Sagaz, "Doutor Sono" assume para si o cargo de fantasma de "O Iluminado" • B9
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Sagaz, “Doutor Sono” assume para si o cargo de fantasma de “O Iluminado”

Sequência não hesita em trilhar caminhos próprios no drama e no horror, mesmo habitando no terreno do filme de Stanley Kubrick e do livro de Stephen King

por Pedro Strazza

Em meios às idas e vindas do eterno debate sobre se a popularização do digital mudou o cinema para melhor ou pior, escapa muitas vezes à discussão o tema mais amplo sobre a posição que os cineastas assimilaram nesta transição de meios e, em especial, quais teriam melhor compreendido as possibilidades intrínsecas na mudança da película para o arquivo. E neste caminho de 20 anos desde este barateamento de recursos, é difícil pensar em novos diretores que se perceberam donos desta mudança tão bem quanto Mike Flanagan, que desde seu segundo longa “O Espelho” brinca com esta intermediação como parte da narrativa.

Os filmes de Flanagan, afinal, sempre brincaram de um jeito ou de outro com noções pertencentes ao formato, uma tendência que embora iniciada na tradição do horror ele vem aperfeiçoando cada vez mais pelas vias do melodrama. É um casamento de gêneros que serve melhor à sua proposta: se o horror fornece bases emocionais potentes através da tensão (algo explorado com afinco nos primeiros projetos, vide “Hush” e “Ouija: A Origem do Mal”), as dinâmicas do drama sobrecarregam as mesmas por alimentarem uma identificação entre público e história ao longo da narrativa, o que por sua vez só contribui para acentuar a expansividade cada dia maior de seus trabalhos. E se há um meio que aceita obras tão expansivas este sem dúvida é o digital, cujas quantidades quase obscenas de armazenamento possibilitaram à indústria retornar a um formato antigo de “filmes evento” nos últimos tempos (de “Vingadores: Ultimato” a “Midsommar”) ao invés de se conformar nas limitações físicas da película – e como o desejo de toda a indústria é repetir no digital o sucesso do filme, a alegoria do fantasma talvez seja a mais adequada mesmo para o cineasta abarcar isso.

Todo este “prólogo” para escrever que “Doutor Sono” a princípio talvez gere controvérsia por ser menos uma produção de emulações do passado pura e simplesmente que um consciente do caráter reconstrutivo do seu celebrado antecessor, uma mudança muito simples de mentalidade mas capaz de afetar toda a experiência do espectador com o longa. Enquanto a tendência atual de Hollywood em reaproveitar o passado para fins de saudosismo seja responsável pela realização desta continuação de “O Iluminado” (seja de Stanley Kubrick ou do livro de Stephen King no qual se baseia), é impossível determinar de pronto que esta sequência serve a fins nostálgicos per se. Ainda que exista o interesse no passado e sua visita física seja apenas inevitável, a abordagem de Flanagan foge da interpretação literal desta proposta e reconfigura a narrativa para outros fins que passam longe do conforto com esta relação para se aproximar das noções do trauma suprimido.

Mike Flanagan (à direita) conversa com Ewan McGregor no set

Esta dinâmica não é estranha ao diretor, vale dizer. “Doutor Sono”, no caso, não deixa de seguir os moldes recentes do cinema de Flanagan, que a partir de “Jogo Perigoso” (justo outra adaptação de King, ainda que menos ostentosa) e em especial a minissérie “A Maldição da Residência Hill” passou a inverter os gêneros envolvidos, privilegiando esta experiência de extensões pelas vias do drama com peso no horror. A duração é o fator que melhor expõe esta dinâmica: embora seja relativamente contida, a história da continuação aumenta exponencialmente os arcos dramáticos de seus personagens, abrindo espaço para o protagonista Danny Torrance (Ewan McGregor), sua protegida Abra (Kyliegh Curran) e até o grupo de “espíritos terrenos” liderados por Rose (Rebecca Fergunson) – uma medida que logicamente há de levar a produção a registrar o tempo de 2 horas e 30 minutos.

Mas ainda que na teoria o resultado seja similar a “It: Capítulo 2” (a outra adaptação extensa da obra de King pelas mãos da WarnerMedia de 2019), em termos práticos as medidas são feitas em termos completamente diferentes. Enquanto Muschietti via na maior duração uma possibilidade de aumentar sua relação com o cânone, Flanagan aproveita o maior tempo para de fato sobrepor e explorar ligações subjetivas entre as histórias que conta, uma manobra responsável por aprofundar as relações problemáticas de seus personagens com o passado. Neste sentido (e como em “Residência Hill”), os fantasmas são menos manifestações físicas de terror que formas do diretor lidar materialmente com o drama, o que talvez explique o fato do longa optar por transformar seu prólogo em um grande primeiro ato e confinar a ela a superação do protagonista sobre o alcoolismo – para haver uma reminiscência do trauma é necessário primeiro criar a solução imediata a este, afinal.

