Ben Affleck se esforça, mas roteiro complica “O Contador” • B9

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Capa - Ben Affleck se esforça, mas roteiro complica “O Contador”

Ben Affleck se esforça, mas roteiro complica “O Contador”

Apesar do empenho do ator no papel de um matemático autista envolvido com criminosos, novo filme do diretor de “Guerreiro” se perde no excesso de explicações

por Virgílio Souza

⚠️ AVISO: Pode conter spoilers

Se por um lado é verdade que a caretice do título levanta algumas suspeitas, por outro uma sinopse mais elaborada e a relação dos profissionais envolvidos sugerem um produto capaz de despertar certo interesse. Christian Wolff (Ben Affleck) não é apenas um sujeito excepcional com os números, mas alguém que combina essas habilidades com um repertório militar impressionante adquirido após anos de treinamento forçado pelo pai (Robert C. Treveiler), o que o credencia a trabalhar para alguns dos principais criminosos do planeta.

A pressão profissional e a conturbada relação familiar parecem bases suficientes para o diretor Gavin O’Connor, responsável por bons filmes como “Guerreiro” e “Força Policial”, que lidavam com elementos semelhantes. O que se vê em tela, porém, segue uma lógica bastante diferente, e a principal razão para essa mudança se encontra na construção do protagonista. Wolff se define como um autista altamente funcional: ele enfrenta dificuldades de socialização e se torna obcecado pelas atividade em que se envolve, sempre determinado a terminar o que iniciou.

O diretor Gavin O’Connor e Ben Affleck no set

O diretor Gavin O’Connor e Ben Affleck no set

O Contador

Considerando a centralidade dada pela trama a sua condição, é preciso entender como o longa a enquadra. Nesse sentido, há uma tentativa clara de transportar esse rigor de raciocínio para a forma como a câmera opera. Planos simétricos se enfileiram em dezenas, ora centralizando o rapaz (e sua versão infantil, interpretada por Seth Lee) para demonstrar seu caráter metódico, ora atirando-o para os cantos do quadro para transmitir seu isolamento.

A estratégia mostra certa engenhosidade no princípio, a despeito de algumas decisões constrangedoras, como a inclusão de uma montagem acelerada (e nem por isso menos entediante) em que o sujeito faz a contabilidade de uma empresa. Quando os flashbacks passam a se acumular, porém, a sensação é que “O Contador” se desdobra menos como um estudo de personagem e mais como a história de origem de um herói de ação. É aqui que os problemas aparecem.

No roteiro de Bill Dubuque (“O Juiz”), há uma linha central clara, que acompanha a fuga de Wolff da investigação promovida por Ray (J.K. Simmons) e que envolve seu período atuando na empresa de Lamar (John Lithgow). No entanto, O’Connor insiste em voltar sua atenção para uma série de outros eventos que sempre surgem para justificar o comportamento estilo Jason Bourne/Batman sem capa do protagonista em vez de acrescentar dados à sua personalidade.

O Contador

“O Contador” se desdobra menos como um estudo de personagem e mais como a história de origem de um herói de ação

De um lado, a infância ao lado do irmão, o bullying no colégio, a interação com uma garotinha, o aprendizado com um mestre oriental, a amizade cultivada na prisão; do outro, o relacionamento com Dana (Anna Kendrick), o passado dos investigadores, o passado do vilão. Para um filme que busca a objetividade, todos essas retornos ao passado e desvios de foco no presente, tentando explicar tudo o tempo todo, parecem fora de lugar — são como peças demais para um só quebra-cabeças. Assim, o exercício de conhecer o protagonista se torna menos instigante rapidamente. Com o tempo, a lógica visual também se esgota, e o que antes aparecia como diferencial logo se revela apenas um recurso entediante.

Affleck até consegue se esquivar dos clichês que costumam acompanhar esse tipo de interpretação, embora o filme faça o possível para sabotar a performance e se focar apenas em seus maneirismos. Existe certa simpatia no esforço do ator, em contraste com a seriedade da direção. Inicialmente, as aparições de Kendrick também funcionam dessa maneira, aliviando o peso da trama, mas logo a colega de escritório se transforma em apenas um acessório para que Wolff finalmente se conecte com alguém de igual para igual.

O Contador

As viradas no roteiro são previsíveis e carentes da pulsão de produções anteriores de Gavin O’Connor

Quando consegue apresentar um conjunto razoável de informações sobre o que levou o contador à situação em que ele se encontra, O’Connor decide encaminhar o restante da trama como um típico produto do gênero, concentrando tiroteios e perseguições no ato final. A ação é retratada com a mesma racionalidade que a missão é cumprida: inimigos ficam pelo caminho e corpos se somam sem a menor cerimônia. Apesar de não impressionar tanto quanto, digamos, os filmes de Jaume Collet-Serra com Liam Neeson, esse é o segmento mais forte em termos de execução.

Os instantes decisivos do filme, no entanto, guardam suas maiores complicações. Como se compartilhasse da obsessão por concluir aquilo que começou, o diretor opta por encontrar um desfecho preciso para cada um dos mergulhos em sua personalidade. Envoltas em um ambiente extremamente controlado, as viradas no roteiro são previsíveis e carentes da pulsão de produções anteriores do cineasta. Assim, após passar quase duas horas interpretando de modo bastante direto as relações entre passado e presente do protagonista, “O Contador” propõe uma série de revelações que cumpre somente a função de não deixar absolutamente nada em aberto — um feito que só seria relevante e digno de nota para o próprio Wolff.

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