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SXSW, mulheres, planetas e realidade nada virtual

Debates sobre a dura realidade do mundo no festival só reforçaram a esperança de melhoras, seja na resistência ou pela união

por Vanessa Oliveira

Em agosto de 2014, soldados do Estado Islâmico invadiram Sinjar, no norte do Iraque, uma comunidade habitada principalmente por yazidis. No conflito, 5000 homens foram mortos e cerca de 6000 pessoas, entre mulheres e crianças, foram capturadas como escravas. E as primeiras cenas do documentário em VR, “The Sun Ladies”, de Maria Bello, presente no SXSW 2018 – apenas 4 anos depois do conflito – nos mostram discursos pesados de homens tratando garotas como objeto de sexo, de venda, de troca e de nada. Isoladas, sozinhas e tendo que contar apenas com elas mesmas em pleno século XXI, algumas morreram e outras desistiram, mas houveram aquelas que conseguiram fugir – não do conflito, mas da submissão humana. Porque essas moças, diferente do que a maioria poderia fazer, resolveram se juntar para lutar de volta. E sob a locução da capitã Xate Singall, você vê mulheres fortes, femininas, de roupas de exército e arma na mão para defender seu povo. Bonitas, tristes, persistentes.

Apesar de ser um filme de realidade virtual cujo objetivo é te colocar dentro da história, eu não consegui imaginar o que é estar neste lugar. E acredito que mesmo com a tecnologia mais incrível do mundo não seria capaz. “Posso deixar uma carta para elas?” perguntei para expositora, meio atordoada sobre o que eu poderia fazer ou sentir naquele momento após tirar os óculos. Ao ver ao meu redor muitas outras cartas de outras pessoas penduradas no estande, com mensagens de amor para aquelas guerreiras, eu entendi que falar já era um bom começo – principalmente em um evento como o SXSW, que deu voz a muitas mulheres incríveis neste ano.

“A situação da mulher no mundo só vai mudar se o homem vier junto”, foi uma frase que ouvi tantas vezes de interlocutores diferentes, que estaria sendo injusta de creditar a uma pessoa específica. Uma afirmação que ficou martelando na minha cabeça após assistir “The Sun Ladies”, que é uma situação que está acontecendo AGORA. É algo que parece esquizofrênico quando você ouve Esther Perel dizer em um dos painéis que a mulher passa a ter um mesmo poder social que os homens nos dias de hoje – o que nos dá a incrível oportunidade de acessar a feminilidade e a masculinidade trancados há muito tempo dentro de nós – e que é preciso ter conversas corajosas sobre isso. Sim, a mulher está tendo mais poder social – talvez em pequenas bolhas, algumas áreas, mas está. E sim, em outras áreas, abusos, violências e outras humilhações ainda acontecem com a mulher. É… Talvez o mundo esteja de fato esquizofrênico.

Christiane Amanpour

, por exemplo, contou sobre a série que fez, onde entrevistou pessoas de vários lugares com o tema sexo, e trouxe uma visão otimista do futuro ao dizer que até em países onde as mulheres não têm voz elas estão buscando seu espaço e mostrando suas histórias, principalmente as mais novas. “A geração millennial tem uma tolerância e aceitação maior entre gêneros do que a minha teve. Esta é uma grande virada”, disse ela, sob aplausos de um público grande no SXSW, mas ainda pequeno em termos globais.

Mulheres que são gamers, marqueteiras, roqueiras, dubladoras, empreendedoras – todas elas estavam no evento em peso. E eu confesso que me surpreendi ao me deparar com uma mesa com quatro mulheres cientistas que estudam planetas! Sob o título “Todos os mundos são seus”, senti que pedacinhos dessa Terra (e quem sabe de outros lugares no espaço) estariam começando a serem compartilhados de verdade. Uma alegria que durou até o segundo momento, ao receber uma mensagem do Brasil, dizendo que Marielle Franco havia sido brutalmente assassinada no Rio de Janeiro, sem ser dona de mundo, cidade, bairro ou rua nenhuma. E mais uma vez eu me vi pensando “Até quando?”.