O que distingue “Doutor Sono” de outros trabalhos do diretor, porém, é que aqui os fantasmas deixam de vez o posto de meras ferramentas narrativas para assumir uma centralidade nas dinâmicas do melodrama, o qual solidifica os objetivos da narrativa em tratar de traumas adormecidos. Isso é tratado tanto pelas vias literais quanto subjetivas, do grupo de espíritos de Rose e seus desejos por vida eterna até a figura de Danny que orbita a história como uma figura ao mesmo tempo atormentada e pacificadora, cuja experiência residual de “iluminado” o eleva à posição do título de trazer o “sono” (ou o descanso) a pacientes e outros personagens. Com a exceção de Abra, todos na trama fogem de algo maior, e é a maneira como buscam o equilíbrio a partir desta condição que define seus destinos e posições como mocinhos e bandidos.

Os fantasmas são menos manifestações físicas de terror que formas do diretor lidar materialmente com o drama dos personagens

É aí que a fotografia digital se torna parte tão importante ao filme planejado por Flanagan, pois é com ela que se resolve de forma mais profunda a intermediação natural de “Doutor Sono” com “O Iluminado” – o filme, o livro ou ambos. Toda a noção de trauma do longa passa por uma questão de simulacro, de recriação de eventos nunca capazes de ser idênticos aos fatos por existirem enquanto memória, o que se por um lado facilita os trabalhos da produção na hora de refazer momentos e cenas consagradas da adaptação de Kubrick, por outro reforça o estranhamento que qualquer espectador familiarizado com o filme de 1980 há de ter com reencenações e novas escalações para os papéis – e cabe aqui acrescentar que o leitor mais esperto já deve ter percebido a quem me refiro.

Apesar desta contradição, a continuação dobra os riscos e benefícios implícitos nesta aposta e joga tudo na imagem, pois compreende que a familiaridade do público com a história vem sobretudo do efeito da película. Assim, o filme digital atua como assombração maior do longa em 35 milímetros: o diretor filma corredores, quartos e manifestações do Hotel Overlook e até mesmo reencena momentos da obra-prima de Kubrick consciente do efeito que vai passar, uma medida que amplifica os efeitos dramáticos e (principalmente) de horror ambicionados pela trama.

A partir disso, a continuação legitima os atos criativos e passa a caminhar nos próprios pés, ainda que de forma paradoxal sua independência venha desta relação com o original. Isso inclui os efeitos visuais criados por computação gráfica, que, se em outras mãos poderiam sair deslocadas perante a fisicalidade do mundo construído por Kubrick, aqui ajudam a dar contorno à expansão dos mitos empreendida – e se há nada que Flanagan possa tornar físico, o que dizer da cena de consumação do espírito do garoto vivido por Jacob Tremblay, cuja carnalidade pode sair assombrosa dado o sujeito vitimado? Fergunson neste ínterim está ótima ao encarnar parte desta mistura esquisita do longa, atuando como um dândi feminino capaz de vocalizar de maneira potente o flerte existencial de seu grupo com o estilo anárquico e rebelde dos vampiros de “Quando Chega a Escuridão”.

O filme digital atua como assombração maior do longa original em 35 milímetros

Se há um equívoco nesta lógica – e é aí que “Doutor Sono” se desequilibra na hora de chegar aonde deseja – é que no momento de efetivamente voltar ao passado e revisitar os monstros responsáveis pelos traumas Flanagan não tenha como escapar por completo da lógica nostálgica desejada pelo estúdio, trazendo eventos e acenos à mitologia pré-estabelecida que enfraquecem o todo. A resolução do drama paternal de Danny é o que mais sofre com isso, pois o caminho de sua execução parece reconduzir “Doutor Sono” a resquícios da espiral de enlouquecimento de “O Iluminado” – e conforme esta parte há de se consolidar como cerne do filme, a ilusão construída pelo diretor em cima desta relações efêmeras racha em pontos cruciais.

Mas mesmo que roubado de um retorno emocional mais potente, é inevitável em “Doutor Sono” a conclusão de que a estrutura parece ser em si recompensadora o suficiente para se manter atento a seus meandros, o que não deixa de ser uma resolução importante. Enquanto a fãs de Kubrick e King deva interessar apenas saber se foi completo o eventual desafio de construir uma sequência de “O Iluminado” que não desabe perante o próprio legado (algo que deve nutrir o debate sobre a sequência nas primeiras semanas), ao longa a constatação de que se arquitetou uma obra cuja existência em si atua como espécie de fantasma do antecessor parece ser sozinha uma prova do quanto sua proposta é eficaz e – num paradoxo efêmero – capaz de se equilibrar nos próprios pés.

nota do crítico

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