se essas pessoas em lugares onde teoricamente ela estariam recebendo tratamento e dali poucos dias depois, tava todo mundo de volta na mesma realidade. Então, se mobilizava uma grande quantidade de recursos – não só financeiros mas humanos – da prefeitura, da administração pública municipal para uma política inócua que só serve para populismo, pra vender, né? [Para] o prefeito poder falar que está se fazendo algo sendo que, na verdade, na verdade, a gente sabe que não está e eu vou dizer porquê: todo ser humano tem um talento, todo ser humano tem uma potencialidade. No meu entendimento, cê quer realmente ajudar esses seres humanos que estão ali agora não são zumbis, é preciso deixar claro. O “zumbi” dá um sentimento nas pessoas de que [eles] são pessoas, seres que podem ser eliminados, que podem ser marginalizados, que podem ser estigmatizados, julgados, que não têm valor e a gente tá falando de seres humanos que têm nome, que têm história, que têm relações, que têm sentimentos. É evidente que estão passando por problemas que talvez, pelo uso problemático de algumas substâncias, estão se desumanizando mas não deixaram de ser humanos por isso. Então, todas essas pessoas que estão lá agora têm sim também têm talentos, potencialidades e eu diria sem constrangimento – pode parecer meio simplista, meio diferente – eu proporia que, antes de qualquer coisa, se olhasse com amor para essas pessoas. E Eu não tenho dúvida que o julgamento moral que incide sobre o usuário problemático, especialmente de crack hoje, é o que há de mais prejudicial a essas pessoas. É o que mais prejudica uma recuperação que já é difícil por si só. Agora, com esse estigma que paira sobre eles e com o julgamento que a sociedade faz, isso, talvez, é o que seja mais pesado e o que dificulta ainda mais a solução dessa questão. A questão para mim não é legal, tá, porque, o ordenamento jurídico brasileiro regulamenta bem a questão, tá, então eu não estou negando o cabimento de uma medida urgente, extrema como uma internação compulsória, não é isso. Eu só estou dizendo que ela é cabível sim mas, como eu disse, em casos extremos pra salvar a vida do próprio usuário problemático de droga. O problema é quando essa medida é banalizada e quando ela passa a ser tratada dum ponto de vista politiqueiro ou eleitoreiro, populista, pra vender soluções simplistas para um problema extremamente complexo como esse.
(Bloco 5) 21’ – 24’59”
Ju: Então, gente, a minha grande questão para ele foi o seguinte: a lei, ela fala que a situação em que você pode ser internado sem a sua vontade é quando você é um paciente psiquiátrico que não é capaz de tomar decisões por si porque você está colocando em risco a sua vida ou a de outras pessoas. E quem vai definir isso é um médico. Apenas precisa de uma pessoa que acha que você está nessa situação e de um médico que concorde e isso já é o suficiente pra você ser internado. Eu pergunto isso porque me pareceu, quando eu li, que a lei é muito permissiva. Por que? Por exemplo, dentro do que está exposto na lei, se eu encontrar uma pessoa no trânsito e a pessoa avançar pra cima de mim com o carro, ficar me perseguindo, ficar me fechando, parar o carro, me ameaçar, eu posso procurar meu amigo psiquiatra, dizer que essa pessoa está usando o carro como uma arma, ela é um risco e, teoricamente, ela poderia ser enquadrada nessa lei, certo?
Fê Duarte: É, em teoria até que sim, tá, porque a verdade é que uma internação involuntária, ela pode ser determinada por um psiquiatra, né? É até bom que você diga que assim, não é você que interna a pessoa, tá? Não é uma outra pessoa que está olhando aquela briga de trânsito na hora que decide internar aquela pessoa. Quem vai internar aquela pessoa – ou não – é o psiquiatra que for avaliar ela, né, e o psiquiatra não vai simplesmente ouvir o que você tinha a dizer ou o que outra pessoa tinha a dizer. Ele vai ouvir a pessoa, tá? E, se ele achar que a pessoa estava fora de si, estava, enfim, num quadro completamente distante da realidade, ele pode sim determinar essa internação. O que não quer dizer exatamente, como se dizia antigamente, quando se internava uma pessoa e ela passava o resto da vida internada, tá? Se hoje em dia um psiquiatra fizer isso porque ele é seu amigo, que você pediu para o psiquiatra, ou seja, em um esquema bastante antiético, corrupto, na pior das hipóteses, a pessoa vai ficar internada até o final do plantão desse psiquiatra porque vai chegar um outro psiquiatra que vai avaliar a pessoa. Se ele não tiver nenhuma necessidade de ficar internado, ele recebe alta na hora.
Ju: O que eu acho que é importante colocar é quais são os critérios que se usa pra determinar se uma pessoa chegou no ponto em que a única intervenção que poderia ajudá-la e protegê-la é a internação porque tem duas limitações na lei. A lei, ela é permissiva porque ela coloca duas limitações. A primeira limitação é em relação a ‘o que você pode fazer com a pessoa a partir do momento em que ela foi internada contra a vontade’. Então tem limitações em relação ao respeito que ela precisa ter, que ela tem que ter dignidade, que ela tem que ter direito à integridade física dela, tem direito ao sigilo, que ela tem direito a livre acesso à comunicação… tem uma série de pontos que garantem o direito dessa pessoa e, além disso, tem a premissa da autonomia do paciente. Então, a lei permite que você interne um paciente contra a vontade só pelo tempo suficiente pra que seja feito um tratamento e pra que esse tratamento tenha um objetivo de autonomia, pra que ele possa sair. Esse é o objetivo da lei, né?
[Concordância do Fê Duarte]
Marcelo: Sim.
(Bloco 6) 24’09’’ – 29’59”
Ju: Eu acho que isso é um ponto que é importante a gente falar.
Marcelo: Sim, eu acho que isso que você falou são as questões principais. Primeiro, a pessoa perder autonomia. Então, o que que isso quer dizer? Que a pessoa perde a capacidade de fazer as escolhas da vida dela em função de algum quadro mental. Então, ela não é que ela está fazendo isso ou aquilo porque ele quer, ele elaborou, e tudo isso. É porque ele não consegue fazer de outra forma. A doença faz com que ele perca essa capacidade de discernir e de escolher. E, quando essas perdas e escolhas e as atitudes que ele tem são potencialmente danosas à ele mesmo ou às outras pessoas – e não existe nenhum outro recurso que você possa ter em mãos pra poder evitar que ele faça esse dano – surge a única opção [que] é a internação. Então, a internação acaba sendo o último recurso que você tem pra esses casos, até que ele tenha condições de vir, voltar para a sociedade e retomar o tratamento que dele à vida a dele. Então essa avaliação é avaliação subjetiva né, de um médico que vai avaliar essa pessoa O que é dito e como ele se encontra pra poder fazer essa avaliação e essa determinação.
Cris: Não seria mais seguro se fosse criado uma junta ou um conselho onde mais de um tipo de profissional ajudasse nessa análise até compartilhar é muito grande né mandar a internação de alguém?
Fê Duarte: Hoje em dia legalmente não é necessário isso. Hoje em dia um psiquiatra apenas avaliando o paciente já é necessário para sentir que a internação involuntária e o paciente fica internado. Sim, como você mesma falou seria melhor se fosse feito uma junta que tivesse mais do que uma pessoa só avaliando né.
Ju: É importante a gente colocar isso aqui porque o outro modelo que a gente tem que te priva da liberdade é o sistema penitenciário e ele tem todo o sistema legal. Para apoiar esse então, você tem uma série de processos, então você não depende de uma pessoa definir se você vai ser encarcerado ou não. Esse dispositivo legal que fala da internação compulsória ou involuntária ele deixa os indivíduos numa posição muito mais frágeis porque eles dependem [apenas] da avaliação de um médico.
Marcelo: – Isso é verdade. A internação involuntária, ela é um dos poucos recursos no mundo uma das poucas maneiras talvez a única não sei, de cerceamento de liberdade de uma pessoa que não passa por um processo jurídico né, basta uma avaliação médica e isso acontece e a pessoa tem a sua liberdade de ser cerceada.
Fê Duarte: – O que é muito complicado porque mesmo termos de Justiça com todos os processos a gente ver prisões que são arbitrárias né, dependentes de várias questões como a nível sócio-econômico etc né. Se as cadeias são muito mais frequentado pelas pessoas de classes médias mais econômicas, mais baixas, com escolaridade menor, mais negros. Então existem pessoas que acabam sendo presas então, apesar de todo esse sistema no caso de internação involuntária, né, é uma questão também que dentro da prática na realidade, né, quantos psiquiatras existem no Brasil? 5 mil para uma população de 205 milhões de habitantes né, é um número bem pequeno. Então na verdade quem acaba vendo a grande parte dessas pessoas são pessoas médicos que não tem uma formação, então também a capacidade de julgamento é menor porque ele não tenho especialização para isso então na prática …
Ju: – Na prática não precisa nem ser um psiquiatra.
Fê Duarte: – Não, médico…
Marcelo: – Por que a questão… essa questão da internação involuntária, ela não é só para psiquiatria, só para saúde mental. Se a gente pegar uma situação teórica tá, onde uma pessoa tomou um tiro no peito e está sangrando está correndo risco de morrer em poucos momentos se essa pessoa decidi que não quer ficar no hospital, e fala “eu tô de boa eu quero ir para casa agora para não perder a novela de hoje” o médico que vê essa situação ele pode determinar a internação involuntária dessa pessoa porque ela está correndo risco de vida e pode internar ela contra a vontade dela, é involuntária mesmo, é assim. Só que isso na clínica na cirurgia ou em quase todas as outras especialidades isso é muito mais raro isso acontece muito menos tá, na psiquiatria a internação involuntária acontece muito mais porque é mais comum na psiquiatria a gente vê situações onde a pessoa não é capaz de avaliar o próprio estado.
Ju: Uma outra dúvida que eu tenho, assim como a única coisa que define, o único critério que define a internação involuntária ou seja o teu cerceamento do seu direito de escolher por você mesmo, é você ser avaliado como incapaz de tomar decisões? Eu não entendo muito bem o processo do compulsório porque me parece que esse acesso ele tem que ser pessoal, mas como é que eu vou saber? Eu não posso ser julgado no lote. Olha, lote de pessoas eu não consigo compreender porque essa é involuntária. “Olha a Juliana não está com o seu normal ela está correndo risco por conta dessas e destas atitudes. Ela fez isso isso e isso”, você vai fazer uma avaliação minha e aí a partir dessa avaliação consciente e criteriosa você vai ter um laudo e você vai me internar. Como é que faz a compulsória que é um lote de pessoas?
Marcelo: Teoricamente né, a internação compulsória é determinada por um juiz mas o juiz não só trata de por exemplo de problemas de saúde mental. Como o juiz vai tratar de problemas de corrupção, criminais então, o juízo, ele não é um especialista em cada um dos campos. Quando ele vai fazer uma internação involuntária de um paciente supostamente psiquiátrico ele vai precisar de peritos psiquiatras, que ele vai nomear para fazer isso porque ele não entende. Ele não sabe fazer isso então teoricamente ele precisaria de alguma avaliação psiquiátrica para dizer se essa pessoa precisa ou não, porque o juiz não tem essa capacidade.
Cris: Nesse caso então, ele está entrando na ausência da família, quando um grupo ou uma pessoa sequer não existe ninguém que responda por ela, que possa pedir uma internação voluntária ao estado entra com a compulsória, então ele fala: “Ó, tá determinado aqui que você pode recolher as pessoas para avaliação”. E aí essas pessoas são avaliadas, aí sim só por psiquiatras, não por outro tipo de médico.
(Bloco 7) 30’00” – 34’59”
Marcelo: Qualquer médico, né. A especialidade em medicina, você tem a especialidade, mas qualquer médico é apto a fazer qualquer tipo de ato médico [Fê Duarte Diagnóstico.]. Diagnóstico.
Cris: Tá.
Marcelo: Então teoricamente eu posso abrir a cabeça de uma pessoa e fazer uma neurocirurgia. Eu não vou fazer isso porque eu reconheço que eu não tenho nenhuma habilidade pra isso.
Fê Duarte: Mas é… não, o que eu ia falar, Ju, você tinha citado antes sobre uma avaliação em lote, né. E daí a gente tá confundindo duas coisas. Uma coisa é a internação compulsória, que é aquele que é determinada por um juiz.
Ju: Ela é individual? Ela é caso a caso?
Fê Duarte: Sim, como o bom senso manda, tá, ele vai pensar caso a caso, vai pensar “Bom, aquele caso necessita de uma internação, e eu estou determinando que aquela pessoa seja internada”.
Ju: Com base em laudo, que é o doutor Marcelo tá falando…
Fê Duarte: [interrompe] Na verdade ele costuma…
Ju: [interrompe] Eu não sei, então como posso definir que essa pessoa precisa de internação? [Fê Duarte Tá.] Eu não sei, então chamo um psiquiatra: “dá uma olhada aqui”, “é, realmente precisa”, e aí na ausência da família pra fazer involuntária, eu juiz coloco a compulsória.