Uma mesa emergencial foi bravamente organizada às pressas por um grupo de brasileiros que estava no SXSW, e na sexta-feira – meu último dia de painéis no evento – eu pude participar da única discussão feita em português. “Alguém aqui só fala inglês?”, perguntou Bruno Natal, que seria responsável por mediar o painel, e apenas um gringo levantou a mão em meio a uma sala lotada. “Mas pode falar em português”, disse ele, que completaria depois “Isso é mais importante para vocês do que para mim”. E assim foi. Talvez porque antes de ser um painel para discutir soluções e problemas, aquele fosse um instante para se ter carinho, compartilhar a dor com todos aqueles que estavam longe de casa, e, novamente, falar.

Homens e mulheres, brancos e negros, héteros, gays, trans, tantas diferenças reunidas naquela sala… todos brasileiros. Discussões sobre violência nas ruas, coação da polícia, do governo e do receio de se expor – pelo simples ato de falar e existir. “Quando isso acontece eu acho que eles acreditam que o nosso barulho vai acabar, que a gente vai ficar com medo, mas não vai. A gente sabe de todos que vieram lutando desde a nossa ancestralidade. A gente está morrendo, mas precisamos nos dar as mãos”, disse Liniker, enquanto Fabi Batistela relembrou do poder da arte quando estamos falando das massas: “A classe musical me parece lenta nas questões políticas do Brasil e a música tem um poder muito grande para mudar as pessoas, vide o que vivemos na Ditadura”. Um painel de muita reflexão, com mais perguntas do que respostas.

No final Bruno, ao invés de pedir um minuto de silêncio pela Marielle, pediu um minuto de aplausos, e eu achei oportuno terminar o papo com barulho ao invés de ficarmos quietos mais uma vez, saindo dali imersa em outras tantas questões conversando com amigos. Brasileiros de relevância, que poderiam fazer algo pelo país, saem do Brasil com medo da violência. E quem fica? Leis que nos forçam a igualdade, embora internamente isso ainda não esteja resolvido. Quem é que muda? Redes sociais com pessoas que só querem falar o que pensam, sem estar abertas de verdade a conversar. Quem é que escuta? E por mais que todas estas perguntas me deixem cética em relação à realidade, eu ainda prefiro me recordar das “meninas do Sol”, que ao invés de fugir resolveram encarar o que estava acontecendo. E sobrevivem, e mudam, e ficam.

Sim, o SXSW foi o ano das mulheres terem voz, como nunca tiveram antes. E é importante que os discursos sejam valorizados independente dos gêneros, da cor ou da origem. O que me traz à mente a música de Gilberto Gil, da década de 70, tão atual quanto hoje, na qual ele diz que um dia viveu a ilusão de que ser homem bastaria, e que o mundo masculino tudo lhe daria do que ele quisesse ser. Até perceber que a sua porção mulher, que até então se resguardara, seria a porção melhor que traz em si agora. E eu penso que talvez seja essa a chave da questão quando estamos falando de ser humano: entender que dentro do masculino existe o feminino, que dentro do branco existe o negro, do americano o índio e vice-versa. Perceber que somos esse mar de possibilidades e de escolhas, antes de tudo. E que todos nós temos e devemos usar a nossa voz.

Cheguei ao Brasil com um sentimento misto, entre a esperança por todas as mudanças de mindset que percebi no SXSW, na sua busca incessante pelo ser humano, e da apreensão por todo movimento que, nós, como sociedade, ainda precisamos fazer e da velocidade que se deve imprimir. O caminho é longo (sempre foi) e não existe novidade nenhuma nisso, assim como atitudes individuais, antes mesmo das coletivas, são necessárias. E talvez este texto seja um vômito, um grito de alerta, um espasmo de alguém que se percebeu muito tempo calada. E você?

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