Fê Duarte: O juiz, ele tem o poder de decidir isso a partir do bom senso dele. Ele costuma se embasar em coisas especificamente de peritos de áreas que eles não sabem. Então ele costuma se embasar em laudos técnicos, como você disse. Ele não necessita disso pra determinar uma internação compulsória, tá? Quando a gente fala dessa coisa de lote, a gente já tá pensando na internação compulsória como política de saúde pública, e isso é outra questão, entendeu? Uma coisa é internação compulsória, como ela está prevista em lei, e alguns casos eles talvez não consigam passar por esse crivo que a gente falou, do paciente ser avaliado por um médico psiquiatra e o paciente ser internado por esse médico psiquiatra num hospital, por exemplo. Tem alguns casos de pacientes que recusam pra sempre passar em consulta psiquiátrica, que nunca passou em avaliação, e a família, por mais que tente fazer isso, de levar ao hospital, não consegue nunca, por qualquer motivo que seja. E esse caso pode ser determinado por um juiz – mesmo sem uma avaliação direta do médico porque não existe – que o paciente seja internado compulsoriamente, e daí uma vez internado compulsoriamente, é aí que vai ser gerado uma avaliação psiquiátrica posterior, tá. Então, isso é uma coisa que, enfim, existe na lei, pode acontecer. Quando a gente fala de lote, isso não, não existe mesmo.
Ju: Fê, eu quero saber, assim, internação compulsória. Então o juiz vai lá, fala: “Você não conseguiu levar o seu familiar pra uma avaliação, pelo que você tá me falando eu tô entendendo que ele é um risco sim à vocês e a ele mesmo, então dou aqui uma liminar pra compulsoriamente vocês fazerem internação”. Fazem internação, o psiquiatra pode avaliar no dia seguinte, mandar ele embora, falar: “Não, não tem nada disso, tá ótimo!”?
Fê Duarte: Na verdade ele tem que falar que tá ótimo pro juiz, tá? Porque o juiz ele pode determinar a compulsória realmente, e pode determinar quanto tempo ele vai ficar internado, simplesmente porque ele acha isso. Isso em termos de lei, tá?
Ju: [interrompe] Em termos de lei o juiz pode falar “Não, o que você tá me falando é muito grave, ele tem que ficar dois meses”, aí [Fê Duarte Ele pode.] o paciente chega, você avalia, fala que não tem isso de dois meses…
Fê Duarte: Mas como o juiz mandou, ele vai ficar dois meses. Isso, em teoria, [Marcelo Uhum.] tá. Na prática é muito difícil que o juiz falte com o bom senso nesse tanto, e ele costuma pedir que o paciente fique internado pelo tempo que for necessário do ponto de vista médico.
Ju: Ah, ok, então o juiz não estabelece porque isso está fora da alçada dele, [Fê Duarte Claro.] ele entende que isso extrapola, né? [Fê Duarte Sim.] Mas, a lei dá essa prerrogativa pro juiz.
Fê Duarte: Sim, [Marcelo Sim.] dá.
Ju: Muito poder pra médico, muito poder pra juiz.
Fê Duarte: [Risos]
Ju: Continuando, vamos lá. Eu acho, assim, só importante então, vou colocar rapidamente quais são as limitações que a lei coloca. Então, direitos da pessoa portadora de transtorno mental, ser tratada com humanidade, respeito, e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade – então assim, se alguém tentar internar involuntariamente uma pessoa por motivos outros que não sejam interesse da própria pessoa, da sua saúde, de se recuperar, isso é um abuso da lei -, ser protegida contra qualquer forma de abuso, exploração, ter garantia de sigilo nas informações prestadas, ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis, ser tratado em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis. A internação das qualquer das modalidades só vai ser indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Então, é isso que vocês falaram, o bom senso e a ética médica tem que prevalecer aí pra que se tentem todas as outras medidas que essa seja realmente a última medida, isso tá previsto em lei. Isso não é teoria, isso não é política, isso não é opinião. Isso é lei. E também tá na lei que o tratamento visará como finalidade permanente a reinserção social do paciente em seu meio, então qualquer pessoa que for internada, o objetivo dela é voltar pra sociedade. Isso não é opinião, isso não é discurso. Isso é lei.
(Bloco 8) 35’00” – 39’59”
Ju: Vamos tratar então do recorte então de tratamento a paciente psiquiátrico, porque assim, o que deu origem a essa discussão, nesse momento, foi a questão de droga, foi a questão do crack. Mas como a gente acabou de ler na lei, a lei ela foi pensada pra casos de pacientes psiquiátricos, e aí quando a gente vai falar disso, a gente tem um recorte que é o da luta antimanicomial. Fê, explica um pouco pra gente o que que é isso, e qual foi o cenário, porque isso começou a existir?
Fê Duarte: Bom, se a gente pensar na história lá, dos… enfim, da antiguidade, sempre existiram os loucos, né, as pessoas que não se encaixavam no sistema, as pessoas que tinham algum problema mental que não se adaptavam, né? E, historicamente falando, a maneira como se lidava com essas pessoas que não se enquadravam, era excluí-las da sociedade, né. Afastá-las, né, porque elas não estariam aptas para o convívio com os demais. Com o tempo surgiram os chamados manicômios, os hospícios, que seriam os hospitais para o tratamento de loucos, e nesses hospícios basicamente o que se fazia era afastá-las da sociedade, era mais ou menos o equivalente ao que uma prisão faz hoje: afastar simplesmente aquela pessoa da sociedade, independente do tratamento que se dava pra elas. Até porque não se sabia de muitos outros tratamentos possíveis, né. Os tratamentos começaram a surgir, tratamentos talvez mais eficazes, ao longo do século XX, né. Então os primeiros antipsicóticos começaram a surgir por volta de 1950, e já nessa época, como uma grande proliferação de pessoas e com muitas pessoas sendo encaminhadas pra esses hospícios (ou manicômios ou hospitais, enfim) de loucos, praticamente no mundo todo aconteceram fenômenos dos hospitais, dos manicômios ficarem superlotados e de começarem a ter problemas de direitos humanos em todos eles, né? De pessoas serem maltratadas, ou mal-cuidadas e às vezes sem inclusive uma avaliação adequada, né? No Brasil a gente tem umas histórias bem tristes falando disso, né.
Ju: É, eu e a Cris, a gente leu “Holocausto Brasileiro”, que faz justamente um resgate histórico de qual é a nossa história, de como é que a gente tratava as pessoas, que teoricamente tinham algum distúrbio, mas muitas vezes nem isso, porque essa decisão, ela era muito mais… permissiva antes dessa lei, né.
Fê Duarte: Exato.
Cris: [interrompe] E assim, Minas Gerais ficou manchado com isso, né, porque o Hospital de Barbacenas ficou, inclusive mundialmente conhecido, pelo nível de maus-tratos que as pessoas sofriam lá. Inclusive a gente sabe muito bem que não eram somente pessoas que tinham transtornos mentais que eram internadas. Mulheres que ficavam grávidas sem casar, homens que queriam se divorciar, colocavam às vezes as esposas lá. Acho que é até mais recente, “Bicho de Sete Cabeças”, que é o filme com o Rodrigo Santoro, onde o pai dele pega ele com um baseado e ele é um rapaz e ele é colocado, né? É uma história real, o cara passou 7 anos internado por causa de um baseado. Então eu acho que a gente vem de uma história longa de usar os hospitais psiquiátricos quase como um depósito pra colocar pessoas lá, pra se livrar de algum tipo de problema.
Fê Duarte: E isso aconteceu, tá. Não aconteceu só no Brasil, aconteceu em muitos lugares. É fato, isso aconteceu mesmo. E foi daí, a partir dessas denúncias de maus tratos que surgiu o movimento da luta antimanicomial, tá. Em primeiro lugar, era uma luta por direitos humanos, tá, das pessoas que tavam lá, e…
Ju: [interrompe] É importante colocar: por que uma luta de direitos humanos. Porque essa lei me parece, quando eu li, essa lei, eu lembrei muito do livro porque ela me parece muito o reflexo já desses questionamentos, porque ela parte de pressupostos que não estavam colocados antes da lei, que é: a pessoa não abre mão da dignidade, da vida e da condição humana dela, a partir do momento em que ela é diagnosticada como paciente psiquiátrico. Então assim, eu acho interessante que se coloque, que não é que os lugares eram ruins, não é que os profissionais eram ruins, é que é um modelo que absolutamente corrompe, porque não tem como: se te entregam a chave de um lugar onde você tem um poder absoluto e aquelas pessoas perdem a humanidade a partir do momento que elas põe o pé ali, que você não presta conta pra ninguém, que elas são esquecidas pela sociedade, que elas não tem direito algum, não tem fiscalização nenhuma [Fê Duarte Sim…], você pode fazer o que você quiser com aquelas pessoas…
Fê Duarte: Esse modelo tende a dar errado, e de fato, assim, os hospitais todos começaram a receber muito mais gente do que eles eram capazes de receber, sabe. Você pega o hospital que fica aqui em São Paulo, que é o do Juquery, ele chegou a ter, sei lá, acho que por volta dos anos 50, ele tinha, digamos, mil, mil e poucas pessoas, por volta dos anos 70, 80, ele tinha 14 mil. É um número assombroso. E óbvio que não foi aumentado na mesma proporção os recursos pra isso, não tinha mais profissionais pra avaliar isso, tava fadado a dar errado mesmo, né.
Ju: É, então, o que a gente vê assim, abusos, violências, eram tratamentos experimentais. Assim, se você tira a humanidade da pessoa, por que você pediria consentimento? Pra quê que você vai pedir consentimento se ela deixou de ser uma pessoa? Então assim, toda sorte de violências, ela é justificada a partir do momento que elas não são mais pessoas, né, elas… a partir do momento que elas entraram ali, eles abriram mão de qualquer direito.
(Bloco 9) 40’00” – 44’59”
Marcelo: Eu acho que essas questões tem a ver com os direitos humanos, que são recentes, né. Então, do fim da década de 40, que surge a declaração dos direitos humanos… Nunca houve declaração, ou consentimento pra internação, nem no hospital – hoje é impossível você internar qualquer pessoa, em qualquer pessoa, sem o consentimento dela (exceto nas formas onde ela não está consciente, um paciente em coma, por exemplo, né, alguém vai ser responsável por ele). Então os manicômios, né, vieram, né, de uma hipertrofia, de uma segregação, né, e que começou a ser usado também pra segregar pessoas além daquelas que eram doentes e não se propunha a um tratamento dessas pessoas. Eu acho que é mais ou menos o que hoje as prisões aqui no Brasil significam.
Fê Duarte: Todo esse movimento da luta antimanicomial, ele teve início por volta lá dos anos 80, talvez até… antes já tinha muitas denúncias de maus tratos, de quebras de direitos humanos, mas por volta dos anos 80 começou um movimento na Itália, né, por um médico chamado Franco Basaglia, e que ele começou a lutar por isso, pela extinção dos manicômios, que fossem fechados os hospitais psiquiátricos, e que esses leitos de manicômios fossem substituídos por formas de tratamento de saúde mental que fossem comunitários, sem internação, né. Então isso acabou motivando na própria Itália, depois em vários países do mundo, o movimento dessa luta antimanicomial, que era o de fechamento de hospitais, fechamento de leitos, né, para que as pessoas não fossem mais internadas e fossem tratadas em outros ambientes.
Ju: Mas explica um pouco qual que é a proposta e que que a gente avançou a partir do momento que entra essa lei, a partir do momento que a gente começa a fechar leitos de hospitais psiquiátricos, a fechar manicômio, a fechar o manicômio de Barbacena, por exemplo. Pra onde vão esses pacientes, qual é a proposta? Como é que se trataria então?
Fê Duarte: Eu acho que a principal proposta… assim, antigamente os hospitais psiquiátricos eles tinham essa função de tratar os loucos, de certa forma, de afastar os loucos, e eles também tinham uma função que eu chamaria de uma função de asilo, que é de abrigar esses loucos e tal. Então o principal avanço dessa lei foi de apontar, denunciar os locais onde não acontecia nada disso, onde eles não eram cuidados, eles não eram tratados, eles eram apenas afastados da sociedade. E tinha muito lugar disso. Tinha muito mesmo. E nesse ponto foi ok, tá, então um dos lugares onde as pessoas eram excluídas e eram abandonadas e eram inclusive maltratadas…
Cris: [interrompe] Era um depósito, né.
Fê Duarte: …esses lugares foram sendo fechados, as pessoas foram devolvendo pras próprias famílias… sendo devolvidas para as próprias famílias, né, então tem até alguns movimentos que ficaram famosos até na Inglaterra, de manifestações das pessoas com cartazes dizendo: “Nós não queremos eles de volta!”, né. E de fato as pessoas não estavam acostumadas com isso, com receber uma pessoa doente mental de volta pra casa. Isso não acontecia… [Ju: Que não sabiam como tratar, né.] É, “vou fazer o que com ele em casa agora?”, tá. Então o cuidado passou a ser devolvido pras famílias, tá. O que pra mim também é uma coisa boa, também foi uma coisa bacana. O maior perigo dessa história toda foi você tirar dos hospitais e tirar inclusive a possibilidade de internar gente que de verdade precisava, né.
Cris: Eu acho que é aquela questão, não tá dando certo, extingue. Mas na verdade, a gente teria que reformar [Fê Duarte É…], a gente tem que fazer dar certo.
Ju: Mas Fê, fala do CAPS, porque [Fê Duarte Ah, falo.] não é que extinguiu [Fê Duarte Não, na verdade não…] substituiu pelo CAPS, [Cris CAPS nessa nova Constituição.] né?
Fê Duarte: A ideia… a ideia seria substituir o tratamento que existiam nos manicômios, que na verdade nem era tanto tratamento assim na época, né, por formas de tratamento comunitário, que seriam hoje o que a gente tem no Brasil, são os CAPS, que é o Centros de Atenção Psicossocial. Então é um aparelho parecido com um posto de saúde, com uma Unidade Básica de Saúde, onde existem profissionais de saúde mental, sejam psiquiatras, sejam terapeutas ocupacionais, sejam psicólogos, assistentes sociais, eventualmente até educadores físicos, sempre com a função de tratar os doentes mentais, ali, né, de forma próxima às comunidades, às residências deles. Sempre também em contato com a família. Alguns dos CAPS que são chamados CAPS III, eles tem leitos para acolhida noturna, tá, então é onde os pacientes podem passar uma noite ali, ou algumas noites, no mais próximo possível do que seria uma internação hospitalar só que não é um ambiente hospitalar, é mais parecido com uma casa aquilo, né.
Marcelo: Agora, dentro dessa… da lei, né, que é uma lei, é um avanço a lei, né, da reforma e a lei da internação são avanços, né. Acabaram os manicômios, ou, acho que sim, né, mas diminuíram consideravelmente aquelas pessoas que continuam a fazer esse tipo de atitude tem que… acabam sofrendo punições. Porém, se você pensar, né, em doenças mentais graves, que é uma parte pequena da psiquiatria, mas que são aqueles muito graves, corresponde, em média, uns 3 a 5% da população. Numa população de 200 milhões, você faz uma conta, né, de qual número de pacientes que existe no Brasil. No Brasil inteiro existem 2500 CAPS, no Brasil inteiro, que atende no máximo, um CAPS que atende bastante, vai atender 5, 7 mil pacientes… 5 mil pacientes, né.
(Bloco 10) 45’00” – 49’59”
Fê Duarte: É, esse número é bem grande mesmo.
Marcelo: Né, então assim, extrapolando.
Fê Duarte: [interrompe] O CAPS onde trabalho hoje tem um pouco menos de 400 pacientes.
Marcelo: Então você imagina que a grande parte desses pacientes graves não tem CAPS suficientes pra atender, pra serem atendidos. Então você, a gente… a lei manda: “Vamos dar o que existe de melhor, pra que essa pessoa não seja internada, tal, tal, tal, na comunidade”. É totalmente insuficiente, né. E a grande maioria dos pacientes psiquiátricos, ou seja, 70% deles são pessoas que tem ansiedade, insônia, depressão, que teoricamente, porque como extinguiram os ambulatórios psiquiátricos e os hospitais psiquiátricos, deveriam ser atendidos nas UBSs e nos programas de saúde da família por médicos generalistas, que tem, na média, formação de psiquiatria nos 6 anos, 3 a 6 meses de psiquiatria, né, que tem uma formação insuficiente pra isso. Então. a grande parte das pessoas que tem problemas mentais não está assistido na saúde pública.
Fê Duarte: Na verdade assim, como o Marcelo tinha dito antes, os manicômios terminaram, mas existe uma questão que seria talvez até uma questão semântica: há quem diga que os manicômios não terminaram, tá? Há quem defina manicômio como hospital onde tenham doentes mentais, tá? Há quem defina manicômio como hospital de doidos, aquele lugar mais asilar, onde as pessoas só ficavam reclusas.
Ju: Onde não tinham tratamento.
Fê Duarte: Isso. E pra essas pessoas ok, acabaram os manicômios e agora o que existem é algumas instituições de saúde mental onde, ok, podem ter problemas, podem não ser as ideais, mas a gente tem mais recursos pra melhorar elas, tá? Há quem diga que não, que existem ainda manicômios, que são esses hospitais que ainda existem como o de tratamento psiquiátrico ou mesmo quando a gente fala de clínicas de recuperação de dependentes químicos, que isso seriam, entre aspas, “mini-manicômios”, e que, de acordo com a luta antimanicomial eles também tem que ser extintos.
Ju: Uma coisa que preciso entender do que o Marcelo tava explicando é assim: você fala que os CAPS eles não tem capacidade de asilar o paciente, né, no máximo por 2, 3 dias e tal, e mesmo assim os CAPS não atendem nem toda a comunidade de que tem doença mental grave. A minha questão é: algumas doenças mentais teriam necessidade de internação? A pessoa tem capacidade de tá com a família, de tá em comunidade quando ela está em surto?
Marcelo: Na grande maioria dos casos, né, tem condições. Acho que a internação é pra uma fração pequena de famílias que fossem bem suportivas, estruturadas, com condições econômicas, né, que não é a realidade brasileira, de a pessoa ter que ficar acompanhando sempre, com alguém junto, né? A pessoa tem que trabalhar, tem filho, né. Então assim, essa proporção de pessoas que não tenham a família que tá em surto e pode sair na rua e se perder ou se machucar ou se matar, não resta outro recurso. Mas é uma parcela pequena.
Ju: [interrompe] Mas que que a gente faz se a gente… assim, se a gente não tem essa estrutura… porque o que me preocupa é isso, vocês tão falando assim: “Ah, a gente eliminou os leitos psiquiátricos pra privilegiar essa atenção comunitária, que é o CAPS, ele funciona muito bem pra 90% dos casos que são tratamentos ambulatoriais”. Ok, nos casos que não são, como você tava falando, nos casos de surto que você precisa que a pessoa fique assistida, você precisa [Fê Duarte Sim.] dar um atendimento 24 horas pra pessoa…
Fê Duarte: Nesses casos…
Ju: [interrompe] E aí?
Fê Duarte: Falta recurso [Marcelo Falta recurso.], falta. E…
Marcelo: [interrompe] É só você ir no pronto-socorro.
Fê Duarte: Isso. Se você pegar qualquer pronto-socorro hoje, que tenha pronto-socorro psiquiátrico, em geral você encontra diversos pacientes aguardando nos corredores uma possível internação que acaba não saindo quase nunca. Então os hospitais acabam ficando inflacionados… especificamente os pronto-socorros onde tenha algum psiquiatra. Eles vão sendo inflacionados de pacientes porque não tem onde internar essas pessoas. Ao longo dos anos, aqui no Brasil, a quantidade de leitos psiquiátricos disponíveis foi caindo gradativamente, sem a mesma substituição por outras formas de leitos, nem mesmo leitos em CAPS. Hoje não tem tanto leito em CAPS quando tinha antigamente. Então a proporção ainda é muito pequena. Tem muito pouco recurso pra gente internar um paciente na hora que precisa. E isso acaba, sei lá, sendo quase como uma desassistência, né.
(Bloco 11) 50’00” – 54’59”
Ju: É, eu acho que só… a gente acabou fazendo já o contraponto, né, de qual é o risco, né, de quando você extingue os leitos psiquiátricos e tal, eu queria só que o Fê falasse, cê já falou em outro programa, mas a gente escutou, acho que o Invisibilia, né, um Invisibilia sensacional, que justamente questiona essa necessidade de internação, a necessidade do estigma do paciente psiquiátrico, que é de uma cidade onde as pessoas recebem pacientes psiquiátricos nas suas casas, é, uma tradição da cidade, você receber como se fosse um membro da sua família, e cuidar dessa pessoa pela vida inteira, pelo tempo que ela quiser, e a pessoa tem toda a liberdade, ela é tratada como um ser humano, com toda a autonomia. E a cidade, de alguma maneira, e acho que é isso que você tava falando “poxa, de repente quando veio essa resolução de fechar um manicômio e de voltar os pacientes pra família”, voltaram pra famílias que não tinham qualquer preparo pra receber esses pacientes. Nessa cidade, por uma questão cultural, já existia uma compreensão de como lidar com paciente mental, já existia uma cultura de acolhimento, já existia todo um contexto que ajudava as pessoas, mas [Cris Queria só…] mesmo assim o resultado é impressionante.
Cris: Eu queria corroborar, eu comentei com você logo que cheguei de viagem, que eu fiquei muito surpresa. Eu tava em Toronto, estudando, e na cidade tem muitas pessoas doentes mentais na rua, o tempo todo. Pessoas que você olha pra elas e a forma como elas se portam, o olhar, os sons que ela emite, te mostra que ela não é uma pessoa dentro da caixa social, igual todo mundo costuma ficar. E eles pegam ônibus, eles vão em show, eles vão em restaurante, eles vão em cinema, você convive com essas pessoas o tempo todo. Você tá sentado no ônibus e uma pessoa que tá babando, de verdade, literalmente, senta do seu lado e ninguém olha, ninguém fala nada. Eles convivem com isso o tempo todo. A cidade passa questões, não é uma convivência 100% pacífica o tempo todo, eles tem situações de às vezes pessoas entrarem em surto e empurrarem pessoas na linha do trem, e nem por isso eles recolhem todas essas pessoas, ou mesmo as famílias deixam essas pessoas só dentro de casa, sabe. Na maioria das vezes, eu vejo pessoas acompanhadas, mas eu vi muita gente sozinha também. E eu cheguei e eu falei: “Juliana, como assim?”
Marcelo: Mas lá tem hospitais psiquiátricos [Cris: Tem.] [Fê Duarte Tem.], tem pessoas internadas. Esses pacientes, são pacientes que são pacientes crônicos, então eles sempre vão ter esses quadros. Então na maior parte do tempo eles são totalmente… você convive, né. Eu convivo com paciente psiquiátrico faz 30 e poucos anos, né. É muito tranquilo, né, conviver com paciente psiquiátrico. Mas na hora que tá em surto e, no caso o surto de agressividade, não dá pra levar pra sua casa.
Fê Duarte: É, talvez nem naquela cidade lá do Invisibilia. Uma coisa que achei bacana do Invisibilia, é que ele cita uma cidade na Europa, aonde… enfim, tem um número altíssimo, né, uma prevalência altíssima de pessoas com transtornos mentais que vêm de outras cidades do mundo todo para conviver lá com aquelas pessoas. E essas pessoas já tem uma postura de nem querer mudar, de simplesmente aceitação pra elas. Isso achei muito bonito, né. E me lembrou também de duas histórias pessoais minhas. Uma eu, enquanto psiquiatra, enquanto quase todos os psiquiatras, eu tive formação dentro de um hospital psiquiátrico, então a gente acaba aprendendo a psiquiatria num contexto, que seria mais esse contexto de pacientes internados e tal. Depois que eu saí da minha formação e que eu passei a trabalhar em CAPS, eu comecei a ver situações que antes eu teria internado, e que agora eu não interno mais, tá, pela minha prática mesmo, sabe. Porque eu vejo que daria pra evitar uma internação, e isso eu acho legal, eu acho que não era tudo que a gente via lá que precisava colocar pra dentro. Algumas coisas dá pra segurar em casa. E também tive uma outra história pessoal de conhecer um paciente, provavelmente um esquizofrênico crônico grave, que morava numa vila no norte da Bahia, que chamava Cordeiros, e nessa vila morava, sei lá, mais ou menos umas 15 famílias, e lá tinha um paciente que era o… conhecido como “Louco” da cidade, já tinha acho que uns 40 anos, e ele tinha tido surto muito pequeno, e a fam… e a vila toda convivia com ele, dava comida, tudo. Cuidava dele. O que era uma coisa bonita, sabe, de inserção social. A gente não consegue ver exatamente esse tipo de coisa em outras cidades grandes, e por mais que eu achava bonito esse acolhimento, eu também ficava com um pouco de pena, da desassistência, porque esse cara nunca tomou um remédio na vida, e poderia ter tomado remédio, poderia ter tipo ficado melhor e mais funcional, mais autônomo na vida. Talvez cuidado melhor de si mesmo.
Ju: Queria que vocês me explicassem um pouco porque que que a tendência hoje, ou a luta, é pra que não se interne, pra que se tente outras coisas, outras formas antes da internação.
Fê Duarte: Eu acredito que é porque a internação já foi utilizada anteriormente de forma muito negativa, e a gente tem muito medo do passado, a gente tem muito medo de Barbacena, ou desses outros grandes manicômios onde foram cometidas muitas atrocidades. A gente não quer mais que essa história aconteça, a gente não quer que aconteçam mais abusos, e é por isso que se evita ao máximo a internação. A gente também não quer… antigamente quando os manicômios eram instituições asilares, o que aconteciam era que as famílias, elas se isentavam da responsabilidade de cuidar, então elas depositavam a pessoa ali, que morava lá o resto da vida. E a gente não quer mais isentar as famílias dessa responsabilidade, sabe.
(Bloco 12) 55’00” – 59’59”
Ju: É, até porque o vínculo afetivo é um…
Fê Duarte: É terapêutico.
Ju: É parte da reconstrução, né.
Fê Duarte: Então a gente quer que as pessoas fiquem em casa, nas suas casas, sendo cuidadas pelos seus familiares, e sendo tratadas, sempre que possível, sem essa internação. Sem falar que uma internação psiquiátrica também costuma ser uma coisa bastante cara, né, bastante dispendiosa.
Cris: Eu queria citar nesse caso, porque é muito conhecido, eu morava perto, morei minha infância inteira perto do hospital espírita André Luiz, que é um hospital em Belo Horizonte, que recebe doentes mentais pra internação e pra consulta. Não só pacientes psiquiátricos como também abuso de substância, e inclusive já tive parente que ficou internado lá. É, a gente teve um caso super sério na família da minha mãe e tudo mais, e minha tia ficou internada, foi super difícil na época pra todo mundo, e ela passou ali 30 dias recebendo assistência, medicamento, palestra num leito limpo, num quarto digno, e 30 dias depois um médico entendeu que ela tinha condição de voltar pra família. Foi um momento que ela ficou internada por que ela oferecia risco pra ela mesma e pra outras pessoas, eles conseguiram de uma maneira medicamentosa e terapêutica fazer com que os níveis químicos do corpo dela, e ela conseguisse voltar a responder por si. Foi um período muito difícil pra família, porque tem um estigma muito forte, né, “ah, tá num hospital de doido”, porque quando era criança o hospital André Luiz era isso, hospital de doido. E ainda era um hospital espírita de doido macumbeiro, porque mineiro, né? Cê já viu. E de repente ela saiu de lá infinitamente melhor do que ela entrou. Não ficou feliz de ter sido internada mesmo, mas ela saiu de lá melhor, ela continuou o tratamento, ela teve uma série de outros problemas, mas foi isso que aconteceu numa experiência de um hospital que eu conheci assim, por dentro, sabe? Eu queria aproveitar pra questionar, porque a gente tá falando aqui de pessoas que estão, os ditos “viciados”, né, ou adictos, que estão em situação de abuso de substância ilícita, ao mesmo que a gente tá falando de paciente psiquiátrico. E eu fico me questionando, que uma pessoa que se envolve numa doença psiquiátrica, ela não tem gerência sobre isso, e talvez a pessoa que desenvolva esse vício, ela está inflingindo um problema a ela mesma. É correto a gente misturar essas duas questões? Porque a gente vê que todos os tratamentos, clínicas e tudo mais, sempre fala sobre os dois, “atendemos os dois”. Uma pessoa que tá numa situação de vício, convivendo com uma pessoa com uma situação psiquiátrica, como que isso funciona?
Fê Duarte: Eu acho que essa questão da autonomia da escolha, de uma pessoa que é o usuário de drogas, eu acho que essa é uma dessas questões mais difíceis que tem pra responder, tá. Porque me parece bastante normal que uma pessoa sã, ou uma pessoa que trabalha, uma pessoa que estuda, que tem uma vida social bastante… e que ela decide usar uma droga ou outra, ela tem plena autonomia sobre isso, enquanto que uma pessoa que está há vários dias sem comer ou sem dormir, morando na cracolândia, usando uma pedra atrás da outra, se prostituindo pra isso e já vendeu tudo que tinha e o que não tinha pra poder continuar mantendo o vício, e essa pessoa tenta roubar o relógio do policial que tá entrando na cracolândia pra tentar vender depois… essa pessoa não está mais com a autonomia preservada a ponto de decidir o que que é melhor pra ela na vida.
Cris: Então a gente pode falar que ela se tornou um paciente psiquiátrico?
Marcelo: Sim.
Fê Duarte: Sim, pode.
Marcelo: Acho que essa é a diferença, né, acho que a grande maioria dos usuários de substância, né, psicoativas, então álcool, cigarro, maconha, não estão doentes, né, estão usando, né… só que existem drogas mais potentes, né, na capacidade de fazer com que a pessoa fique fora de si, e que comece a perder essa capacidade de discernir, de optar. Então a partir de algum momento, dependendo de cada um, da quantidade, da resiliência, ele vai entrar num quadro psiquiátrico que é de uma dependência à drogas, né. Então ele passa a ser dependente, ele não consegue mais controlar quando ele usa e quando ele não usa, e aí ele passa a ser um paciente psiquiátrico.
Fê Duarte Sim, se ele não pode mais escolher, se ele não consegue mais escolher, se ele parece que está fadado a sempre ficar mantendo o mesmo comportamento, provavelmente ele é um paciente psiquiátrico que necessita de uma ajuda externa, né.
Ju: Pra esclarecer um pouco isso, a gente vai chamar o Altay, que tem um currículo extenso, mas eu vou apresentar ele pelo seu título honorífico mais importante: ele é podcaster da família B9 no Naruhodo [risos da Cris]. Eu pedi pra ele nos explicar como as drogas atuam no cérebro, justamente pra gente entender se elas mexem na autonomia.
(Bloco 13) 1:00’00” – 1:04’59”
Altay: Antes de mais nada eu queria agradecer a Ju mais uma vez pelo convite de participar aqui do Mamilos, é sempre um prazer e uma honra ajudá-los, no que for possível aqui para a discussão. Então, meu papel aqui nesse quinhão é falar um pouco sobre a neurofisiologia das drogas de abuso, tá? Eu vou, para ser um pouco mais sucinto, eu vou comentar um pouco sobre as drogas mais discutidas nesse cast né, que são crack por exemplo, a cocaína, a heroína, metanfetamina, porque essas drogas elas fazem parte de um mesmo grupo. Todas essas drogas, estão: crack, cocaína, heroína, e anfetamina, elas afetam certas vias cerebrais e principalmente um certo neurotransmissor chamado dopamina. A dopamina ela tem um papel muito importante em várias vias sobretudo para controle motor, e também no processo decisório, e também na reação emocional a estímulos. No entanto cada uma dessas drogas: então a cocaína e o crack fica no grupo, a metanfetamina em outro e a heroína em outro. Essas drogas apesar delas serem responsáveis, afetarem na verdade, a regulação da dopamina, elas afetam de formas diferentes, tá? Eu vou excluir aqui da discussão as drogas alucinógenas por exemplo e as drogas sintéticas porque elas atuam em outras vias né, com outros neurotransmissores um pouco diferentes e por conta disso talvez não seja tão pertinente aqui. Essas drogas, então heroína, crack, cocaína e metanfetamina, como que elas afetam, desregulam a quantidade de dopamina no seu cérebro? Ou elas atuam nos receptores de dopamina então a dopamina é liberada por um neurônio no local chamado fenda sináptica e essa dopamina é coletada pela próxima célula neural que vai iniciar a passagem de informação de um neurônio para o outro, então a dopamina liberada nessa área chamada fenda sináptica, o papel por exemplo da cocaína é ocupar o receptor da dopamina, então ela não deixa a dopamina voltar para o neurônio anterior então um neurônio A libera dopamina, essa dopamina chega no neurônio B e depois retorna para o neurônio A. A cocaína e o crack por exemplo elas ocupam o receptor no neurônio A então a dopamina é liberada a cocaína e crack ocupa o receptor e não deixe uma a dopamina ser reabsorvida logo ela fica constantemente excitando a célula seguinte então o sinal neural que você recebe é super estimulado. a metanfetamina tem um papel muito parecido só que ela não ocupa o receptor, na verdade ela ocupa dentro do neurônio o local da dopamina e a heroína tem um papel um pouquinho diferente porque a heroína é uma droga depressora, então ela é mais como um calmante uma droga que reduz sua atividade o crack e a cocaína é a metanfetamina são drogas estimulantes elas estimulam a sua atividade comportamental e neural e o caso da heroína nosso corpo tem uma capacidade normal de produzir opióides o que são substâncias que vão reduzir a sua atividade e sobretudo reduzir a sua sensibilidade à dor então, por exemplo, se você imaginar uma situação em que você está fugindo de um cachorro ou fugindo de alguém e você tem que pular um muro e você torce o tornozelo ás vezes você tá com, sob um stress situacional ambiental tão grande que você nem sente a dor de ter torcido o tornozelo, você continua correndo. Essa possibilidade que você tem de reagir comportamentalmente a dor é feita por opioides que o seu próprio cérebro gera, né, produz. A heroína ela atua como se fosse um desses opióides, então ela ocupa o receptor de opióides no seu cérebro também afeta a regulação de dopamina, ela impede a saída de dopamina em algumas vias e isso faz com que você seja menos reativo dor e que você tenha uma menor é reatividade a emoções a estímulos emocionais, você fica mais emocionalmente embotado, então se você quiser imaginar comportamentalmente a pessoa que usa cocaína ou crack ela fica super estimulada ela tem por exemplo, reflexos motores, ela não consegue controlar o corpo muito bem, então ela treme e balança, coisas do tipo e as pessoas que usam heroína elas ficam mais prostradas, né, fica mais largada, se sentem mais relaxadas e tal. A metanfetamina tem também tem um efeito estimulante parecido ao da cocaína e do crack. O efeito comportamental da cocaína e do crack é um pouquinho diferente porque a maneira de absorção da droga é diferente, então em geral a cocaína é cheirada ou injetada e o crack é fumado, isso também afeta um pouco a absorção da droga e consequentemente o efeito e a duração do efeito, então no caso do crack um barato de crack dura coisa de 5 a 15 minutos, o barato de cocaína um pouco mais, né, e o de metanfetamina também dura um pouco mais ainda do que a cocaína. E por que essas drogas crack, cocaína, heroína e tal, são considerados drogas pesadas? Isso acontece por duas razões: a primeira razão é que essas drogas, cocaína, crack e tal, existe uma certa questão cultural sobre essas drogas, então se você conhece alguma pessoa que é usuária de crack, cocaína, metanfetamina, heroína, em geral parece, pelas representações sociais que as pessoas criam dessas pessoas, parece que elas são mais mal vistas, estão numa condição mais desfavorecida e tudo mais. Mas, isso é por fruto de representações sociais que são criadas. Mas também elas podem ser caracterizados como drogas mais pesadas porque o efeito dela no cérebro e a capacidade de adicção (viciamento) frente essas drogas é mais rápida, tá? Então com poucas vezes que você utiliza crack por exemplo, você pode viciar, né, muito rapidamente, sobretudo com a associação entre o uso da droga e o contexto. Então, se você já está numa situação desfavorecida, com pouco suporte social, poucas pessoas para te ajudar ou você se sente muito sozinho, ou de fato é uma questão já de uma condição psíquica alterada, o uso da droga o efeito dela pode ser muito mais viciante do que outras drogas ditas não pesadas como o álcool e a maconha, por exemplo. No entanto, o álcool e a maconha eles também exercem efeito e neurotransmissores podem inicialmente exercer, principalmente no caso do álcool, efeitos muito graves no corpo, né, em relação ao vício efeito do álcool por exemplo em outros órgãos o efeito crônico do álcool e já conhecido como uma consequência grave um efeito grave, mas crack e cocaína por exemplo, eles são vistos como drogas mais pesadas porque eles exercem um efeito neural e uma degeneração neural muito mais rápida, né, a curto e médio prazo as consequências que você tem dessas drogas por comportamento são muito mais pronunciadas e muito mais graves, então as pessoas que usam, fazem uso crônico de cocaína de crack se expõe mais a risco tem um comportamento mais impulsivo, né, pelo próprio caráter estimulante da droga e tomam decisões com muito mais impulsividade. Então, a probabilidade dessas pessoas executarem comportamentos de risco para elas mesmas e para os outros é um pouco maior. No caso já da heroína como ela tem um efeito depressor as pessoas ficam mais prostradas, né, então o efeito comportamental é de redução da emotividade, pessoas ficam menos emotivas e menos reativas ao comportamento e as ações dos outros, isso também é um resultado deletério do uso de heroína. Então, só para fechar nesse ponto: as drogas como cocaína e crack, elas de fato são mais pesados do ponto de vista de efeito a curto e médio prazo, na saúde e na tomada de decisão comportamental das pessoas, né, os usuários. Porém, também o álcool, que é uma droga legal também tem um certo peso, né, no processo decisório e também na saúde dos indivíduos que usam, tomam álcool com frequência por muito tempo. Então, a grande mensagem aqui é que políticas públicas de atuação seja para reduzir o consumo, né, do ponto de vista de redução de danos, ou seja para realmente acabar com o consumo de drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas, as políticas públicas tem que ser adequadas ao tipo de população e também ao tipo de droga utilizada dado que o efeito dessas drogas no comportamento observado é diferente.
(Bloco 14) 1:05’00” – 1:09’59”
Ju: Depois dessa explicação que a gente consegue entender qual é a diferença, porque que tem essa casta de droga que a gente fala de “drogas mais pesadas” né?! Então, porque que a gente realmente trata de maneira diferente diferentes tipos de drogas, a gente vai começar a desconstruir alguns dos preconceitos que a gente tem com a doutora Maria Carolina.
Maria Carolina: Olá, gostaria de agradecer pelo convite. Meu nome Maria Carolina Pedalinho Pinheiro eu sou médica, sou psiquiatra especialista em Dependência Química pela Unifesp, sou mestre em Ciências da Saúde pela Santa Casa, onde atualmente sou professora e médica primeira assistente. Queria compartilhar um pouquinho com vocês algumas histórias que eu vivi com pacientes dependentes químicos e de repente trazer uma parte dessa discussão tão importante que a parte humana que tá por traz ai, de cada uma dessas pessoas. Então, vou começar a história pela Letícia. Letícia era uma menina na época de 8 anos de idade. A Letícia já havia sido prostituída. Ela já havia sido usado em tráfico como aviãozinho e ela era dependente de crack foi internada compulsoriamente um período, e ela estava internada numa enfermaria e de crianças adolescentes dependentes químicos e já deveria fazer pelo menos umas duas semanas. Nós estávamos num domingo, eu dava plantão de domingo lá, e lembro que foi um domingo muito agradável. Foi um domingo onde a gente teve sessão de cinema com pipoca e jogamos bola, enfim, várias atividades, uma equipe muito boa que cuidava da enfermaria, tinha sido muito agradável. Por volta de umas 7 horas, eu lembro de estar no conforto médico e recebi uma ligação pedindo para eu ir rapidamente lá pra enfermaria porque a Letícia tinha quebrado os computadores, tinha agredido as outras meninas e tava no quadro de intensa agitação. Eu fui me direcionando para lá, enquanto tava indo lá em direção, pensando: “O que tinha acontecido com ela?” Eu tinha ficado bem próximo dela ao longo do dia ela tava feliz contente, a gente conversou bastante, tava com planos, assistimos o filme discutirmos o filme, todos os adolescentes juntos e fiquei pensando: “Que mal agradecida! Porque que ela fez isso? Por que ela quebrou os computadores?”.
(Bloco 14) 1:05’00” – 1:09’59”
Maria Carolina: Eu vi os computadores todos destruídos e pensei: “É tão difícil a gente conseguir esses computadores, o que está acontecendo?”. Confesso que nessa hora eu cheguei a sentir raiva, pensar: “por que ela fez isso?”. Eu lembro que estava chegando no quarto e me dei conta que eu precisava naquele momento ter o que a gente chama de “capacidade negativa”, que de uma maneira simples dizendo, é a gente deixar de fora daquele encontro o que são as nossas emoções, crenças, dogmas,preconceitos, enfim, que não tenha a ver diretamente com aquela pessoa, então, meu raciocínio de que, “nossa, ela estava com fissura de crack”, “o que ela fez foi fissura de crack”, eu deixei um pouquinho de lado pra entender um pouco o que realmente tava acontecendo. Eu entrei no quarto, lembro que tinham alguns enfermeiros segurando ela, ela ainda estava um pouco agitada, mas ela me viu, me reconheceu, eu sentei na cama em frente a dela e perguntei: “Poxa, e aí letícia, o que ta acontecendo com você?”. Pra minha surpresa e pra surpresa de todo mundo que tava ali na sala, ela parou, começou a chorar e falou: “Puxa, eu só queria uma família, será que eu não poderia ter uma família?”. Todos ali ficamos muito emocionados e nos demos conta que a falta era muito maior que a falta que parecia ali que era uma falta de crack, na verdade, ela tava muito mais em contato com uma falta muito mais estrutural. A segunda história, já foi em outro hospital, foi a história do Matheus. O Mateus, ele era dependente de cocaína, dependente de maconha e quando ele tinha, na época, acredito que uns 20 anos, ele teve um surto psicótico muito grave e ficou internado na nossa enfermaria e depois ele passou a fazer o tratamento com a gente. Nessa época dessa conversa que eu vou relatar, ele já deveria ter uns 22 anos, estava abstinente, das substâncias, estava trabalhando, tava tentando ressocializar, reintegrar à sociedade, e a gente estava conversando e ele me falou: “Sabe, carol, muito mais difícil pra mim do que ficar abstinente da droga, é ficar abstinente do crime”. E eu na minha inocência, enfim, ignorância, fiquei chocada, falei: “Como assim, Matheus? Como pode ser mais difícil ficar abstinente da droga que do crime?”. Ele falou: “Pô, Carol, eu trabalho 10 horas por dia, faço hora extra, tô trabalhando num fast food, e ninguém me respeita, as pessoas não olham nem pra minha cara, quando eu tava no tráfico eu era o bonzão, eu tinha a mulher que eu queria, eu conseguia as coisas, todo mundo me respeitava, me chamava pelo nome, agora ninguém se importa comigo”. E essa foi também uma das vezes que me mexeu muito e me fez ter uma compreensão maior da psiquiatria e da dependência química. Você se dá conta de que as coisas são muito maiores do que a gente pensa. E, por fim, gostaria de trazer o meu mestrado que foi com mulheres usuárias de crack do sistema penitenciário. Essas mulheres são em sua maioria jovens, negras, mães, mulheres privadas de relações sociais, afetivas, pouca escolaridade e que tem uma história que quando a gente olha pra história da vida delas, a gente vê que o crack surge depois de um conjunto de outras questões estruturais. Então, essas mulheres têm nas sua história abuso sexual, a maioria foi vítima de violência física, muitas presenciaram violências com alguém da família, foram vítimas de preconceito, de racismo, de machismo, enfim, isso tudo ainda reforçando que foi na infância, na adolescência. O crack surge depois e depois do crack o crime. Então, que a gente está falando é de mulheres que tem uma rede de vulnerabilidade e que essa rede é reforçada ao longo da vida e não desfeita. Enfim, por que eu queria trazer é a visão de que essa questão da cracolândia, questão do crack, é um problema muito maior do que achar que se resolve em um dia. Não dá pra gente achar que o problema da Letícia é o crack, que o tráfico é o problema do matheus ou que é uma falta de caráter que essas pessoas tem e achar que lugar de gente assim é na cadeia, né? As coisas são muito mais complexas, e o problema não é deles. Talvez no dia que possamos ter uma compreensão maior disso e uma mobilização real e estrutural da sociedade, talvez a gente possa pensar ai no que realmente dá pra ser feito pra esses indivíduos e quais são as medidas de fato efetivas.
(Bloco 15) 1:10’00” – 1:14’59”
Ju: Então, o depoimento da Drª. Maria Carolina já desmistifica um pouco do que a gente tem que eu acho que assim, a noção, o senso comum é de que a partir do momento que a pessoa usa alguma substância como o crack, por exemplo, que é tão devastadora, pelo que o Altay já explicou, ele automaticamente desliga quem ele é, ele vira um zumbi e ele passa a ser outra pessoa. Uma pessoa que é violenta, uma pessoa que é descontrolada, uma pessoa que todas as ações que ela fizer se justificam, se explicam e se motivam pela droga. E eu acho que é importante a gente começar falando sobre um médico, um pesquisador, que questiona toda essa construção, que questiona boa parte da base científica sobre droga que é o doutor Heart, a gente já falou sobre ele no programa sobre drogas, que é quem dá o embasamento para a maior parte das políticas de redução de danos no mundo inteiro, né? Fê, eu queria que você falasse um pouco sobre ele, qual foi o experimento que Doutor Heart fez que chegou numa conclusão tão diferente do que a gente vê nos outros estudos?
Fê Duarte: Na verdade o que ele reparou é que assim, a maior parte dos estudos anteriores que eram feitos sobre dependência, especificamente aqueles estudos feitos com ratinhos, colocavam os ratinhos na gaiola e davam as duas opções de beber a água natural e de beber água com cocaína. E eles perceberam que os ratinhos sempre bebiam a água com cocaína e em algumas situações eles preferiam acionar o dispositivo que ia dar para ele a cocaína mesmo que isso prejudicasse filhote dele. Gente que ele gostava né, o ratinho. E esses estudos antigos de certa forma embasavam a teoria de que um dependente de crack ou de cocaína de qualquer, ou de qualquer outra droga pesada assim, ele vai fazer de tudo para obter a droga, não importa quem ele prejudica, né? O que é esse Doutor Heart percebeu foi que, na verdade, esses ratinhos eles não tinham outras alternativas, eles viviam naquela gaiolinha super pequenininha fechada e daí ele propôs um outro estudo e ele fez esse outro estudo, que era com gaiolas muito maiores onde os ratinhos não ficavam lá sozinhos, eles ficavam com diversos outros ratos e onde tinham alternativas para diversão. Então, tinha aquelas rodinhas, tinha sexo à vontade, né, com as outras ratinhas lá da gaiola e tal, e tinha várias outras coisas para fazer. E quando você colocava nessa gaiola as mesmas alternativas de água com cocaína e água natural era só um número menor, número pequeno, tipo 20 ou 10% dos ratos que acabavam preferidos sempre a água com cocaína, enquanto a maior parte dos ratos não ficava naquilo. E foi daí que a gente começou a mudar o paradigma da dependência de droga como se não fosse uma questão que a dependência não dependia só da substância em si, era uma coisa que depende do contexto, né? Quando a pessoa não tem outra opção, quando ela não tem outra coisa para fazer da vida, ela acaba optando por só usar a droga e quando ela tem outras opções, nem sempre ela fica com droga sozinha.
Ju: Eu acho interessante, por que? Porque quando a gente vai na análise da neurociência você vai bem para o micro, você pega o microscópio e aproxima, aproxima e aproxima… e você considera só um fator, né? E o que é interessante que o Doutor Heart traz é falar assim: “Mas, e os fatores ambientais? As pessoas se você der condições diferentes as pessoas reagem da mesma maneira?”.
Marcelo: Eu acho que, lógico que é interessante esse estudo, é muito importante né? Também da gente pensar que primeiro, que rato não é ser humano, né? E a extrapolação pro ser humano também já é um pulo que você faz…
Fê Duarte: Enorme, né?!
Marcelo: Enorme! E a outra questão que mesmo alguma parcela desses ratinhos continuavam a usar a droga ou não faziam as outras coisas, então também tem uma questão que você tem que pensar, que alguma parte desses ratinhos não se interessavam por outras coisas. A questão do cérebro é importantíssima, depende das drogas, você não pode ver as drogas como uma coisa só. Existem drogas muito diferentes, drogas muito mais fortes e que vão fazer com que a capacidade de escolha do indivíduo seja perdida muito mais facilmente. E a outra é que cada pessoa é diferente, contextos diferentes, culturas diferentes, pessoas em vulnerabilidade maior vão se tornar dependentes, se tornar aqueles ratinhos que não conseguem sair disso, mais facilmente.
(Bloco 16) 1:15’00” – 1:19’59”
Cris: Ele chegou a fazer algumas pesquisa com pessoas também, né? onde as pessoas usavam a droga, inclusive foi muito polêmico, eu lembro sobre isso, porque as pessoas recebiam dinheiro pra pesquisa, igual qualquer outra pessoa que está participando de pesquisas e recebia droga pra fumar dentro da universidade, então foi bem polêmico mesmo, e a partir do momento que as pessoas fumavam eles mapearam no cérebro e fazia teste de calor, e também fazia, continuavam conversando com a pessoa, mesmo depois que ela tinha usado bastante da substância pra entender se ela conseguia responder por si ou se ela perdia completamente a noção de quem ele era. O resultado da pesquisa dele é que a pessoa continua respondendo por quem ela é. Aquela imagem de que a gente tem que vira um zumbi, que a pessoa esquece completamente de tudo, que ela se transforma em outra coisa, ele questiona isso a partir dos resultados dos testes dele. Então, eu acredito que tem um viés muito interessante do que ele coloca, que é uma perspectiva, porque embora a gente tenha pessoas que conseguem sair, outras que não conseguem sair do vício, a grande maioria das pessoas que a gente hoje trata como um problema de vício e dependência no Brasil, de crack, são pessoas de baixa renda, são pessoas que, até porque a droga é muito barata, então eles conseguem acesso muito fácil, então quando ele fala sobre falta de perspectiva e a gente associa que leva as pessoas mais pra esse universo, a gente associa isso ao volume de pessoas que a gente tem quanto usuários no Brasil faz muito sentido. Hoje mesmo eu tava lendo no Facebook um jornalista, colega, e ele foi numa reunião no Centro e ele passou por duas mulheres ele falou assim: “Cê via no rosto delas que eram pessoas muito maltratadas pela droga” e quando ele foi ele escutou a mulher falando: “Não é que eu quero morrer, eu quero parar de sentir. Eu quero parar de sentir isso tudo” e ele falou “Meu, fui para reunião pensando na frase que ouvi do nada porque eu tava passando perto”. Ele falou quando ele voltou elas continuavam conversando, tinha umas 3 horas que elas estavam conversando. Então, assim quando a gente vê as pessoas sucumbindo e não tendo condição de largar uma dependência, analisar o contexto me parece muito racional, né?
(Bloco 17) 1:20’00” – 1:24’59”
Ju: Mas ele tem algumas alegações muito fortes, então por exemplo: ele disse que 80% das pessoas que usam crack… de 80 a 90% das pessoas, que usam crack e metanfetamina não são viciadas. Ele fala que os números de realmente de vício, dessa questão química da questão física, se ela tiver todas as outras necessidades atendidas, se ela tiver opções, se ela tiver alternativas, se ela tiver amparo, se ela tiver vínculo, se ela tiver todas as outras questões, ela ainda assim abrir mão de tudo isso e sempre, continuamente pela droga, porque realmente a droga incapacitou a pessoa de tomar decisões conscientes e racionais por si mesma, ele restringe esse número a 10% no máximo 20% das pessoas que usam a droga efetivamente.
Fê Duarte: Essa afirmação eu acho bastante arriscada de fazer, primeiro porque assim, bom, não sei, a experiência que eu tenho é de vários pacientes dizendo o oposto sabe, dizendo que assim, via família, e via filho, e via trabalho e ainda assim falava: “Olha na hora de usar, se aparecia a oportunidade…” e ele deixava tudo para trás e inclusive maltratava pessoas que ele gosta mesmo, para usar. Eu lembro muito de ver paciente contando isso para mim. E quando esse pesquisador fala isso, é difícil oferecer tudo isso para uma pessoa, para um usuário de crack, né? Oferecer a família, o amor, o trabalho, todo o suporte inclusive, porque são pessoas que foram abrindo mão de várias dessas coisas ao longo dos anos, sempre em troca da droga e a gente não tem meio, recurso para oferecer tudo isso para essa pessoas de novo, né?
Ju: É, eu queria que você falasse sobre isso porque assim, lendo o post que você fez no Facebook, contrasta bem com que o Doutor Hart fala, que você fala do crack ser “extremamente potente, de ter efeitos devastadores no cérebro, de levar uma e incapacitação do indivíduo através de uma desorganização mental, o dependente torna-se incapaz de tomar decisões, controlar-se, dar destino a sua vida, a sua única opção é limitada por uma compulsão irrefreável para conseguir a próxima pedra. São indivíduos de várias classes sociais em níveis educacionais que se transformam rapidamente em verdadeiros zumbis.” [aqui ela está citando o texto do Fê Duarte]. Então assim, é exatamente o oposto do que ele está falando, não é? Um contraponto, porque ele fala assim: “Não, são pessoas que mesmo na fissura da droga eu ofereço ‘olha, você quer ganhar uma pedra ou esperar daqui uma semana eu vou te dar 50 dólares?’ e as pessoas continuam fazendo a sua escolha de voltar daqui uma semana ao invés de pegar pedra porque elas são inteligentes, com 50 reais elas compram muito mais pedra”, por exemplo, entendeu?
Marcelo: O que eu concordo com que ele tá falando é que a gente não vai ter também a ilusão de que se você pegar esse paciente colocar ele internado, desintoxicar e der alta que ele não vai usar droga de novo. Se você não der uma condição de vida para essa pessoa, possibilidades, caminhos, de uma assistência muito longa, prolongada, de suporte, de tá lá junto com ele. Vai precisar de muitas outras coisas, a internação vai adiantar para tirar ele daquela fissura, da loucura, da falta de consciência, mas tem um caminho muito longo e a cracolândia é um reflexo da nossa sociedade, né? Então, não é que é só o crack. É o todo, ali é o espelho do problema que a nossa sociedade vive.
Fê Duarte: É o centro da exclusão, né?!
(Bloco 18) 1:25’00” – 1:29’59”
Ju: Um ponto que acha que ajuda a chegar a aproximar as duas visões, é o ponto que fala sobre como o usuário de crack, se ele ficar longe da oferta da droga ele consegue se livrar rápido da abstinência né? Então, por exemplo, o exemplo que dão para isso é o exemplo mais rude, mais cru, que é o que aconteceu nas cadeias, porque, tava falando que é bom como o crack não era, numa situação de superlotação, enfim para todo o ecossistema, na cadeia ele não era tolerável, eles baixaram ordem que não podia crack dentro da cadeia, então quem era usuário de crack quando entrava tinham três dias de abstinência e depois a partir desse momento não era mais oferecido pra pessoa e a pessoa não usava mais. Mas, num artigo muito bom do R7 que fala de uma menina que foi internada 10 vezes até conseguir, por fim se recuperar, ela fala também disso: “Toda vez que eu fui internada foi rápido. Eu não tinha mais acesso a droga, eu fazia o tratamento, ok. Eu consegui ficar sem a droga. A questão é se oferecerem de novo, se eu tô na vida real no ambiente em que isso me é ofertado, que eu estou numa situação em que eu sei onde eu consigo pegar, aí é muito difícil tomar decisões sábias”. Então, aí você vê que isso não é mais químico, né?! Isso não é mais a questão da droga no corpo, como ela age no cérebro, porque se fosse…
Cris: Ela passa até nove meses, não é dois meses que ela passa sem usar, todas as vezes que ela internada ela fala que passa entre oito, seis, nove meses sem usar e quando tem a oferta ela não consegue resistir. Então, tem uma compulsão aí, que poderia ser por comida, que poderia ser por sexo, que poderia ser por outras… por trabalho e ela tem com a droga.
Fê Duarte: E isso que eu acho que a coisa mais difícil do ponto de vista psiquiátrico, porque foge muito do alcance da medicina sabe? O quando que vai ter essa oferta [da droga] sabe, se a pessoa diante de uma oferta ela é incapaz de recusar. A gente não é capaz de fazer nada em relação a isso, né?
Marcelo: E também porque eu acho que não é o nosso papel, como médico. [Fê Duarte: Sim.] Isso acho que é da sociedade, né, de como vai limitar, usar, legalizar o uso da droga, por quem, como, o que que isso implica, né?! O psiquiatra tá lá para tratar as pessoas estão doentes, ponto.
Cris: E a gente quando fala sobre o crack como consequência e não como causa, a gente vê o psiquiatra o médico de uma maneira geral, como uma pessoa que tá chegando no final da cadeia. [Marcelo: Sim.]Ele não tá lá, ele não tem o poder de impedir a entrada, ele tá tentando minimizar os danos depois que a pessoa já tá lá.
Fê Duarte: Em geral são isso mesmo, são pessoas que já perderam tudo que e acabam querendo compensar a falta de prazer, ou falta de qualquer coisa que ela tenha na vida, com uma coisa que dá muito prazer, que é o crack.
Cris: E tem uma questão, que ficou muito claro nessa matéria também, nos momentos que ela ficava sã, que ela tava sem a droga para deturpar o cérebro dela e ela reconhecia o quanto de coisa que ela tinha feito errado, ela queria voltar a usar, porque é um jeito de fugir da realidade, então é um ciclo vicioso. Na hora que ela tá sem a droga ela reconhece o estrago com a família, com a filha, com ex-marido, com todo mundo. Os empregos perdidos a faculdade que nunca foi aproveitada, quando ela tá na viagem dela ela não pensa no quanto ela fez isso. E o tratamento também, ele pode oferecer algum tipo de risco para o paciente, né, porque a ausência total de uma coisa que ele fazia uso constante também pode trazer um choque para o corpo, não? Hoje a gente lidou aí com a notícia do Sarda, um cara que estava na cracolândia, foi reconhecido por uns amigos da escola, os amigos da escola fizeram um Crowdfunding, conseguiram internar ele e ele morreu hoje de manhã numa crise de abstinência…
Fê Duarte: Ele morreu numa crise de abstinência de crack?
Cris: Dentro da Clínica.
Marcelo: É possível.
Fê Duarte: É possível. Em geral, abstinência de cocaína e crack não é o tipo coisa que mata, tá? Em geral, a abstinência mais grave, que representa o maior risco pra vida, é a abstinência de álcool, enquanto que as outras abstinências: de cigarro, cocaína tudo, em geral não mata. Eu acho difícil acreditar que o risco da abstinência seja maior do que o risco de usar de novo. Eu acredito que o risco da pessoa usar mais uma vez é sempre maior.
(Bloco 19) 1:30’00” – 1:34’59”
Ju: Achei interessante porque vai bem contra o senso comum é um dos artigos (”) que a gente colocou na pauta que fala assim: “A cocaína não é tão aditiva como muitos pensam, se o usuário não tiver acesso a ela ou aos locais onde a consumia ou até entrar em contato com companheiros sob o efeito dela, nada acontece. Ao contrário, a simples visão da droga faz disparar o coração, provoca cólicas intestinais, náuseas e desespero. Quebrar essa sequência perversa de eventos neuroquímicos não é tão difícil: basta manter o usuário longe do crack.”
Fê Duarte: É, então, e aí? O que que a gente faz? Né? A gente limpa o centro, todo mundo, afasta todo mundo?
Cris: Põe todo mundo numa bolha?
Marcelo: Super difícil, muito difícil…
Ju: Complicado, a gente falou um pouco então, fez um ponto contraponto então, sobre teorias alternativas, pra tentar expandir uma pouco mais do que a gente entende sobre o que é a droga, como ela atua no cérebro, como ela tira ou não nossa capacidade de decidir e eu acho importante a gente pensar agora sobre as escolhas que a gente faz no mundo real, que não são esse mundo controlado do Dr. Hart, nem um mundo controlado da academia, em que a gente tem as melhores instituições de tratamento. Então, no mundo real, a gente está sempre pendendo entre dois riscos: o risco de conceder poder ilimitado pra pessoas e estruturas despreparadas, e sem sistema de controle e supervisão, que é o risco de você falar assim: “Olha, incrível que o Dr. Heart falou, porém a pesquisa dele nunca foi replicado em outros países, você não consegue esse resultado por outras pessoas, ele é extremamente polêmico na comunidade científica por conta disso, então a gente vê o sofrimento das famílias, a gente sabe que é preciso ter uma estrutura para receber o paciente psiquiátrico ou o dependente químico, então precisamos dessa internação compulsória ou involuntária” e aí a gente entrega [o paciente], a gente sabe a quantidade de lugares em que a lei não é cumprida, porque a gente não tem fiscalização, então em que não tem nenhum tratamento, a menos que você acredite que que doutrina religiosa é considerado o tratamento científico, em que você não respeita as questões de respeito ao paciente, a lei impede qualquer tipo de violência e a gente sabe que muitas das clínicas atuam de forma extremamente violentas.
Marcelo: sim
Ju: Então, a gente tem de um lado esse risco e do outro lado o risco de “Bom, então, se eu não quero correr esse risco então a gente fala ‘Pára com isso, não pode ter mais internação, não faz mais internação’”, aí você tem um risco de deixar pessoas, como a gente falou, desassistidas, famílias que não conseguem cuidar do paciente ou do usuário de droga, e pessoas que, o que a gente pouco falou, mas que tão lá na Cracolândia em situações deploráveis, que elas não têm condições de elas mesmo por elas quebraram esse ciclo. Elas não têm capacidade de quebrar sozinho esse ciclo. Para ilustrar esses dois momentos, a gente vai ouvir mais dois depoimentos, então, o primeiro falando sobre esse risco do poder ilimitado, a gente vai dar a voz para uma pessoa que foi internada involuntariamente.
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Paciente 1: Eu fui internada por que eu tenho transtorno afetivo bipolar, eu entrei numa crise em que eu não tava conseguindo me controlar, tava tendo alucinações, escutando vozes, achando tudo me perseguia e qualquer pessoa eu ia me fazer mal. E eu fui internada no momento aqui eu achava que tava começando uma Segunda Guerra Mundial, e que eu ia salvar o mundo e eu liguei pra polícia. Eu dei trabalho para minha família e meu pai veio em casa me pegou e me levou para o Hospital Psiquiátrico e nesse hospital fiquei durante 20 dias. Quando ele saiu da internação, que foi uma internação meio que compulsória, ele saiu chorando por ver que eu tava nessa situação. O tratamento é um tratamento a longo prazo, né? Então depois que eu saía da primeira internação depois de 15 dias eu voltei para segunda internação, essa á não era mais compulsória, foi por vontade própria, porque eu sabia que não estava bem e sabia que precisava de ajuda, que essa ajuda não ia encontrar em casa, talvez fosse encontrar na clínica. Foi aonde regulou todos os remédios e melhorou muito. Minha relação com meu pai, que foi quem me internou todas as vezes, melhorou muito depois de tudo que aconteceu, eu não tinha uma boa relação com ele e por causa disso nas crises eu joguei tudo em cima dele. Eu xinguei, eu maltratei… eu não fui legal com ele nas minhas crises, mas ele continuou persistindo em mim que ele sabia que era só uma crise que ia passar.
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Cris: Vamos ouvir agora uma pessoa que tomou a decisão de internar um ente querido.
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Barbara: Meu nome é Bárbara e eu queria explicar mais ou menos um pouquinho sobre como foi esse processo de internação involuntária com a minha mãe. Ela foi diagnosticada há muitos anos atrás com distúrbio bipolar, vinha fazendo tratamento no começo bem na marra mesmo, por imposição da família, tratamento tradicional. Só que, durante muitos anos, ela não aceitou nem que ela estivesse doente, nem que ela precisasse de tratamento. Então, ela tomava medicação que o médico passava durante alguns meses e aí quando ela saía da crise, que ela começava a retomar o que a gente considera um comportamento padrão, um comportamento normal, típico, ela se revoltava contra isso, dizia que aquilo não era ela, que aquela pessoa eram apenas os remédios e largava medicação. O problema é que o distúrbio psiquiátrico da minha mãe, alguns dos sintomas do caso dela, são até que comuns, mas é descontrole financeiro ela fica com uma mania de grandeza impossível de se sustentar. E aí o que acontecia é que como ela se descontrolar financeiramente e nós éramos crianças.
(Bloco 20) 1:35’00” – 1:42’59”
Barbara: …A estrutura financeira da casa acabava, não tinha dinheiro para comprar comida, não tinha dinheiro para manter as contas, não tinha nada porque na cabeça dela, ela em crise, aquele dinheiro era dela e ela ia usar ele para investir no sonho dela que no caso era a política, ou então ela dava o dinheiro, já aconteceu muito dela dar as coisas da casa. E aí, as primeiras vezes que ela foi internada que tomou essa decisão foi a minha tia que decidiu que ela ia sim internar, e ela foi internada as primeiras vezes no Hospital de Clínicas aqui no Pará. E assim da relação delas de fato, estragou completamente relação, por mais que seja difícil entender como é que alguém toma essa decisão eu consigo entender ao lado da minha tia. Não só porque depois eu tive que tomar essa decisão mas eu já consegui entender, porque você vê a sua irmã que você ama muito que é uma pessoa x, que tem uma personalidade x e você sabe que aquela doença, que é um de controle químico, que pode ser resolvido, tá transformando ela numa outra pessoa totalmente diferente, e no caso da minha mãe não é uma pessoa agradável nem se conviver em ser da família, e que se você tomar uma decisão difícil talvez ela consiga melhorar e sair daquilo. Então, a minha tia decidiu internar, lá foi internada na marra, os primeiros tratamentos de pelo que eu sei, foram bem pesados, era um internamento de 30 dias e tratamento era dopar mesmo a pessoa, eu lembro que o primeiro tratamento dela ela foi dopada com haldol ainda à época, e ela odiava o tratamento e até hoje o relacionamento delas é muito difícil. Minha mãe durante muito tempo jogou isso na cara de todo mundo, que ela não era doida como ela diz, que doidos eram os outros, que ela não tinha necessidade de nada daquilo e assim, da relação das duas ficou muito ruim. Durante muitos anos, a minha mãe não falou com a minha tia mesmo que outras pessoas argumentassem que ela só tomou essa decisão por conta das circunstâncias, porque a minha mãe tinha duas filhas pequenas, uma com monte de problemas de saúde que precisava de estrutura e aí durante muito tempo foi bem complicado entre elas. Até que, depois de todas as internações que ela teve enquanto nós éramos crianças, ela passou muitos anos muito bem, quando ela finalmente começou a aceitar que talvez ela de fato precisar daquela medicação, talvez ela de fato não pudesse beber, talvez ela de fato não pudesse passar noites em claro, e aí ela começou a melhorar e ficou muitos anos sem crise nenhuma, sem entrar em surto nem nada do gênero. E em 2005… isso em 2005, a minha irmã caçula foi diagnosticada com a mesma doença e aí a minha mãe entrou em surto de novo, entrou em crise por conta disso e ela não soube lidar, e aí ela parou de tomar os remédios ela começou a passar noites e noites em claro, e aí ela começou a repetir os comportamentos, ela passou a ter descontrole financeiro, ela fica violenta mas não é que ela fica violenta com todas as pessoas, ela fica me olhando dentro de casa, a gente teve uma discussão feia a respeito de remédio, ela dizia que eu… perguntando quem eu era para tá tomando satisfação do que ela tomava o deixava de tomar, me acusando de estar tomando decisões que não fariam bem a ela e aí eu decidi que de fato, depois de vários meses nessa situação, por que explicando assim parece até que foi rápido, mas, na verdade eram meses e meses de sofrimento. E ai eu decidi que, de fato, ela precisava, já que ela não ia tomar medicações sozinha e que eu não ia dar conta de cuidar dela, de mim da minha irmã, da casa, eu tava prestando concurso público. Eu chamei minha tia e nós decidimos que nós iremos levar ela de novo para uma clínica, dessa vez uma clínica particular, que em teoria com melhores estruturas do que o Hospital de Clínicas e ela foi literalmente levado à força, porque ela não queria ir de jeito nenhum, mas ela já estava muito, muito complicada a situação e aí nós levamos ela pra essa clínica. Era um tratamento de confinamento bem difícil. Foi muito difícil depois que eu vi o local, que eu vi como era a estrutura, decidi que de fato ela ia ficar lá. Eram quartos fechados, trancados com grade, assim grandes, bem arrumado, limpos, mas assim a sensação que você tava… eu tava largando minha mãe numa prisão. E aí o tratamento era baseado no tratamento normal que ela fazia, não era um tratamento específico da clínica, o psiquiatra dela é que orientou a psiquiatra da clínica: qual era a medicação, qual era a dosagem, então nesse sentido era muito melhor que o tratamento dado no HC (Hospital de Clínicas) que era baseado no perfil de tratamento psiquiátrico do próprio HC, e aí ela ficou mais ou menos uns 30 dias lá, a gente podia visitar normalmente – na época do HC não podíamos, mesmo porque, acredito eu, éramos menores -. E foi bem complicado durante muito tempo, quando as primeiras vezes que nós fomos visitar ela, ela nos mandava embora, dizia que nunca mais ia falar com a gente, durante muito, muito, muito tempo ela jogava isso na minha cara, que eu tinha internado ela, que eu era igual todo mundo e ela não conseguia, na verdade ela ainda não consegue entender que era uma situação bem desesperadora, porque ela saia de noite sumia, desaparecia passava dias… O dia e a noite, fora de casa e dentro de casa ela ficava violenta e na cabeça dela não acontecia violência nenhuma e ela só estava se defendendo do mundo inteiro e aí era difícil de conseguir argumentar com ela que por mais que para ela parecesse bem mais simples, que na cabeça dela, pelo que ela fala hoje em dia, que eu consigo entender, é que a gente que estava criando coisas que não existiam, era difícil, é impossível na realidade lidar com uma pessoa que não quer a medicação, que fica violenta pra qualquer besteira, e tentar fazer ela entender que foi a melhor solução que nós achamos a época. A relação ainda é complicada com relação a esse assunto. Ela tem bastante ressentimento por conta da decisão da gente ter internado ela e isso é uma coisa que já aceitei, que ela jamais vai conseguir ver pelo nosso ponto de vista, de que ela tinha um histórico de uso de drogas, tinha um histórico de abuso de álcool, tinha uma doença que precisava de um tratamento sério e que ela não fazia voluntariamente, que ela de fato tinha evoluído, porque ela parou de usar drogas, ela parou de beber, mas ela não conseguia aceitar de que ela não podia apenas, por exemplo, se curar pela fé, que ela precisava da medicação por que o problema era químico. Problema não é só: “não, eu vou me curar só rezando” que nem foi o último caso da última internação dela foi essa situação, que começou. E assim foi bem complicado, bem complicado tomar essa decisão, decidi que ela ia de fato ser internada e que ela ia ficar lá, porque toda vez que eu ir visitar, ela dizia que queria sair e ela só podia sair com meu consentimento e eu não ia dar, e no final de contas foi bem difícil deixar ela lá um mês. e assim hoje em dia acho que a família inteira já se dá um pouquinho melhor, talvez porque ela finalmente tenha compreendido de que ela de fato não pode ficar sem a medicação dela sob nenhuma circunstância, e talvez porque a gente tenha compreendido que tudo bem, ela nunca vai ser/ter o nosso padrão normal de comportamento porque isso é o máximo que é medicação consegue fazer por ela, mas assim deu uma balançada na família inteira que não foi fácil para ninguém, nem para minha vó, nem pra minhas tias, nem pra mim tomar essa decisão nas vezes em que ela foi necessária.
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(Bloco 21) 1:43’00” – 1:54’59”
Ju: Eu acho que muito importante trazer esses depoimentos porque eles mostram o sofrimento que vem de todos os lados nessa questão e por isso que esse assunto tem que ser tratado com muita maturidade e com muita sensibilidade também, né?! Então assim, quando a gente está falando que não precisa mais ter nenhuma internação que a gente tem que lutar contra qualquer tipo de acolhimento psiquiátrico, estrutura de acolhimento psiquiátrico, a gente está deixando de olhar para dor dessas famílias então a gente percebe, e esses relatos eles se multiplicam, a gente só pode colocar um no ar, mas as células se multiplicam, como as famílias sofrem nesse processo de internação involuntária como é difícil como ela representa o pico de uma situação que ela se prolonga, ela raramente ao momento pontual. A família convive, tenta de alguma maneira acomodar a doença psiquiátrica, de uma maneira que não precise uma intervenção dessa forma tão violenta e, nesse último caso, isso tem consequências para família, então isso que eu acho interessante, o que ela traz o depoimento dela coisas que eu já vi em outras situações próximas de mim tal, pessoas muito próximas que eu vi que tiveram que tomar essa decisão existe um risco do laço afetivo nunca se recuperar. Então, a pessoa que está tomando essa decisão, geralmente a pessoa mais próxima, então o marido ou é um filho, que é muito difícil ou é uma mãe, que é muito difícil, ma,s é uma pessoa que está tomando uma decisão que ela sabe que ela pode perder o vínculo para sempre, então não é uma decisão fácil, não é uma decisão leviana, né? E do outro lado, eu acho assim, a ouvinte que nos deu depoimento, e eu acho que justamente ela nos deu por conta disso, né, a gente tem uma dificuldade de ter outro tipo de depoimento, ela deu depoimento porque ela aceitou a internação, apesar de ter sido involuntária no momento, ela entendeu como terapêutica, ela foi lá depois se internou voluntariamente ela entendeu o ato do pai dela como um ato de amor. Mesmo tendo sido uma situação que é violenta, internação ela sempre vai ser violenta pela questão de que você tira sua autonomia, e então isso já é violento, ela entendeu que foi uma violência para o bem. Agora a gente tem um outro cenário das pessoas que estão internadas involuntariamente e se revoltam com isso e não aderem ao tratamento. Então essa reportagem do R7 [“R7”] que é muito boa, ela fala dessa menina que passou por dez internações e ela coloca claramente: “Eu nunca fui capaz de aderir ao tratamento porque eu nunca quis tá lá”.
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Paciente 2: Eu tive dez internações, todas e involuntárias, contra minha vontade a pedido da minha família especialmente da minha mãe. Não foram boas, porque eu não achava que eu tinha um problema sério com drogas nem que isso fosse progredir. Eu acreditava que eu estava passando uma fase ruim da minha vida que eu fazia uso de drogas, mas que essa fase vai passar. Então, veio a primeira internação involuntária e o sentimento foi horrível: foi de prisão, foi de punição, foi de castigo e não foi diferente nas outras internações. Me gerou muita raiva porque é como se eu não tivesse outra alternativa para fazer o controle da minha doença. Um pouquinho antes da primeira internação eu tive atendimento psicológico, atendimento psiquiátrico, mas, assim eu não consegui dar muita continuidade. Eu até tentei, tentei ficar uns dias em abstinência, quando tava num processo de tratamento assim, eu tive uma recaída e aí logo eu fui internada, então eu fiquei com muita raiva porque eu sinto que quando eu estava tomando, né, o controle de que eu queria parar, que eu tava começando a interagir com o fato de eu ser doente tudo, veio essa internação, a primeira. E aí me gerou assim um sentimento de abandono, de desespero, de que era mais é fácil né me deixar presa para cuidar de mim, então assim, depois da primeira vieram mais nove. Todas elas, no meu ponto de vista, me geraram muito sentimento de raiva, todas as vezes que eu entrava nas internações o meu primeiro pensamento era: “De que quando eu sair se eu ia chutar o balde e a minha mãe ia se ver comigo”. A minha relação com a minha mãe em relação a essas questões da internação piorou, a relação piorou demais, porque conforme eu era internada ela assumiu o controle da minha vida e ela fazia as coisas conforme ela achava que tinha que ser feito, né? Vender algumas coisas que estavam no nome dela mas que eu fazia uso como carro, casa, organizar a minha questão do meu divórcio, arrumar minhas coisas da minha casa do meu casamento, e tudo muito sem a minha permissão. Então, foi muito ruim né? Demorou muito tempo para eu entender que essas ações da minha mãe era um porque ela queria o meu bem. A minha leitura de tudo isso foi que ela queria me punir, que ela não dava conta de mim mesmo e ela não tinha amor por mim então ela não me dava para os outros cuidarem. Sempre foi esse sentimento que eu tive em relação às internações e a minha mãe. Tiveram vezes que eu tinha recaídas assim, vai de dias… sete dias. Eu trabalhando, fazendo pós tal. Aí foi que eu tive uma recaída e com uma semana de uso eu era internada de novo a força, e não era me dado a chance assim de: “Pô, cê tá usando de novo? vamos ver o que a gente pode fazer”. Por que no fundo até queria ajuda, mas eu não queria ser internada e assim precisamos internada? Tava no processo de trabalho de pós de crescimento, né, querendo ou não, mas fiz o uso no meio disso tudo e não me era dado a oportunidade! “Não, é internação”. Isso pesou demais, demais, porque a hora que eu era internada eu perdi o direito de me comunicar com o mundo, de ir atrás das minhas coisas, essa da pós assim foi bastante pesada, porque eu poderia ter trancado a pós, ter dado um tempo. Não! Ficou como abandono. Por que eu fui internada, eu fiquei de mãos atadas, eu fui presa né?! Essa é a grande verdade, fui presa e quando eu retomo a minha vida eu não tenho nada. Nossa como é difícil isso. Essa sensação é muito difícil. Isso me gerou muita raiva, muita raiva, e sempre em relação a minha mãe, porque era ela que tomava as decisões. Até que ela viu que não tá surtindo efeito, né?! Algumas internações eu tentei levar mais a sério porque já tava lá, já tinha passado pelo processo, então eu tentei levar a sério. Só que por conta de autossuficiência, de necessidade de controle, do meu egocentrismo, de que comigo não era assim, que ia ser diferente, eu tentei fazer muito da minha cabeça do meu jeito sem pedir ajuda, sem pedir muito a opinião de ninguém e não seguir a opinião e nem tratamento de ninguém. Isso eram perfil meu, é um perfil meu até hoje, mas que hoje eu tenho que fazer diferente. Até uma hora que ela viu que já tava, né, num número grande de internações, não me lembro exatamente quanto, e ela falou assim para mim que não iria me internar mais, né, que ela largou mão. Eu tive uma recaída nesse tempo que ela largou mão e não interferiu mais o meu tratamento. Eu abandonei o psiquiatra, eu abandonei a psicóloga, e aí numa recaída grande que eu tive que durou uns 6 meses, chegou uma hora que eu cansei e eu fui procurar ajuda. E foi a primeira vez que eu senti que eu tinha que tomar conta, né, de mim e da minha doença, e que eu não tive o apoio de ninguém. E foi muito válido porque foi quando começou a vir a maturidade, foi quando começou a vir a necessidade de me cuidar e um pouquinho do entendimento de que eu estava realmente tendo problemas graves com droga e eu precisava me cuidar. Eu estava perdendo o emprego mais uma vez por conta do meu uso e eu tava morando sozinha, e eu me senti muito sozinha, então foi a hora que eu procurei ajuda no centro do SUS e foi muito válido. Fui muito bem atendida, foi muito bem ouvida e ele lá eu comecei a fazer vínculos, vínculos onde eu podia cuidar de mim, onde eu entendia que ali estava nas minhas mãos. Dali acho que começou realmente o meu tratamento, foi em 2013. A primeira internação veio 2007. De 2007 a 2013, eu não achei que eu tivesse problema ou se eu tivesse problema, que eu tinha o controle. A partir de 2013, quando eu começar a tomar conta da minha vida, das minhas escolhas, mesmo tendo recaída, eu não desisti, né? Eu falei: “Não, vou conseguir!”. E aí eu comecei a entender que eu tinha que fazer um perfil e ver o que tava acontecendo as minhas recaídas, e veio nesse processo de 2013 até 2016, né, foram 3 anos. [Houveram] algumas duas ou três recaídas, um pouco mais curtas, e um pedido de ajuda logo em seguida, né? Eu comecei a fazer um mecanismo de pedir ajuda, eu tive duas internações nesse meio tempo para desintoxicação, mas aí foi da minha vontade, assim, e foi válido… não vou dizer que não foi válido. E a minha relação com a minha mãe de 2013 a 2017, começou a mudar. [De] 2013 a 2016, ela começou a mudar, uma porque ela viu que ela não podia mais me controlar. Mas, também tiveram momentos assim, ela desistiu de mim de verdade, então quando eu recai aí eu precisava de ajuda ela nunca deixava voltar para casa, mesmo estando limpa. Por algumas vezes que eu fui morar sozinha eu aluguei alguns lugares para ir morar… foi válido. A hora que eu vi que eu tava sozinha que eu precisava tomar conta de mim e que dependia de mim o sucesso de tudo, com ajuda de outras pessoas, claro, porque sozinha não consigo, as coisas fizeram sentido, enquanto as coisas estavam vinculadas a mim e meu relacionamento com a minha mãe e a sua necessidade dela de me fazer parar e eu ainda não está pronta para parar, nada deu certo, nada deu nada certo. Isso gerava raiva nela, gerava raiva em mim e a gente acaba brigando, e ela acaba fazendo coisas, algumas vezes assim como forma de amor, mas que para mim era a punição, né? Então assim, eu ia lá reconquistava trabalho, reconquistava algumas coisas, comprava um carro com ajuda dela, no nome dela, era eu recai ela vendia tudo e falava que aqui para casa não voltava mais, e vai ser internada, então foi bem pesado esse processo, né? Hoje a minha relação com ela tá um pouco melhor eu tento dar ela um amor assim que eu nunca dei, que eu não tenho ainda, sou grata mas às vezes eu sou ingrata também, há dias mais ruins assim eu tenho raiva, não vou negar que eu não tenha. Eu tento que só hoje em dia não agir nessa raiva, porque a raiva vem, né?! Mas como hoje percebi o quanto eu fiquei sozinha é o quanto eu já tenho uma certa idade. Tô com 38 anos e que a vida tá passando, minha filha está crescendo e eu não estou construindo nada, eu trabalho em cima desse sentimento para não agir nele, não agir cima dele e isso não lhe gerar novas recaídas. Meu relacionamento com a minha mãe ele é ponto de recaída fácil se eu deixar: as raivas que eu sinto dela, a minha inabilidade de lidar com ela, entender os defeitos dela, de assumir os meus defeitos, assim é algo que pesa bastante para essa minha doença, sabe? E pesa bastante para a questão do tipo: “vou chutar o balde e dane-se tudo”, mas eu não sou mais uma criança então eu preciso ter postura de uma adulta, o que é mais difícil também porque eu usei tanto tempo droga na minha vida que eu parei no tempo. Então, ter a postura de adulta assim é algo que eu tô aprendendo. Hoje a gente vive juntas, né, nós moramos na mesma casa, eu, ela e minha filha, passo algumas dificuldades, mas eu vejo o que é muito tá na minha leitura em relação aos sentimentos e a ela. Eu melhorei bem, eu amadureci bastante para eu poder lidar com ela, mas, engraçado assim, as vezes ela ainda quer ter o controle, que é teu controle de que que eu vou fazer, quando que eu vou ver psiquiatra, de que medicação que eu vou tomar e isso não cabe a ela, cabe o meu médico, cabe a mim e eu tenho tentado também não dividir essas partes com ela. Só eu fico bem, eu não trago problemas para casa e as questões minhas eu discuto fora de casa, discuto com meu médico, com a minha terapeuta e com o meu grupo de escolha, que é o meu grupo de autoajuda. A minha mãe hoje ela é só minha mãe, ela não é minha médica, ela não é minha psicóloga e não é… a minha doença não vai depender do controle dela, isso daí eu tenho deixado bem claro, porque se não dá maior bagunça e a gente acaba brigando.
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(Bloco 22) 1:55’59” – 2:03’27”
Cris: Quando a gente levanta esse tipo de discussão, como a gente sempre tem feito numa série de outros debates aqui, a gente está falando sobre ter o senso crítico em cima do melhor que a gente pode fazer para as pessoas. Por que se a gente for olhar, existem sim casos de abuso, existem pessoas que não precisam ser internada e são internadas. E não é só sobre ser internado é o tipo de tratamento que essa pessoa vai ter e por qual período. Também proibir e falar: “Não! acabou ninguém vai ser internada” a mesma coisa de virar para alguém que está com uma parte do corpo quebrada e falar: “Não, você não pode ficar no hospital internada” mesmo sabendo que a pessoa precisa de uma assistência. Ela quebrou o quadril, sabe, aquele tipo de coisa que a pessoa fica imóvel? Então, acho que quando a gente chega nesse equilíbrio a gente consegue entender que na verdade o que a gente precisa é de um acordo social onde as pessoas entendam que é necessário tratamento e a gente busque o tratamento de qualidade, [Marcelo: Claro!] por que a gente tá falando no sentido de asilar, [Marcelo: … de cuidar.] que é cuidar de uma pessoa em situação vulnerável, então mais do que sim ou não o que a gente tem que buscar é tratamento de qualidade.
Ju: A gente espera ter conseguido trazer alguma luz para essa discussão, principalmente para mostrar que ela é muito mais complexa, que não tem uma solução rápida, uma varinha de condão que vai resolver todos os nossos problemas, né? Vamos então para o Farol Aceso.
[Sobe trilha]
[Desce trilha]
Cris: Vamos então para o Farol Aceso. Vamos começar com o Doutor Marcelo. Conta pra gente, que que cê vai indicar?
Marcelo: Bom, eu vou indicar a última série que eu assisti: Big Little Lies, né? Excelente, mostrando uma faceta da sociedade americana, classe média alta e as mentiras, as fachadas… Muito interessante.
Cris: Legal! Fê, que que cê vai indicar?
Fê Duarte: Eu vou indicar dessa vez dois filmes que têm a ver com a pauta. Então, o primeiro filme chama “Dá para fazer” “Dá para fazer”. É um filme italiano que conta a história exatamente da luta antimanicomial na Itália, então, quando os leitos psiquiátricos começaram a ser fechados e começaram a fazer cooperativas para tratamento dos doentes mentais. Filme muito divertido, engraçado e que também tem uma pegada bastante séria também, eu recomendo a todos e tem o filme inteiro legendado em português no YouTube. O outro filme que eu queria recomendar, é um filme que chama “Omissão de socorro” “Omissão de socorro”. É um documentário feito pelo pessoal da Universidade de São Paulo e que ele fala também sobre o lado negativo dessa redução de leitos e de como que algumas pessoas foram ficando simplesmente desassistidas por não haver mais leitos de internação psiquiátrica. Também recomendo fortemente. E, antes de terminar o meu farol aceso, só queria, de verdade, mandar um beijo pra duas amigas minhas, mamileiras de coração, que é a Dany (Danielle) e a Natália, que eu tenho certeza estão ouvindo, beijo para vocês, depois me manda um beijo no Whats.
Ju: Cris, que que cê recomenda essa semana?
Cris: Então, eu vou recomendar um livro que eu li há algum tempo e eu fiquei fascinada, que é do Oliver Sacks, que é um escritor rízimo [?] que todo mundo conhece, que é “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”, que ele fala sobre uma série de pacientes ali, pessoas que têm distúrbios psíquicos e que, como o cérebro é fascinante, sabe? Porque, realmente, o conto que dá nome ao livro é verdade, o cara confunde a esposa dele com um chapéu durante uma determinada época [Ju: [interrompe] lisonjeiro, né?] [Fê Duarte ri alto]. Olha, eu juro pra vocês, o livro é fascinante, eu recomendo, não vou falar pra ficar estragando cada um dos contos,[(Marcelo: É muito legal!] mas olha, tem que ler esse livro, sabe? E entender como que a mente humana, ela sabota muito as pessoas, sabe? A gente não tem muita dimensão do quanto isso é capaz de deturpar visões. Ju, o que que você manda?
Ju: Eu indico um vídeo que tá no YouTube, que é um VR [Virtual Reality = Realidade Virtual], é um projeto especial do Ricardo Laganaro chamado Step to the line “Step to the line”. É um projeto que foi feito por uma ONG nos Estados Unidos e vai mostrar dentro de uma penitenciária, ele vai mostrar justamente as diferenças que nos separam, o que que faz umas pessoas estarem de um lado do muro e o que que faz as pessoas estarem do outro lado do muro. É sensacional, então, isso faz parte de um projeto maior, que é de usar a realidade virtual pra nos aproximar mais, ter uma experiência imersiva de maneira que a gente se enxergue nas situações e quebrar as barreiras e que a gente realmente se toque, forme conexão com as pessoas. É bem legal o projeto. Além disso, eu participei do podcast “Cinemático” pra falar sobre “Mulher Maravilha”“Cinemático”. Eu amei o filme, obviamente, né, tá todo mundo amando o filme, como que eu não ia amar, né? E eu passei o filme inteiro imaginando a Nina reproduzindo cada um dos movimentos dela. Já imagino que ela vai surtar, vai adorar, embora não vá ver o filme, mas ela pode ver algumas cenas. E o que que a gente falou lá que eu acho que vale a pena para vocês? A gente fez uma análise de como esse filme é legal por mostrar bem uma coisa que todo filme de super-herói fala, toca no assunto, mas não aprofunda, não explica – eu acho que eu nunca consegui ver muito bem nos outros filmes – que é como [o] ponto de vulnerabilidade de todo super-herói é o amor, né? Então, por que que os super-heróis usam máscaras? Por que que as pessoas não podem saber quem eles são, se eles são invencíveis, né? É justamente porque as pessoas por quem eles se importam, as pessoas que eles amam não são invencíveis. E a melhor maneira de você pegar uma pessoa é pelas pessoas que ela ama. Então, o amor é o sentimento que te torna “fraco”, porque o amor é o que faz o teu coração bater fora do teu corpo no corpo de uma pessoa mais fraca e eu senti isso quando eu tive filho. Então, era um bebezinho aquele pedaço de carne e, de repente, eu me senti vulnerável. Eu nunca tive medo de morrer, mas o primeiro medo que eu tive na vida foi quando eu tive filho, porque eu vi que o maior potencial de dor do mundo existia fora do meu corpo. E eu acho que esse filme mostra isso, ela é uma deusa, né, ela é a Mulher Maravilha, você não sofre por ela em nenhum momento do filme, você sabe que ela vai dar conta de tudo, mas o amor deixa a gente vulnerável. E, ao mesmo tempo, é o amor que te dá a maior força do mundo, a maior motivação do mundo, você é forte por si mesmo, mas o amor desperta tudo em você. Eu acho que a gente fala bastante sobre isso, sobre esse filme e também sobre “quem é o homem que fica de pé diante de uma deusa?”. Eu acho que esse filme fala isso muito bem, gostei muito da retratação do cara e eu acho que ele fala bastante pra nós, mulheres, sobre quem é o homem que não se sente ameaçado por uma mulher que é absolutamente poderosa? Quem é o homem que não se vê ameaçado por uma mulher que é capaz de resolver tudo sozinha e que consegue se colocar no papel de ajudar, de apoiar e de ser um parceiro digno dela? Enfim, a gente teve essas e outras discussões, vale muito a pena escutar o podcast “Cinemático”, além de, obviamente, assistir o filme.
Cris: Fica a gostosa sensação de mais um programa no ar. Brigada, pessoal. Beijo!
Fê Duarte: Valeu!
Ju: Valeu!
Marcelo: Valeu!